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segunda-feira, 1 de março de 2021

Um hino à vida

 

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 26/02/2021)

José Gameiro

Não posso dizer que sempre quis ser médico. Talvez tenha sido pelos meus 15 anos, depois de uma doença grave da minha avó. Marcou-me muito a relação com o colega que a tratava e que falava comigo como se eu fosse um adulto. Explicava-me todos os procedimentos e, quando ela já estava melhor, fez-me uma visita guiada à enfermaria. Pude então ver de relance um quarto em que estava um doente cheio de tubos e fios. Mal eu sabia que viria a ser intensivista.

Fiz o curso sem sobressaltos, concorri ao Internato de Medicina Interna e fiquei. Durante esta fase estagiei nos CI e aí tive a certeza absoluta que a minha vida iria ser ali. Além daquela muito divulgada ideia que salvamos vidas no limite, sempre tive alguma atração pela passagem para o outro lado, para o nada absoluto. Conheci-a nesses meses. Transpirava segurança e a calma de quem já tinha tratado centenas de doentes, muito graves. Tinha uma máxima que nunca mais esqueci, “aqui não se fala da morte, nunca se sabe se os doentes nos ouvem”.

Passaram dois anos até ficar efetivo no hospital. E voltei para a unidade onde tinha aprendido. Mal sabia eu o que me esperava... Ela já era a chefe. Nos primeiros meses, os doentes eram os habituais, politraumatizados graves, com multifalência de órgãos, sépsis, cardiovasculares, complicações pós-cirurgia. Trabalho de rotina, duro, mas satisfatório, uma urgência interna semanal, com a responsabilidade de todos os doentes. E veio a pandemia. Os primeiros doentes muito graves, a tristeza de perdermos alguns e a alegria, quase euforia, de tirarmos muitos do fundo.

A pouco e pouco o ambiente foi mudando. Tornámo-nos mais próximos, por vezes quase confidentes. Os pequenos intervalos para um café ficavam, por vezes, parecidos com festas de finalistas. Claramente o stresse tinha de sair por algum lado. Uns cantavam, outros contavam anedotas, cada vez mais arrojadas. Depois voltávamos a vestir os fatos de proteção individual e ficávamos ultrafuncionais, com gestos seguros, a cumprir os protocolos há muito estabelecidos.

Tínhamos instituído equipas de dois, para alguns procedimentos. Um pouco como trabalham dois pilotos num cockpit de avião. Um faz e o outro verifica.

Foi ao puncionar uma artéria mais difícil que senti a mão dela a guiar a minha. Mesmo com luvas, não me foi indiferente. Fez um sorriso aberto, que só vi nos olhos, por trás da viseira.

— Vês como é fácil, já fizeste tantas, estás cansado, a mão tremia-te.

Seguimos para a doente seguinte. Uma senhora com 90 anos, sedada há duas semanas e ainda com um prognóstico muito fechado. Antes de ser entubada pediu-nos para, sempre que possível, lhe deixarmos junto ao ouvido o telefone. Tinha muitas playlists, se pudéssemos ir mudando, agradecia. Na dúvida, tentámos respeitar. De Bach a Mozart, passando pelos Beatles e Rolling Stones, ouviu tudo. Enquanto a observávamos trauteámos a ‘Michele’.

Parecia estar a ser um dia, não direi leve, mas sem nenhuma tragédia, quando os alarmes dispararam. Um jovem internado há dois dias, em paragem cardíaca. Os gestos foram automáticos, na sucessão protocolada das intervenções. Ainda conseguimos reanimá-lo, mas, depois, perdemo-lo para sempre. Foi o único jovem que não resistiu, na nossa unidade. Disse-me que, ao fim de tantos anos, não conseguia habituar-se àquilo. Que um velho morra é a lei da vida, agora um miúdo, com a vida toda à frente, é muito injusto. Preciso de ir beber um copo, vens comigo?

Hesitei, mas fui. Levou-me para um local com uma vista deslumbrante sobre a foz do Tejo.

— É aqui que venho quando preciso de pensar em mim. Nunca deixes de pensar em ti, se o fizeres as coisas correm mal.

Encostou a cabeça no meu ombro e pegou na minha mão. O que aconteceu depois apaguei.

