Estive em S.Tomé no ano passado, passei por Batepá, e sobretudo por Fernão Dias, onde se recorda um dos momentos mais trágicos da História desse magnífico país.
Na fotografia que está no topo deste «post» figuram os nomes de uma parte das vítimas, cujo número nunca foi possível apurar exactamente mas que S.Tomé quantifica oficialmente em 1.032.
O novo memorial inaugurado em Fernão Dias, em 2015:
Este texto é um bom resumo do que é indispensável saber.
«Os acontecimentos que tiveram início a 3 de fevereiro de 1953, hoje feriado nacional em São Tomé e Príncipe, vitimaram, a mando do governador português Carlos de Sousa Gorgulho, um número indeterminado de forros, o grupo etnocultural dominante nas ilhas e que também designa os naturais ou ‘filhos-da-terra’, por, não estando abrangidos pelo Estatuto do Indigenato, recusarem o trabalho a contrato nas roças de cacau e café.
Quando, em inícios dos anos 1950, se torna evidente a crescente escassez de mão-de-obra nas ilhas, associada aos constrangimentos que dificultavam a importação de trabalhadores contratados de Angola, o clima de tensão na hierarquizada sociedade são-tomense intensifica-se. Nos meses que precedem o massacre desencadeiam-se medidas repressivas contra os forros e reforça-se a difusão de rumores de que seriam despromovidos à condição de indígenas, estatuto legal que não se lhes aplicava. Essa tentativa de forçar ou convencer os forros ao trabalho a contrato nas roças é rapidamente desmentida pela administração colonial, que se apressa a negá-la em notas oficiosas afixadas em algumas zonas da ilha de São Tomé.
É neste contexto que alguns forros decidem protestar, arrancando as declarações oficiais do Governo nas ruas de Trindade e Batepá, localidades tidas como bases geográficas privilegiadas da elite forra. A reação das autoridades portuguesas é imediata e rapidamente escala em termos de violência. No período mais intenso de uma semana, embora se tenha prolongado durante vários meses, regista-se um conjunto de procedimentos que tem como alvo preferencial a população forra: verificam-se rusgas constantes e casas incendiadas; há prisioneiros encarcerados numa rapidamente sobrelotada prisão central ou enviados para um campo de trabalhos forçados, localizado em Fernão Dias, com o intuito de ali se construir um cais acostável; ocorrem violações; torturas com uma cadeira elétrica improvisada e dá-se a transferência para o exílio, no Príncipe, de alguns dos membros mais destacados da elite local, como assinalado, entre outros, nos testemunhos recolhidos por Lima (2002).»
«O líder do PSD tem um desejo: que o Governo continue em permanente equilíbrio precário, desde que não caia; que se desgaste ainda mais com a simples tentativa de se conservar em pé. Na entrevista que concedeu esta semana à TVI, Rui Rio não podia ser mais claro: por um lado, “gostava” que o Presidente da República fosse “mais crítico e exigente” com o Governo. Para que o Governo governe melhor, claro, mas também para tornar “maior” a “força” da oposição. Com o Presidente neste papel de agitador, Rui Rio teria o seu totobola: alguém promoveria a instabilidade para que ele pudesse continuar a dizer, com razão, que “o pior que podia haver era uma crise política, além da pandemia e da crise económica”.
As palavras de Rui Rio traçam de forma clara o horizonte político do país até às eleições autárquicas do Outono. O Governo, exaurido de energia e inspiração por um ano de pandemia, dispõe de um seguro de vida – porque a oposição sabe que quem criar uma crise política será duramente castigado pelos eleitores; porque, no fundo, ninguém quer assumir o pesado encargo de liderar o país num momento como o actual. E porque a oposição sabe também que um cenário de eleições antecipadas só serviria o caos – e as ambições da extrema-direita que se alimenta da putrefacção do regime. Uma crise que levasse a legislativas geraria provavelmente um PS mais fraco mas ganhador, um PSD em agonia à espera de um D. Sebastião vindo de Massamá, um CDS extinto, um Bloco e um PCP penalizados e o PAN trucidado pela nova prioridade dada ao destino das pessoas. Ganharia a Iniciativa Liberal (tem o mérito de renovar o discurso político cristalizado no Estado e nos seus funcionários) e, obviamente, o Chega.
