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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Olhá bujarda, é a fina flor do entulho


por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 09/02/2021)

Se alguma pessoa tem a ingenuidade de pensar que os insultos, a calúnia ou outras trivialidades semelhantes são produtos do nosso século, não poderia estar mais enganada. São uma constante universal. No entanto, o tempo presente gerou duas particularidades, que não serão de pouca monta: a poderosa tecnologia de comunicação que promove o escalonamento da frase fulgurante e que, em segundo lugar, a acarinha. Este é o duplo valor da bujarda, que é o signo do sucesso comunicacional mais apetecível nos dias que correm. Se se atentar com cuidado, muitos dos incidentes e das disputas atuais exprimem a linguagem da bujarda.



O meu primeiro exemplo é o da Bastonária dos Enfermeiros, que tem levado a sua Ordem aos píncaros do tribalismo partidário. A anatomia das suas esforçadas mensagens demonstra como se constroem os efeitos da velocidade e da grosseria, que são essenciais para obter viralidade, a forma de se ser ouvido nesse universo de gritaria. O primeiro efeito, o da velocidade, exige que a influencer multiplique as reações, numa avalancha que inunde as redes comunicacionais provocando conflitos cada vez mais grotescos.

Ana Rita Cavaco demonstrou-o com a pitoresca descrição de como um secretário de Estado e a sua mulher foram indevidamente vacinados: “Pegou nela, dizem, na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina. Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no país, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!” Tudo tremendo. A bastonária “ouviu dizer” que o governante tinha sido vacinado, como explica, e construiu o cenário: “pegou nela, na família e nuns amigos socialistas”, uma verdadeira excursão. Uma “quantidade de trastes por metro quadrado”, tudo “criaturas horrorosas”.

Só que era falso e o homem teve até a cortesia de lhe telefonar a pedir correção da calúnia. O que ele foi fazer. Só provou que era ainda mais culpado: “Ficou aborrecido com o que as pessoas dizem. Achei que devia pôr aqui a sua posição mas confesso que fiquei confusa, não foi mas tem critério. Lembrei-me de outra coisa também, o critério neste país para se ter um alto cargo público, família.” Portanto, o governante “ficou aborrecido com o que as pessoas dizem”, que por acaso era ela própria que repetia sem o menor resquício de prova. E a óbvia conclusão, não é mesmo evidente?, é que chegou ao lugar devido à sua família. Como se chega a tal sentença, isso fica nos recônditos da lógica condenatória, mas aqui está como se viaja de um “ouvir dizer” e dos “trastes por metro quadrado” até uma conclusão sobre “o critério neste país para se ter um alto cargo público, família”, lembrou-se-me.

Daniel Oliveira registou estas incoerências, portanto foi imediatamente apelidado de “seu esterco”, ultraje repetido para que não ficassem dúvidas sobre a esterquicidade do acusado, que é além disso “defensor de fura filas”, como o tal secretário de Estado que afinal não tinha furado nenhuma fila nem sido vacinado, mas isso não muda nada, ela ouviu dizer e por isso sabe que são trastes de metro quadrado e, de qualquer modo, lembrou-se de que ele só lá está por causa da família, a tal que teria sido vacinada na excursão governista, ou talvez não, na via das dúvidas é “a fina flor do entulho”. Em todo o seu esplendor, fica aqui exibida a vertigem do discurso punitivo sobre a desgraçada horrorosidade que afunda o país.

É isto um entretenimento? Não, é uma estratégia. Para quem vive naquela redoma das redes sociais e está viciado no seu fulgor, não é preciso ser informado, nem sequer usar argumento, o que é necessário é conseguir likes e partilhas ou talvez uma notícia de telejornal. A estratégia é fazer perder o fôlego criando uma irracionalização total do discurso, o que é reforçado pelo truque de subir sempre a parada com um tiroteio imparável (Trump, sempre o mestre bufão que inspirou esta técnica, chegou a fazer 400 tuítes por dia). É por isso que a bujarda é tão apetecível, tão contagiante, é um clamor, um apelo a que se olhe para os bujardistas. Não pretendem sequer ser lidos, aspiram a ser multiplicados. O título conta mais que a informação, que é irrelevante. Para esta conta, o ódio é o aplauso mais eficaz, os entusiastas recompensam a alarvidade.