Segui, quase à risca, uma das orientações das UCI.

O que acontece aqui dentro, não passa lá para fora.

Mas é sempre um hino à vida.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Rabo de fora, gato escondido

Posted: 27 Feb 2021 04:08 AM PST

 


«Em janeiro estavam registadas no Instituto do Emprego e Formação Profissional cerca de 420 mil pessoas desempregadas. São mais 100 mil do que em janeiro do ano passado, apesar das medidas de apoio à economia e às empresas, nomeadamente das diversas modalidades de lay-off. Foram apanhados por esta vaga de desemprego sobretudo trabalhadores em situações de precariedade.

Contudo, aquele número não inclui outros que são precários profundos: do trabalho informal, "colaboradores" de empresas parasitas de fornecimento de mão de obra, imigrantes sem papéis, ou pessoas obrigadas a serem empresárias de si mesmo. São vítimas de uma dupla desproteção: não têm vínculo com as empresas para quem efetivamente trabalham e são excluídos, total ou parcialmente, da proteção social.

A maior parte não pode sequer registar-se como desempregada ou aceder ao subsídio de desemprego. Todos os dias aparecem aos milhares, sem rendimentos ou com magríssimos apoios sociais criados durante a pandemia, a socorrerem-se de instituições diversas, para se alimentarem e sobreviver.

A pandemia realçou o lugar e o valor central do trabalho. Velhas e novas tecnologias, o teletrabalho, a robotização, a inteligência artificial, as plataformas digitais, a possibilidade de realizar trabalho remoto estão aí, e vão influenciar a organização e as formas de prestação do trabalho de muitas pessoas. Mas é uma fraude dizer-se que no futuro não haverá empresas e que os trabalhadores terão de passar a ser "colaboradores" sem contratos de trabalho, pendurados em plataformas comandadas por algoritmos. O anúncio desse futuro apocalítico (feito até por quem do alto do seu império escreve as leis) serve para estilhaçar, desde já, o emprego protegido por legislação que assegura segurança e quadros de direitos e deveres reconhecidos pelas partes - trabalhadores e entidades patronais.

O comissário europeu do Emprego e Direitos Sociais (Expresso Economia online, 24 de fevereiro" afirma: "quando uma pessoa trabalha para ou através de uma plataforma não deve ser colocada numa situação em que a proteção social ou os direitos laborais básicos não se aplicam". Magnífico. Todavia, continua: "Para mim a questão não é se a pessoa é um funcionário ou um trabalhador por conta própria".

E acrescenta que, mesmo em situações em que são prestados serviços às plataformas através de novas empresas ou enquanto trabalhadores independentes, "devem existir direitos à proteção social, como em casos de doença, acidente ou desemprego". Aqui está o rabo do gato escondido. A oferta de uma proteção, paga sobretudo por quem executa o trabalho e pouco ou nada por quem o contrata, como pretexto para expandir a precariedade nas plataformas digitais.

Em muitas plataformas os trabalhadores já hoje são forçados a baixar o custo das tarefas a que podem concorrer até ao limite do suportável ou até ao prejuízo, na esperança de no futuro serem selecionados para outras tarefas. No passado o trabalho realizado em casa por adultos, crianças e idosos também era intermediado por mercadores que se limitavam a vender os produtos e a acumular as margens de lucro.

Isto não pode ser o Pilar Social Europeu. A extensão da proteção social em caso algum compensa a perda de segurança resultante da inexistência de contratos de trabalho, enquadrados pelo Direito do Trabalho e pela ética.»

Estado da direita: nevoeiro e borrasca

 

por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 27/02/2021)

(Que ia voltar o D. Sebastião de Massamá, dizia o Expresso aqui. Agora parece que já não volta, diz também o Expresso aqui, talvez por até os "Desejados" temerem o vírus e a pandemia, may be... 😉

Assim sendo, bem podem os meteorologistas opinar mas, em 25 de Março já não teremos uma manhã de nevoeiro... 😉

Comentário da Estátua, 27/02/2021)


Parece que o político mais preparado, o líder mais forte, a mais convincente e inspiradora promessa para voltar ao poleiro que a direita portuguesa consegue encontrar dá pelo nome de Pedro Manuel Mamede Passos Coelho, um jovem de 56 anos que actualmente dá aulas de não sei quê não sei onde, e que é o nosso melhor especialista no milagre da multiplicação de técnicos de aeroporto para o que seriam dezenas ou centenas de aeroportos na Região Centro, um craque sem rival neste planeta (e não só neste, há seres noutros mundos que conhecem a história e que já confirmaram não terem nos seus sistemas solares quem lhe faça sombra na matéria).