Vamos assistir a uma situação paradoxal: o estado de desânimo e descrença vão exponenciar as críticas e as denúncias contra o Governo; mas, para lá das palavras, todos agirão para o conservar. A crise que desgastou o Governo ampara-o. O Presidente colaborativo não o encostará às cordas por saber que é melhor haver um governo desorientado e exausto do que um governo improvável ou imprevisível – e porque, como a sua vitória provou, os portugueses não querem. Num momento dramático da vida do país, o que melhor parece satisfazer o interesse nacional é o torpor da política como a “arte do possível”. Um sobressalto político que desperte o país do pessimismo, da desconfiança e da amargura só pode vir do próprio Governo. Depois de anos a viver com o beneplácito da conjuntura, António Costa tem finalmente a oportunidade de garantir um lugar na História.»
(Por Rosângela Ribeiro Gil e Manuella Soares, entrevistando Nora Merlin, In Outras Palavras, 02/02/2021)
Psicanalista argentina investiga causas subjetivas da indiferença diante do ataque aos direitos. Para ela, neoliberalismo propõe trocar ação política por liberdade individual inatingível. E oferece, diante do fracasso, angústia, culpa e medo.
I – Vida e arte
Em qual encruzilhada estamos? O que nos pode salvar ou destruir por completo? Essas são algumas indagações que nos levaram a pesquisar o quanto o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico, mas uma prisão de subjetividades. Por que repetimos o que não é bom para nós e defendemos o que nos prejudica?
O cineasta inglês Ken Loach, tão perspicaz em “auscultar” a sociedade capitalista, parodia os tempos atuais, magistralmente, em seu mais recente trabalho Sorry we missed you. Estamos lá, na aflição do ex-operário da construção civil, desalentado pelo desemprego, buscando uma salvação de vida para ele e sua família. É emblemático o diálogo que inicia a película entre Ricky Turner, a voz de quem perdeu a credulidade no sistema, e Gavin Maloney, a fala de quem aderiu à lógica neoliberal do “empreendedor de si” prometida por uma plataforma de entregas.
Ricky diz querer trabalhar sozinho agora – “ser meu próprio chefe” – e que não aceita o seguro-desemprego, sinal de fraqueza, por isso diz; “Prefiro morrer de fome.” Gavin gosta do que ouve, chama o ex-operário de guerreiro e passa a “fazer uns esclarecimentos”: “Aqui você não é contratado, você embarca (to board). Você não trabalha para nós, trabalha conosco. Não dirige para nós, presta serviço. Não temos contrato de emprego. Não há metas a cumprir, você alcança o Padrão de Entrega. Não há salário, há honorários. Você não bate ponto, fica à disposição.” E finaliza: “Você é senhor do seu destino. Isso separa os perdedores dos guerreiros.”
Saber o que nos acontece não é tarefa fácil nem se esgota aqui e agora. Sociólogos, filósofos, historiadores, psicanalistas, jornalistas e outros profissionais e estudiosos se debruçam sobre a era atual.
Alguns indicam, como a psicanalista Nora Merlin – docente e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires, mestre em Ciências Políticas e autora dos livros “Populismo e Psicoanálisis”, “La colonización de la Subjetividad, médios massivos de comunicación em la época del biomercado”, “Mentir y colonizar: obediencia inconsciente en la subjetividad neoliberal” e “La reinvención democrática. Un giro afectivo”, todos editados pela Letra Viva –, que o neoliberalismo é uma produção de subjetividade, de um homem “novo” e que, portanto, requer uma nova antropologia. Nora nos concedeu, gentilmente, uma entrevista desde Buenos Aires. Neste texto, vamos trazer e dialogar com as falas de Nora com o intuito de ajudar na reflexão dos nossos tempos para evitarmos o pior.
É, sem dúvida, uma pista para entender passividades como a que vimos, no Brasil, em 2017, na contrarreforma trabalhista, onde mais de 100 direitos foram retirados e tantos outros alterados da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nora questiona que, mesmo sendo um dispositivo que só favorece a elite e retira direitos, o neoliberalismo têm avançado “profundamente no mundo, até ser definido como uma forma de vida”. Ela propõe uma reflexão sobre o porquê, desde os anos 1970, essa política se impõe e observa que “isso só é possível colonizando a subjetividade, com a manipulação dos afetos, como a angústia, a culpa, o medo, o ódio”.