O segundo exemplo, que prova que a estratégia trumpista tem seguidores fiéis mesmo entre os mais cordatos dos comunicadores, é a da fronda pela saúde privada. Como os hospitais privados se submeteram ao vexame da condenação popular pelo seu comportamento na primeira vaga, quando recusaram tratar doentes covid sem um preço apetitoso, tendo mesmo expulso dos seus serviços as grávidas que tivessem o vírus, os seus embaixadores sentiram-se motivados para um contra-ataque na segunda vaga. A forma de o fazerem é o que me interessa aqui, foi a bujarda.

O mote foi repetido em campanha eleitoral por um liberal que anunciava dez mil mortos provocados pela ministra da Saúde (Tiago Mayan) e pouco depois por um aspirante a profeta da direita, Henrique Raposo, que insistiu ipsis verbis: “o desprezo deste governo pelos hospitais privados é mais grave, é outra coisa, é uma tragédia séria que nos custou milhares de vidas nesta pandemia”. Há uma carnificina em curso, uma “ideologia” que mata, esperando-se que algum Tribunal de Nuremberga castigue estes genocidas.

A artimanha é mais uma vez evidente: se a posição bujardista é fraca, berra muito; se a razão é escassa, acusa o adversário; se falta senso a tudo isso, chama-lhe assassino. A coisa passa a ser uma pugna de sangue, a diferença é entre a vida e a morte. A bujarda, que fabricou o Pizzagate contra Hillary Clinton, sugere agora o Covidgate contra a homicida Marta Temido e o secretário de Estado que furou a fila, ou se não furou, está lá por causa da família, todos protegidos pelos “estercos” e pela “fina flor do entulho”, “criaturas horrorosas”.

Tendo feito uma carreira tardia em aforismos, Nietzsche escreveu um dia que se “pode perdoar qualquer falta de estilo, mas não de pensamento”. Como estava enganado. Conhecesse esta forma de comunicar da contemporaneidade e saberia que, se o estilo sempre interessou pouco aos bujardistas, o pensamento que anima este belicismo dos dias de hoje é simplesmente eficaz, o seu segredo é multiplicar sempre o absurdo de cada alegação que seja absurda, criando uma bolha impenetrável pela verdade. É uma pirâmide, é um vício. Já não vão sair disto, foi o que aprenderam e é onde se reconhecem. O problema é como é que a democracia vive ao lado deles, se não há tradução possível entre as duas linguagens. 

Política – Nem só o coronavírus destrói o país



por estatuadesal

(Carlos Esperança, 06/02/2021)

A direita portuguesa, com um PR da sua área e habituada a ser Governo, foi confrontada com o advento da extrema-direita, organizada num partido assumidamente fascista, com um líder demagogo, xenófobo e mitómano, sem ter prevenido a limitação dos danos.

A direita democrática, apanhada na tempestade com líderes precários e sem carisma, foi inábil a resistir aos desafios fascistas e à hemorragia dos que a incluíam à espera de um partido que assumisse ruidosamente a ideologia que preservavam m silêncio.

Rui Rio conseguiu derrotar os piores apoiantes da deriva do PSD com Cavaco e Passos Coelho, e foi incapaz de vencer os inimigos internos e impor um módico de coerência à sua própria conduta. A posição quanto à vacinação de deputados e a contrária, expressas no curto intervalo de poucos dias, provaram a sua desorientação política.