A seu favor tem o registo de ter criado, formado e lançado um político extraordinário chamado André Ventura, também um valiosíssimo talento da direita portuguesa e fulano muito amigo de mandar portugueses emigrarem (sinal inequívoco de ter aprendido com zelo as lições do mestre).

Acontece que não está fácil. O nevoeiro é instável e volúvel. Pelo que este fascinante político – de tão boa memória pelo seu patriotismo e pela melhoria de vida que a classe média e os pobres lhe devem – está na fase de ter de dizer às crianças que lhe acendem velas e beijam os pés: “Acham que me apetece voltar a aturar os estróinas e os madraços que andam a comprar televisores, fazer férias com a família e a jantar fora acima das suas possibilidades? Pensam que tenho algum gosto em lidar com esses piegas a chafurdar na sua zona de conforto? Isso é um disparate.

A pandemia urbanística


por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 26/02/2021)

António Guerreiro

“Airbnb” é o nome de uma empresa fundada em 2008, em São Francisco, na Califórnia, exemplo máximo da ascensão do capitalismo das plataformas. Antes da pandemia, já não era apenas uma marca, tinha-se tornado quase um nome comum para dizer “alojamento local” ou “arrendamento temporário”. No último ano, esse nome quase desapareceu, deixou de ser uma das palavras do poder.

Este desaparecimento tem uma tradução bem visível no plano da nossa realidade urbana. Os centros históricos das cidades turistificadas ficaram vazios e emergiu com dramática evidência o que era bem sabido e longamente diagnosticado, mas que era visto pelos poderes gestionários — económicos, políticos, mediáticos — como um mal menor que até era fácil esconder ou menosprezar porque neste domínio tem valor de evidência a regra segundo a qual “tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece”. Quando, subitamente, por efeito de uma pandemia, o fenómeno do aparecimento espectacular foi interrompido, o que se torna conspícuo é o desaparecimento. Medir os seus efeitos e contabilizar as suas vítimas é por enquanto uma tarefa impossível porque o processo não chegou ao fim e não é fácil prever o que se vai passar. Mas se há aspectos em que é possível dizer com alguma segurança que nada será como dantes, a vida das cidades é um deles. Por agora, a paisagem dos centros históricos das cidades turísticas, onde se tinha instalado uma monocultura, permanecem vazios, espectrais. São imagens de pesadelo que deixam adivinhar miséria e projectos interrompidos que por agora ainda é possível silenciar, mas que hão-de tornar-se vozes desesperadas e de revolta. Os actuais tumultos nalgumas cidades espanholas, principalmente em Barcelona e Madrid, tendo muito embora sido incendiados por uma sentença que a Justiça aplicou a um rapper, têm a motivação anárquica das revoltas actuais. Como mostram as reportagens, são quase exclusivamente os jovens desocupados ou precários que têm alimentado estas manifestações inorgânicas que resultam em destruição e confrontos com a polícia. Quando o turismo desaparece, as cidades que dependiam dele começam a ser obrigadas a erguer barricadas.

Sabemos bem, até porque não há promessa mais reiterada no último ano, que tudo será feito para que a vida anterior retome o seu curso, com os mesmos ou, substituindo os que sucumbiram de vez, com outros. Mas há aqui um problema de tempo. Um ano de interrupção, medido pela escala da velocidade e da aceleração necessárias para o equilíbrio do sistema, é muito tempo, produz instabilidade destruidora. Há muita coisa que não vai, pura e simplesmente, ser retomada. E entre essas coisas sujeitas à descontinuidade está a lógica que governava as cidades turísticas. Evidentemente, não é de esperar que Veneza ou Roma continuem, como agora, vazias. Mas alguns factores de esvaziamento vão manter-se mesmo quando acabar a pandemia, por razões psicológicas, mas também por questões logísticas (por exemplo: como é que as companhias aéreas de low cost vão retomar a sua actividade, depois de um desastre desta dimensão?).