Na linha de frente dessa manipulação, Nora destaca os meios de comunicação, as redes sociais e as políticas de educação e saúde mental e também as ciências biológicas capturadas pela indústria da medicalização. “O neoliberalismo não é possível sem essa colonização, que responde pela obediência inconsciente”, frisa. Ela traz o filósofo e humanista francês Étienne de La Boétie (1530-1563), vindo do século XVI, para “conversar” com a gente, 500 anos depois.
Ele pensou a sociedade na época dos absolutismos reais e alcunhou a expressão “servidão voluntária”1. “Ele se perguntava por que muitos se submetiam ao rei. A explicação naquele momento foi teológica: o rei é o herdeiro de Deus e, então, há de servi-lo e obedecê-lo. Era uma obediência consciente e voluntária. Depois, vieram as revoluções democráticas, os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. Hoje, estamos frente ao mesmo problema, porque os muitos se submetem a um, porém já não ao poder real do rei, mas sim ao poder real que hoje são as corporações. A servidão já não é sequer registrada como servidão porque estamos na presença de cidadãos que se creem livres. Além disso, o cidadão no neoliberalismo não tem comida e casa garantidas, não tem direitos. Então, por que tomamos atitudes que vão contra nossos próprios interesses?”, questiona.
Os trabalhadores perdem seus direitos, seu trabalho, mas seguem comprando e consumindo um discurso contra eles mesmos e que está a favor do capitalismo financeiro, que prescinde de homens e mulheres. “Os trabalhadores seguem subscrevendo e comprando como naturalizado esse discurso que logrou captar o coração da subjetividade.”
II – Meritocracia: a supremacia do eu
A meritocracia se fortalece na ideologia neoliberal. Uma narrativa que encontramos todos os dias nos mais diversos meios e em variadas formas. Ela está nas notícias da imprensa comercial, em postagens de empresas e especialistas de recursos humanos e recrutadores, em profusão, nas redes sociais, em especial na chamada rede de networking, o LinkedIn. Está em muitas falas políticas e nas diversas esferas dos poderes republicanos – Executivos, Legislativos e Judiciário.
Esses discursos disseminam a sensação de liberdade ilimitada, no sentido da onipotência do eu. “Eu faço o que quero.” Todavia, esclarece Nora que o eu é um lugar de desconhecimento. É uma instância psíquica que não está livre, mas está condicionada por imperativos, pulsões, pelo mundo social. “Não é um lugar de liberdade, mas há condicionamentos sociais, políticos, familiares, históricos que condicionam essa suposta liberdade do eu.”
A produção cultural do capitalismo contemporâneo, criadora do culto à liberdade do eu (ou individual), se ampara grandemente em técnicas de autoajuda e do marketing que funcionam como imperativos sociais também. “Por exemplo, as frases “você pode” e “você pode mais” simulam um ideal de liberdade, mas impõem os piores e ilimitados sacrifícios. O que isso gera? Uma subjetividade culpada, devedora”, descreve Nora Merlin. Para ela, a ovacionada “liberdade individual” é uma armadilha do sistema, porque nada se faz sozinho.
Falsamente, observa a psicanalista argentina, o neoliberalismo nos faz crer que somos donos das nossas vidas e do nosso destino, reforçando palavras que hoje estão no dia a dia das pessoas, como meritocracia, mérito, empreendedorismo, empreendedor de si. “Isso contribui para uma precariedade laboral, para um servilismo jamais visto, a pobreza como destino porque não há nenhuma mobilidade social baseada na meritocracia”, critica.
Isso porque a meritocracia, como discurso do capitalismo contemporâneo, está baseada numa falsa premissa de igualdade de oportunidades, quando ela só existe no final, e não no começo. “Se se parte da igualdade na educação, na saúde, na habitação, depois sim pode haver uma singularidade no esforço pessoal. A meritocracia é classista no neoliberalismo, alcança uma posição quem nasce numa determinada classe social”, reforça Nora.