Passos Coelho rodou na autarquia de Loures o líder do partido mais antidemocrático e promissor da direita. Rui Rio, em profundo desnorte, integrou-o no sistema na Região Autónoma dos Açores onde o PSD podia ser Governo, ignorando-o. Após esse péssimo serviço ao País, e ao PSD onde o extremista se nutre do eleitorado, o discurso delirante sobre os resultados da extrema-direita no Alentejo foi um apoteótico haraquíri.

O CDS perdeu há muito a identidade e tem hoje uma comissão liquidatária a defender-se dos raros demo-cristãos que reclamam a herança de Freitas do Amaral e Amaro da Costa. Sobram-lhe quadros sem rumo ou a caminho do PSD. Os neoliberais já têm um partido (IL) e os fascistas também.

Entretanto, os habituais e pouco recomendáveis Santana Lopes e Alberto João Jardim, de que nenhum partido se conseguiria orgulhar, apareceram, no espaço de poucos dias, a propor um “governo de salvação nacional”, em agnosia jurídica e delírio golpista.

Qualquer leigo sabe que é utópico um tal governo, os governos dependem da AR, como Cavaco Silva acabou por compreender. Até os supracitados, o primeiro quando sóbrio e o segundo, na pausa de uma qualquer aventura autárquica, são capazes de perceber que no atual quadro parlamentar, inalterável até 9 de setembro, é absolutamente impossível qualquer outro governo.

Há quem se regozije com esta desorientação da direita democrática e de quem se situa a meio caminho da outra, mas está na origem do aumento dos perigos que nos espreitam.

Sem programa, sem estratégia e sem líder, a direita democrática alimenta a extremista e deixa à solta os militantes a denegrir as instituições, a lançar suspeitas e a provocar o caos.

Não precisamos de “governos de salvação nacional”, precisamos da salvação nacional dos partidos democráticos para os governos que hão de vir e para a dramática situação a que a pandemia irremediavelmente nos conduz.

 

Não deixem os actuais “liberais” apropriarem-se da palavra “liberdade”

Posted: 06 Feb 2021 03:55 AM PST

 


«Eu não tenho nenhum problema, bem pelo contrário, em intitular-me liberal. Estou a referir-me ao liberalismo no seu sentido global, ou seja, político. Uma outra coisa é o liberalismo reduzido à esfera económica (que tem sido chamado “neoliberalismo”) e que assenta essencialmente na reivindicação de um “Estado mínimo” que deixe a “mão invisível” do mercado funcionar e que pouco cuida das liberdades propriamente culturais, sociais e políticas. Há variantes nestas posições, incluindo a liberal-libertária, que junta Bakunine com Milton Friedman, numa mesma defesa do laissez-faire.

O liberalismo tem tradição em Portugal, e foi por ele que uma geração que incluía Garrett e Herculano lutaram. O liberalismo é igualmente importante para perceber como cidades “burguesas” como o Porto estiveram sempre à frente dos combates pela liberdade, desde o 31 de Janeiro pela República, sem ser jacobina, e nas campanhas de Norton e Delgado contra a ditadura, sem ser comunista. O liberalismo conheceu um papel importante na monarquia constitucional, recuou alguma coisa na I República e recuou muito durante o Estado Novo. Depois do 25 de Abril, explica melhor a resistência ao PREC de Mário Soares do que o socialismo do PS, está presente no esforço vitorioso de Sá Carneiro (um homem do Porto) para retirar a tutela militar do regime democrático, e, sem precisar de ser nomeado, “normalizou-se” na democracia portuguesa.

Quando os actuais “liberais” se põem num papel de defensores de uma ideologia proibida e perseguida, sem expressão em Portugal, de novo estão apenas a falar do neoliberalismo. E a esquecer que mesmo assim, nos últimos dez anos, as ideias neoliberais e ainda mais aquilo a que os sociólogos chamam “background assumptions” tiveram um enorme sucesso ideológico e impregnaram o discurso comunicacional. Isto durante o período da troika, em que estiveram no governo.