Entretanto, vamos tendo notícias que indiciam algumas mudanças que podem tornar-se irreversíveis, mesmo que se façam todos os esforços para retomar a “normalidade”. De Itália, chega-nos através da revista Micromega, dirigida por Paolo Flores d’Arcais, um dossier sobre o “depois do vírus”, onde se faz o retrato de uma “pandemia urbanística” que obriga a uma tarefa ingente: nada mais nada menos do que “redesenhar a Itália”, mudar o “perfil do nosso território” e deter a “corrida da urbanização”. Em suma: o desastre da pandemia ocorrido no último ano mostrou o verdadeiro rosto de um desastre muito anterior que muitos queriam disfarçar. E em França, na semana passada, o Le Monde publicou uma reportagem sobre o êxodo das pessoas para cidades mais pequenas, como menos de 100 mil habitantes, porque o custo de vida é mais baixo, a qualidade é melhor e o modelo da megalópole como Paris só já atrai o turismo ou quem tem muito dinheiro.

Neste modelo de desenvolvimento, as fronteiras da periferia atravessam os centros. Quanto à vida urbana, a pandemia tem efeitos devastadores, mas o fim da cidade tal como a conhecemos no auge da turistificação e do neo-liberalismo estava anunciado e já não pode ser detido. 

A bazuca, agora em vídeo


por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 26/02/2021)

Portugal é uma questão de fé. Já era, com o milagre, a azinheira e os três pastorinhos que nos iam salvar e que anunciaram, a sobreviva, a conversão da Rússia. Como se vê, a Rússia converteu-se ao capitalismo. Viver em Portugal, se queremos estar confortáveis, significa abolir a dúvida e deixar a crença instalar-se. Mais do que a benzodiazepina, que faz mal à cabeça, o que se pretende é um programa de fé, começando por acreditar em tudo o que nos prometem, tudo o que nos explicam, tudo o que nos adiantam e tudo o que nos atrasa. Acreditar, eis a palavra. Este processo tem diversas fases de habituação e deve ser iniciado com a experimentação da abolição da dúvida sobre pequenas coisas, pequenos temas, minudências e excrescências.

Como no Direito, os casos práticos são o teste à vontade de acreditar, ao desejo de pegar em rosas mentirosas sem picar os dedos.

Por exemplo, comecemos por acreditar em tudo o que dizem em Portugal certos representantes que transportam o apelido Loureiro. Chamem-se eles Manuel, Valentim, João, o que quer que seja. Se é Loureiro é, deverá ser, certificado e verdadeiro. O João Loureiro, dirigente desportivo de um clube do Norte, diz que apanhou uma boleia para o Brasil num jato privado que depois se veio a saber transportava meia tonelada de cocaína no porão. O Loureiro certifica que só ia ao Brasil a uma entrevista de emprego de consultoria, e mesmo assim porque lhe ofereceram lugar no avião ao lado de um espanhol suspeito de tráfico em que a nossa Polícia Judiciária andava “de olho”. Logo esta expressão, andar de olho em cima de alguém, é deliciosa. Congratulemo-nos. Apesar do olho, os dois passageiros viajaram sossegadamente, podem ter trocado algumas palavras sobre um espumante ou uma cava, comentando, apesar da proibição de viajar para o Brasil, afinal sempre se pode dar um salto a São Paulo e Salvador porque ninguém maça. Isto, apesar do olho.

O Brasil costuma ser um país agradável para se viajar em pandemia, mas a Polícia brasileira estragou tudo com uma inspeção que revelou a meia tonelada de droga. Ora, como ia o nosso Loureiro saber do porão? Porventura, uma pessoa que viaja num jatinho, ainda por cima à borla e de boleia, vai inquirir sobre a carga? Ouça lá, aquilo que estão a carregar são as malas do espanhol? Porque eu só trago mala de cabina. É muita mala. Não, não, são uns pastéis de Belém para a família no Brasil. Um azeite português, e umas garrafas de Douro, colheita escolhida. E uns Rioja mais uns Pata Negra, no Brasil apreciam muito o enchido e o fumado ibérico. O nosso Loureiro disse logo, não tenho nada a ver com este filme, apesar de interrogado. Queria ser repatriado, mas parece que não lhe deram lugar no voo “humanitário” da TAP, onde decerto virá mais gente que só foi ao Brasil entregar um farnel. A variante já cá está, não vale a pena estar com imposições. Acreditemos que o Loureiro está inocente, presumidamente, e o resto alegadamente, e nem sabe o que é cocaína e muito menos benzoilmetilecgonina. No Norte, basta a palavra de um homem.