III – Prisão ideológica e calcanhar de Aquiles
A primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, Margaret Thatcher, tem uma frase famosa onde diz, sobre a nova ordem capitalista, que “não existe mais alternativa. É isso que existe”. A dama de ferro sabia o que estava falando e já mostrava para todos o caminho servil que seria imposto à sociedade mundial. Como sair dessa prisão ideológica é uma pergunta que não apenas faz Nora, mas todos nós. Neste ponto, Nora recorre a Michel Foucault (1926-1984), lembrando que o filósofo francês apontou que o neoliberalismo vinha com um slogan perigoso e falso do fim da história e das ideologias, ao mesmo tempo que rechaça a política. “Se acaba com a política porque dizem que o moderno é uma questão de administração. O neoliberalismo se transformou num sistema de administração das almas, do terror. Através de controle e do disciplinamento”, expõe.
O calcanhar de Aquiles do neoliberalismo é justamente a política, por isso a demonizam tanto, vinculam-na à corrupção, à violência. A saída, enfatiza Nora Merlin, só pode ser política, é a organização da sociedade, porque os ideólogos neoliberais sabem que nesse campo da disputa e reflexão de ideias eles não têm nada a dizer.
IV – Manipulação da angústia
Não é à toa, portanto, o ataque às organizações políticas e, principalmente, aos sindicatos de trabalhadores, porque é neles que “vamos poder encontrar a saída para a humanidade”. O poder trabalha com alguns sentimentos há muito tempo, “diria que mesmo antes do nazismo. Um dos afetos que mais manipulam é o da angústia, porque significa desamparo, indefinição, e isso traz a obediência inconsciente. Trabalha-se com o medo, a ameaça, a culpa e o ódio. Essas são as ‘paixões’ privilegiadas do neoliberalismo”, analisa.
Outras paixões também são usadas, como a uniformidade de pertencer a uma massa, de pertencer de forma imaginária, e não real, pela via da identificação, de parecer a alguma coisa. “O poder não quer sindicalismo, não quer a organização dos trabalhadores. Um sindicalismo organizado e um conjunto de trabalhadores que façam política e tenham pensamento crítico. O poder quer uma cultura de individualidades, de indivíduos, são cidadãos, consumidores, “odiadores”, sem pensamento crítico que forma a massa. A massa está conformada sobretudo pelos meios de comunicação que são corporativos, não são democráticos e são empresas. Não são democráticos não apenas pela concentração econômica, mas pela concentração simbólica. Não há pluralidade de vozes, é um discurso único, agora temos as redes sociais para ajudar a propagar esse discurso. Tudo isso impõe formas de vida.”
Rechaçar a política, que significa o diálogo entre posições diferentes e não o aniquilamento do que é diferente de nós, significa que colocamos no lugar a intolerância, a violência moral e física.
A morte da política, sempre anunciada pelos cânones neoliberais, retorna à sociedade como ódio, como destruição física e moral. “É o homem lobo do homem, uma guerra de todos contra todos, já não se trata mais de adversários políticos, mas de uma guerra contra inimigos. Porque a política foi demonizada como corrupção. O conflito político se transformou em conflito moral, entre bons e maus. Há um estímulo ao ódio, a mesma técnica utilizada pelo nazismo do inimigo interno, da demonização, à época, contra o judeu, os ciganos, os gays, hoje contra os dirigentes sociais, Lula, Cristina [Kirchner], dirigentes políticos e sindicais. O ódio é a ferramenta principal do neoliberalismo porque é o modo de aniquilar as diferenças”, reflete Nora.
V – Um vírus chamado neoliberalismo
Nora Merlin lembra que Jacques Lacan (1901-1981), psicanalista francês, define o capitalismo como um discurso ilimitado. Ela entende que o capitalismo, na sua expressão neoliberal, é um discurso fanático. “Podemos dizer que é um vírus que foi tomando todos os aspectos da cultura, quase uma estrutura rizomática, que foi se metendo nas formas de vida, no corpo, nas relações sociais, amorosas, de amizade, laborais, foi tomando os governos. Então, foi tomando o coração da subjetividade”, compara.