Dois partidos políticos portugueses têm na sua génese a tradição do nosso liberalismo, o PS e o PSD. Ambos combinam o liberalismo político com outras tradições, o PSD com a doutrina social da Igreja e o personalismo, o PS com o republicanismo anticlerical e maçónico. No entanto, ambos partilham muitos aspectos da tradição social-democrata, na sua recusa do marxismo e do leninismo. O CDS é mais difícil de caracterizar pelas suas flutuações ideológicas, desde a sua génese na tradição democrata-cristã até à sua perversão no PP e o seu activismo em temas de “moral” contra o aborto, a eutanásia, os direitos dos homossexuais, funcionando como inverso do Bloco “fracturante” – nada tem que ver com a tradição liberal.

O PCP, o Bloco de Esquerda, o PAN não são partidos liberais, o que não significa que não sejam democráticos. O PCP e o Bloco de Esquerda partilham de uma teleologia da história e por isso há quem esteja na vanguarda e quem esteja na retaguarda, ou seja, não é a qualidade universal da cidadania que transporta a igualdade, mas sim a “classe” que determina o seu papel na história. O PAN assenta numa ontologia animalista da sociedade que desvaloriza a liberdade, porque desvaloriza o humano. De facto, “pessoas”, “animais” e “natureza” não estão para um liberal no mesmo plano, porque não são ontologicamente idênticas.

O Chega não é um partido liberal nem democrático. Não se pode ser democrata e racista e xenófobo ao mesmo tempo, porque raça e nacionalidade não podem diminuir o humano em que assenta a liberdade e a igualdade.

Dito isto, sobra a Iniciativa Liberal, na qual a hegemonia da correlação Estado-economia é dominante. O seu documento intitulado PREC Liberal, no qual são apresentadas 100 medidas, é relevante para o debate político nacional, porque representa um dos raros esforços programáticos num deserto ideológico. E isso tem muito mérito.

Uma análise mais detalhada fica para outra altura, mas como sempre acontece a propaganda é bastante menos elaborada – por exemplo, no seu site põe-se no mesmo plano de liberdade as “pessoas”, as “sociedades”, os “cidadãos”… e os “mercados”. E quando vamos ver quais as reivindicações para cada uma destas “liberdades” que é necessário “devolver”, no caso das “pessoas” encontramos “menos impostos, mais emprego, mais oportunidades, mais liberdade de escolha nos serviços públicos”. Mais à frente, na “competitividade” aparece: “Descomplicar, desonerar, atrair capital, libertar os contribuintes dos prejuízos das empresas públicas ineficientes.” Etc.

O problema não está em muitas destas propostas, que, aliás, todos fazem, sobre “corrupção” ou “transparência”, mas no facto de tudo ser posto no mesmo plano de importância para um país abstracto. Quando se fala num país pobre como Portugal que a prioridade possa ser “mais liberdade de escolha nos serviços públicos”, ou “libertar os contribuintes dos prejuízos das empresas públicas ineficientes”, tudo coisas razoáveis em si mesmas, não se pode deixar de pensar no que isto significa para a maioria dos portugueses que não têm condições para escolher um colégio para educar os filhos, nem estão muito preocupados se um hospital público custa caro, desde que sejam gratuitos os seus serviços. Não porque sejam desperdiçados, mas porque precisam. Repito: porque precisam. Se deixarmos o senso vulgar das palavras de ordem e passarmos para o senso comum da realidade, este programa é muito pouco sobre “libertar”, muito menos sobre partilhar e muito mais sobre pagar – e pagar arrasta atrás de si desigualdades profundas. Significa ter direitos, ter salário digno, ter habitação e serviços públicos básicos. A crise do liberalismo clássico no século XIX e que alimentou o socialismo veio da incapacidade de garantir o progresso social por muito que os “mercados” sejam “livres”.

É por isso que depois de ter lido cem vezes a palavra “libertar”, de uma coisa estou certo: não é de “libertar” da pobreza, da desigualdade, da exclusão que se está a falar. E não digo isto por qualquer vontade de “atacar” a Iniciativa Liberal, mas porque é mesmo assim. É também por isso que eu não quereria que a palavra “liberdade” fosse capturada por estes “liberais”.»