Como ela mesma destaca, durante o ano de 2020, em razão da pandemia, apareceram distintas teorias por filósofos da moda de um “novo normal”, de uma civilização melhor, de uma humanidade mais solidária, com o surgimento de um novo paradigma. Mas nada disso se realizará por ordem do destino neoliberal, como exorta Nora Merlin: “O destino da humanidade vai depender da luta política por outras formas de vida. O que vemos é uma direita desinibida, o neofascismo que já não necessita sequer de simulacros democráticos. O que vemos surgir é uma ultradireita “odiadora”, antissocial, mas também vemos crescer uma oposição que luta, se organiza, que articula o feminismo, formas democráticas, nacionais e populares. Dessa luta vai depender o destino da humanidade.
1 LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária.
«Há pouco mais de um mês, dois terços dos portugueses diziam preferir esperar algum tempo até serem vacinados. Eram devaneios de uma falsa sensação de segurança e medo do desconhecido. Agora, que a pandemia se sente de forma aguda e tudo o que andaram a ler nas redes sociais sobre os efeitos da vacina não se confirmou, já todos se esgatanham por ela e instalou-se a caça a quem fura os critérios. Tudo isto era previsível. A mudança de estado de espírito e as polémicas sobre os critérios. Assim como era previsível que, num processo de vacinação que envolverá praticamente todos os portugueses, aparecessem chicos-espertos.
Mesmo assim, acho que devemos ser rigorosos na apreciação de cada caso. Apesar de ambos os casos serem condenáveis, devemos distinguir o que aconteceu na direção da Segurança Social de Setúbal do que aconteceu no INEM. Em Setúbal, estamos perante uma apropriação premeditada e indevida de vacinas por quem, fosse qual fosse o critério, não tinha direito a elas. Espero que estas pessoas respondam na justiça. No INEM, a ser verdade o que dizem os seus dirigentes no Norte, estamos perante o resultado de um protocolo mal preparado, onde não fica claro o que fazer com o excesso incerto das cinco doses que permite, muitas vezes, dar uma sexta vacina. É absurdo atirar esse excesso para o lixo, mas a solução de dar aos vizinhos da pastelaria é impensável, como é óbvio. Como é comum, foi necessária a asneira para que o governo exigisse uma lista de suplentes prioritários. Porque, é importante recordá-lo, apesar de continuarmos a trabalhar para a imunidade de grupo, ainda não temos a certeza que a vacina evite a transmissão. Sabemos que evita a doença e, por isso, é fundamental que seja ministrada a quem faz parte dos grupos de risco.
Como resultado desta polémica, e se o Estado não for rápido a clarificar o que fazer com as sobras, temo que os responsáveis as vão desperdiçar, para não serem alvo de críticas ou ações disciplinares. E nada é mais criminoso do que o desperdício de vacinas. Como continuamos a procurar a imunidade de grupo, é pior do que as dar indevidamente. Basta recordar como, em Seattle, uma arca estragada levou os hospitais a oferecerem, sem qualquer critério, 1600 vacinas, para que fossem usadas antes de se estragarem.
A exigência de não garantir a segunda toma a quem recebeu indevidamente a primeira é estúpida. Estas pessoas não vão perder direito à vacinação porque, até nova estratégia, continuamos a querer vacinar o máximo de pessoas. De fora só devem ficar as que não querem e as que não podem. Como o prazo para a segunda toma é de menos de um mês, se não lhes for dada agora, terão de receber de novo a primeira, quando chegar a sua vez. Limitamo-nos a gastar mais vacinas e a punir inocentes com isso.
Na realidade, isto levanta outro debate sem consenso à vista, em que não vou entrar por não me sentir preparado para tanto, sobre vantagens e desvantagens de ir vacinando logo duas tomas em vez de duplicar os vacinados com a primeira, dilatando este intervalo e dando alguma proteção a mais gente. Mas sendo o que está protocolado (pode mudar), quem toma a primeira toma a segunda. Há instrumentos na lei para castigar quem prevaricou. Não é o plano de vacinação. Ouvi na SIC Notícias, com estupefação, a resposta de Francisco Ramos, responsável pela vacinação, a esta dúvida. É verdade que não atribuiu aos eleitores de André Ventura a indignação moral com o comportamento dos prevaricadores, como um jornal inicialmente pôs em título (depois corrigiu). Essa indignação sentimo-la todos. Mas atribuiu a defesa da interdição da segunda toma a estes eleitores. Fez o pior que podia fazer: misturar considerações eleitorais com um debate técnico. É inacreditável. E, no entanto, não era difícil esclarecer porque não podemos usar a segunda toma como castigo. Se não tivesse as responsabilidades que tem, até poderia dar algum desconto a Francisco Ramos pelo absurdo do debate. A gritaria instalada dá para o disparate generalizado. E não falta público ansioso por este espetáculo.