Os culpados não são as empresas farmacêuticas, mas sim a Comissão Europeia, o Parlamento e os governos

por estatuadesal

(Juan Torres López, in Publico.es, traduzido em Resistir, 29/01/2021)

Vou começar este artigo pelo que havia pensado vir a ser a minha conclusão final:

- Um relatório da Câmara de Comércio Internacional ( aqui ) considera que se os países continuarem a aplicar uma abordagem descoordenada à distribuição de vacinas e os governos não garantirem o acesso das economias em desenvolvimento às vacinas COVID-19, o mundo corre o risco de Perdas de PIB de até US$9,2 milhões de milhões só em 2021.


- Este relatório considera que o financiamento que seria necessário para fornecer uma vacina a toda a população do mundo que precisa seria de cerca de US$27,2 mlhões de milhões. Ou seja, 338 vezes menos do que o dano que causaria se não o fizesse.

- Para cada um dos US$27,2 milhões de milhões necessários, as economias poderiam receber um retorno de US$166.

- Estes US$27,2 milhões de milhões representam 3% dos 750 milhões de milhões de euros que a União Europeia pretende dedicar ao combate à pandemia e aos seus efeitos económicos.

Perante estes dados, que a Comissão Europeia se empenhe em manter a estratégia de mercado que está a seguir, que o Parlamento Europeu não se levante e exija bom senso e que os governos continuem a pôr em perigo a sua população e a arruinar as suas economias, não me parece que seja insensato mas sim criminoso. Explicar porque.

O processo de vacinação está a ser uma catástrofe na União Europeia e a Comissão está agora a tentar fazer-nos acreditar que a culpa é de um laboratório que quebra contratos.

Não vou defender a Astra Zéneca aqui, cuja história está repleta de fraudes, violações e más práticas associadas à sua posição de quase monopólio nos mercados ( informações detalhadas aqui ). Só quero assinalar que, a meu ver, os responsáveis pela catástrofe em que se encontram os países europeus não são os laboratórios, mas sim as instituições europeias que desencaminharam, desde o início, o combate a uma pandemia que vai acabar por provocar, como se sabia, a mais séria crise económica da história contemporânea.

A União Europeia como um todo não soube ou não quis assumir que a pandemia de Covid-19 é um problema global e que como tal deveria ter sido enfrentada. Ela se juntou ao "salve-se quem puder" dos países mais ricos, ao invés de entender que uma emergência planetária como a que vivemos exige medidas de cooperação global e que só com eficiência, cooperação, solidariedade e equidade se pode realmente combater um vírus que não entende de fronteiras.

Desde o início da pandemia União Europeia tem agido dando prioridade aos interesses financeiros em relação aos sanitários e permitindo que a resposta viesse de empresas que, legitimamente, estão obrigadas aos seus accionistas e ao cumprimento dos seus objectivos comerciais.

Ao tentar equivocadamente poupar recursos, a Comissão Europeia assumiu o fornecimento de vacinas e também aí cometeu erros garrafais que no final provocarão desbaratar de recursos, atraso na resposta sanitária e maiores custos em vidas e em dinheiro a todas as economias europeias. Ainda que, na realidade, esse princípio não fosse sequer respeitado e grandes países, como a Alemanha, mantivessem estratégias particulares de compra. Não soube gerir a adopção de acordos com rapidez e eficiência e a sua burocracia atrasou a aprovação e a compra das vacinas. Sem chegar para os 450 milhões de habitantes, os próprios responsáveis da Comissão afirmam ter confirmado a compra de cerca de 2,3 milhões de milhões de doses e, contudo, agora não há vacinas disponíveis para dar continuidade ao processo, ao contrário do que acontece em outros países.

A União Europeia, como alguns outros países ricos, teve mais olhos do que barriga e agora verifica-se que apenas dez deles dispõem de 75% da produção de vacinas. Um absurdo completo que fará com que a pandemia e seus tremendos efeitos económicos continuem a propagar-se.

A União Europeia procedeu com obscurantismo nas contratações. Excepto apenas em um caso, os contratos não foram divulgados, apesar de subscritos com dinheiro público; e só por engano ou fuga de informação se sabe dos preços das vacinas ou que renunciou a exigir responsabilidade às empresas. Uma autêntica barbaridade quando, ao mesmo tempo, permitiu-se que o processo de obtenção das vacinas tenha sido irregular e muitas vezes ditado pelos interesses financeiros dos laboratórios.

Enganaram a cidadania, como o fez a Comissária da Saúde do Parlamento Europeu quando afirmou que "a Comissão está legalmente impossibilitada de revelar as informações contidas nestes contratos devido à natureza altamente competitiva deste mercado" ( aqui ). Uma mentira vergonhosa porque o mercado no qual as vacinas Covid-19 são produzidas e distribuídas é exactamente o oposto, muito pouco competitivo. É, na realidade, oligopolista e inclusive monopolista em alguns casos ou sob certos pontos de vista. Portanto, o inteligente, o razoável, o mais justo, inclusive o menos caro e, naturalmente, o mais seguro para a vida das pessoas, teria sido corrigir esse mercado não competitivo, domá-lo, submetê-lo às forças que não actuam com a autêntica competição que torna os mercados eficientes, não aceitando as ineficientes e perigosas condições para a saúde impostas pelos malabaristas que saltam as leis que deveriam nortear o funcionamento dos mercados para que funcionem adequadamente.

As autoridades da União Europeia aceitaram que empresas como a Pfizer venham a ter margens de lucro entre 60% e 80% com a sua vacina ( aqui ) e, em geral, que todas elas façam o maior negócio da sua história graças à investigação básica realizada por instituições públicas têm feito ( aqui ) e com o dinheiro dos governos que agora não reivindicam o valor gerado pelos seus investimentos ( aqui ). Simplesmente falando, é falso que vacinas contra a Covid-19 só tenham sido possíveis graças ao esforço de investimento das empresas farmacêuticas e ao monopólio que as patentes lhes conferem. Como expliquei há meses ( A Covid-19 e a propriedade de vacinas e medicamentos ) o regime de propriedade e as actuais condições dos mercados não facilitam a inovação, nem melhoram a cobertura da saúde no mundo, mas sim pioram, dentre outros motivos, porque as empresas dedicam mais recursos para obter rentabilidade financeira do que para inovar: em 2017, 2018 e 2019 eles dedicaram US28,6 milhões de milhões em recompras e US$10 milhões de milhões em I&D ( aqui ).

As autoridades da União Europeia renunciaram a considerar a solução para a pandemia, as vacinas, como aquilo que deveria ser, um bem público ao qual deveriam aceder de modo gratuito e equitativo acessível todas as pessoas do mundo, uma vez que o Covid-19 é um mal global. Ao contrário, permitiram que convertessem em mais uma mercadoria, impedindo assim seu uso generalizado, eficiente, menos custoso e seguro.

A União Europeia, ou seja, a Comissão que tomou decisões executivas erróneas, o Parlamento que não foi capaz de impor princípios morais e medidas políticas alternativas, e os governos de todos os países que não souberam coordenar-se com eficácia, nem sobrepor os interesses gerais e os cuidados de saúde aos mercadores das grandes empresas, são responsáveis pelo que se passa na Europa.

A União Europeia desistiu de actuar como um motor do progresso e sucumbiu mais uma vez – quando a doença e a morte de milhões de pessoas e uma gigantesca crise económica exigem mais do que nunca uma política para o bem comum – à lógica do capitalismo financiarizado, especulativo e monopolista do nosso tempo. É uma vergonha e uma ignomínia que, em vez de se preocupar em adoptar soluções imediatas, eficazes, seguras e justas na Europa e de contribuir para que o mesmo aconteça no resto do mundo, as autoridades europeias não dêem trégua e estejam mais dedicadas a recordar os cortes no bem-estar, nas pensões, nos cuidados, na educação ou na saúde que os governos deverão fazer quando tudo isto estiver concluído.