Tudo isto era expectável num processo destas dimensões. E não se julgue que não há muitos problemas noutras paragens. Por isso, puna-se quem não cumpre e não se transforme a exceção na perceção de que se trata da regra. Até porque, no péssimo contexto europeu e quando tudo o resto nos está a correr tão mal, até não temos más taxas de vacinação (aqui e aqui).»
(Não foi só o Mayan que veio com esta história, ó Francisco. Ontem também o Rui Rio pegou na dita, na entrevista à TVI, para provar o "preconceito ideológico" do Governo contra a iniciativa privada. Mas que raio de iniciativa privada querem estes tipos!? O Estado que pague aos médicos, que lhes mande os doentes, lhes pague as facturas dos internamentos que eles ficam com os lucros e, no fim do processo, não os taxe com muitos impostos?
Em suma, os que os liberais tugas pretendem e a que se habituaram durante décadas é ao chamado "Estado vaca-leiteira". Só que a teta da vaca está a secar e eles gritam que se fartam. Não, aos liberais e ao borracho não deve pôr o Estado a mão por baixo, parafraseando o provérbio.
Comentário da Estátua, 02/02/2021)
O Hospital Compaixão, em Miranda do Corvo, foi concluído há dois anos mas continua fechado. Não tem porteiro, nem telefonista, nem administrativos nem um único profissional de saúde. É um edifício vazio. E foi notícia nas eleições presidenciais, com um candidato, Tiago Mayan, a fazer do escândalo o tema de um dia de campanha, querem lá ver que o polvo do Estado recusa salvar os doentes por puro preconceito ideológico contra a iniciativa privada.
O hospital foi construído pela Fundação Assistência para o Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP), um nome curioso que se deve referir à sua função. Pois a Fundação especializou-se no negócio da saúde, gerindo várias unidades na região centro. O seu presidente é um dinossauro do PSD, Jaime Ramos, que foi deputado, vice-presidente da bancada, governador civil de Coimbra e presidente da Câmara de Miranda do Corvo em sucessivos mandatos. O Hospital Compaixão é o seu principal investimento mas, para surpresa dos inocentes, nunca abriu portas.
Em novembro, as autoridades de saúde contactaram todas as unidades privadas da região para programarem a cooperação na resposta à pandemia. Houve duas que não responderam, entre elas o hospital do dr. Ramos. Chegadas as eleições presidenciais e encontrado um porta-voz voluntarioso, o “escândalo” vem para a praça pública: temos aqui estas camas e salas cirúrgicas, tudo pronto, e o Estado recusa-se a enviar doentes. Perguntadas pela imprensa, as autoridades de saúde manifestaram perplexidade: como é que vamos mandar doentes Covid, ou outros, para um hospital que está fechado e não tem nem um enfermeiro nem uma médica? O dr. Ramos explicou então candidamente numa reportagem da Sic que o que queria, precisamente, era que o Estado lhe garantisse o pagamento dos profissionais que ainda não contratou e que lhe despachasse os clientes que ainda não tem. Ou seja, a iniciativa privada quer que o setor público lhe pague as despesas e lhe proteja o negócio. Não pretende convenções, quer uma garantia de cobertura dos custos e uma salvaguarda das receitas. Sem isso, continua amuado e não contrata ninguém. Só abre portas se o Estado lhe assegurar a tesouraria e os proveitos.
A mais atrevida das imaginações não conseguiria conceber um retrato tão fiel sobre o liberalismo português. Com direito a fanfarra eleitoral, um operador político estende o chapéu ao Estado, não para o ajudar a singrar ou para colaborar numa urgência sanitária, mas para lhe fazer a caixa. Como bem explicou recentemente outro destacado prosélito liberal, o dr. Mesquita Nunes, quem critica esta fé são os que “não percebem nada de economia”.