A União Européia é responsável pelo que está a acontecer com a pandemia na Europa e especificamente pelo fracasso da estratégia de vacinação porque renunciou ao que poderia ter feito e que é contemplado e assumido pela Organização Mundial de Saúde, a expropriação das patentes cujo monopólio afecta o Covid19. Como vêem solicitando centenas de autoridades, ganhadores do Nobel, cientistas e organizações de todo tipo ( aqui ), para combater a pandemia era necessário por em comum todas as patentes, dados, conhecimentos e tecnologias disponíveis no planeta; um plano global de produção e distribuição com transparência e a preços reais; e a garantia de que a vacina seria fornecida gratuitamente a todas as pessoas e com prioridade para os mais expostos, os mais vulneráveis e os países com menor capacidade de salvar vidas.

A União Europeia é responsável e agora não pode culpar terceiros, porque era sabido que uma estratégia de mercado como a adoptada pelos seus dirigentes ia ter as consequências que estamos a sofrer.

Até mesmo um dos maiores defensores do mercado, Milton Friedman, reconhecia que "é claro, a existência de um mercado livre não elimina a necessidade de um governo. Pelo contrário, o governo é essencial como fórum para determinar as regras do jogo e como árbitro para aplicar as regras que são decididas". O problema da União Europeia é que insiste em que essas regras não são aquelas que querem os oligopólios e monopólios que dominam os mercados e transformam-nos em fontes de ineficiência, insegurança, imoralidade e injustiça que matam pessoas. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Vacinas e UE: já nem gananciosos conseguimos ser


por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 08/02/2021)

Daniel Oliveira

Depois de despejar dinheiro no desenvolvimento da vacina, a UE depende dos “melhores esforços” das farmacêuticas. Agora, não se trata de nacionalizar ou expropriar. Trata-se de receber em tempo útil aquilo que se pagou. Com a cedência das patentes a preços decentes ou libertando-as, como permite a Declaração de Doha, para as produzir. Julguei que a Europa tinha mostrado ganância, não garantindo vacinas para os países pobres. Mas a fraqueza perante as grandes empresas já nem defende os países ricos. Mendiga o que pagou.



Escrevi, no Natal, que tudo se preparava para que os países mais pobres ficassem de fora das contas das vacinas contra a covid-19. Que os países mais ricos trataram de si e não garantiram um sistema que permitisse a mais rápida vacinação do máximo de pessoas em todo o planeta. E que isso tinha um futuro: o encerramento das fronteiras do primeiro mundo para se defender da pobreza infetada. Estava a léguas da verdadeira dimensão do problema. Longe vão os tempos em que os Estados do primeiro mundo tratavam de si. Não tinha consciência, devo confessar, da fragilidade dos contratos que estavam a ser assinados com as grandes farmacêuticas. Como não são integralmente públicos, não sou inteiramente culpado.

Como todos sabem, a muito elogiada e rápida caminhada para a vacina foi financiada por apoios públicos nunca vistos. Como se recorda aqui, os riscos ficaram totalmente cobertos pelos Estados e pela UE. Da fase de investigação e desenvolvimento aos seguros de risco, tudo foi garantido às farmacêuticas. Os países mais ricos queriam acelerar o processo e garantir para si a primeiras boias de salvação. A pressão política era grande e compreende-se. Mas deixaram as patentes incondicionalmente nas mãos das farmacêuticas, oferecendo-lhes numa bandeja todo o poder de gerir a oferta, apesar do financiamento público estratosférico que receberam. Saiu-lhes a sorte grande: o CEO da Pfizer vendeu uma parte das suas ações depois dos primeiros ensaios positivos e Moderna e Pfizer prometem encaixes financeiros de milhares de milhões aos seus acionistas.

Disse-se que a nova Comissão Europeia tinha nesta crise o teste em que os seus antecessores chumbaram, quando chegou a crise financeira. A reprovação é clamorosa. É o investigador-chefe do Centre for European Policy Studies que o diz: “é claro que a compra conjunta de vacinas pela União Europeia falhou.” De tal forma clamorosa que o Reino Unido consegue, neste momento, vender sem qualquer dificuldade as vantagens do Brexit. Já nem falo da figura que fazemos ao lado da Rússia e da China, que aproveitam a suas vacinas para fazer diplomacia.

Depois de despejar rios de dinheiro público no desenvolvimento da vacina, a União depende dos “melhores esforços” das farmacêuticas. Charles Michel insinua que os laboratórios estão a gerir a produção e distribuição em função dos seus interesses comerciais. Mas, perante sucessivas violações do contrato, que podem nem sequer o chegar a ser de tal forma são curtas as defesas de quem pagou adiantado, sobra a ameaça de litigância em tribunais. Neste momento, servem para nada.

Os mais otimistas fazem coro com os apelos de Tedros Ghebreyesus, para que as farmacêuticas disponibilizem a “receita”, aumentando rapidamente a produção que salvará muitas vidas. Não desmereço o esforço e junto-me a ele. Mas já não acredito no Pai Natal. Espero mais do que apelos. O poder de meia dúzia de grandes empresas não se pode sobrepor à vida de milhões de vidas. Para os que só entendem o discurso do mercado, o poder de meia dúzia de empresas não se pode sobrepor à reabertura da economia global. A urgência de vacinar e até de fazer atualizações por causa de novas variantes não permite que se fique à espera que as farmacêuticas temam litigância nos tribunais. Seguramente que lhes compensará.

Enquanto morrem pessoas, há inúmeros laboratórios por essa Europa fora que não estão a produzir uma única vacina, numa assombrosa exibição de desperdício de recursos. É preciso produzir mais e mais depressa. Não se trata de nacionalizar ou expropriar. Trata-se de garantir que se recebe em tempo útil aquilo pelo qual se pagou. Produzindo, como outros países fizeram no passado, o que eles estão a racionar com perda de vidas. Com a cedência das patentes a preços decentes ou libertando-as. Nada de radical. 

Declaração de Doha, de 2001, reconheceu o direito de os governos tomarem as medidas necessárias para eliminar patentes e outras barreiras de propriedade intelectual, de forma a dar prioridade à saúde pública sobre os interesses comerciais. Não é de ameaças de litigância que precisamos. É da utilização dos instrumentos internacionais para impor a saúde pública aos interesses de muito poucos.

Como se escreve neste artigo, “Os Estados garantiram patentes para as suas empresas, colocando um gargalo na distribuição e assegurando que ficavam no primeiro lugar da fila para receber a vacina. O regime de oligopólio assim criado explora o desequilíbrio colossal entre uma procura global e uma oferta reduzidíssima.” Com este processo, julguei e lamentei que a Europa tivesse mostrado de novo a sua ganância, não encontrando formas de garantir que os países pobres também tinham acesso às vacinas. Descubro agora que nem de si tratou. A fraqueza do poder político perante as grandes empresas já nem sequer os países mais ricos consegue defender. Paga e depois mendiga o que pagou.

Alemanha já fez saber que não pretende ficar amarrada à estratégia da UE e procurará diversificar as opções de compra, provavelmente indo ter com russos e chineses. Não é difícil prever que, no fim, serão os países mais pequenos e mais pobres da União Europeia a ficar amarrados à incompetência da Comissão. Como é habitual, aliás. E os seus respetivos governos não deixarão de ser responsabilizados por isso. A Comissão também não, mas essa não depende do voto dos povos. Pode ser incompetente à vontade.