Segundo caso prático, mais complexo. A União Europeia quer que acreditemos que fez tudo bem e que em nome do ideal europeu teve de comprar vacinas para os 27 tentando um preço de saldo e por atacado, à dúzia é mais barato. No regateio, não acertou no shot, perdeu a vez na fila e agora estamos todos à espera de Godot e que se terminem de construir as fábricas de vacinas, rapidíssimas de construir. Um dubitativo diria duas coisas. Primeira, a Europa já nos pediu muitas coisas, entre elas que deixássemos de viver acima das nossas possibilidades de país mais pobre e desigual da Europa Ocidental, o género de país onde as crianças para comerem têm de ir à escola e dormem em casas geladas e gretadas, mas nunca nos tinha pedido para sacrificarmos a vida pelo ideal europeu. Para manter os 27 coesos, coisa que não aconteceu nem acontecerá, vocês têm de aturar mais uns milhares de mortos e de doentes até acertarmos a vacina.

Segunda coisa, no caso português, como somos um pequeno país, Bruxelas quer que acreditemos que se não fosse a Europa íamos estar anos à espera da vacina. Qualquer lista de países adiantados na vacinação nos diz o contrário, que os pequenos países teriam maior flexibilidade e, se tivessem planeado antecipadamente, e pago, coisa que detestamos fazer, pagar, teriam a população vacinada muito antes dos grandes países. Ora, há que acreditar na Europa, mesmo sabendo que o preço é elevado desta vez, a vida e a liberdade pelo ideal europeu.

E há que acreditar que, tendo nós os governantes que temos, mais os milhares de “especialistas” e diretores, se dependesse desta gente comprar a vacina e pagá-la a tempo e horas, planear decentemente, pagar, nem em 2025 tínhamos a primeira pica.

Planear não faz parte do nosso ethos, e pagar ainda menos. Uma borla é, como a raspadinha, o sonho de todos os portugueses. Desprezar uma borla, mesmo arriscando vidas, é insuportável. Acreditemos que é melhor assim, e sempre se salva o ideal europeu que acaba de decidir que não compra vacinas aos russos porque eles humilharam um europeu de Bruxelas chamado Borrell, que parece que fez uma viagem estúpida a Moscovo sem ninguém lhe mandar. Não, não é por causa do Navalny. É por causa do burocrata Borrell, e da humilhação, e acreditemos que Bruxelas sabe o que que faz. Fique em casa.

Por último, a fé ilumina-se com mais uma injeção de capital. Desde o império que Portugal vive embasbacado com as injeções de capital. Como diria o Palma Cavalão do Eça, um belo tipo de português, já cá canta o dinheirinho. O Costa deu-nos a bazuca, agora também chamada de vitamina, e um PRR. Dantes havia o PPR, uma poupança para descontar nos impostos e injetar capital na pátria e na banca, e agora vem aí o PRR, o Plano de Recuperação e Resiliência. Dinheiro fresco e abundante a ser repartido pelo Estado e os artilheiros do PS em “projetos”.

Precisamos de projetos, projetos de futuro, e projetos sustentáveis, e projetos bonitos, e precisamos de os executar. E tudo muito verde e tal e coisa. Ora coisa em que nunca fomos bons é em projetos e em executar, sobretudo executar projetos que não passam de um conjunto de boas ideias, vulgo fantasias. A nossa especialidade é vender as pratas. No cansaço das arruinadas almas lusitanas, temos de acreditar que pela primeira vez na História desde os Lencastre e a Ínclita Geração vamos arranjar energias para planear e executar. Com rigor e probidade. E sem aproveitar a borla para comprar o segundo BMW ou o Mercedes. Alguém acredita nisto? Não. Mas a bazuca, que Costa nos oferece agora em vídeo, chegou aos ecrãs nacionais. E não custa nada. É um vídeo de borla. Ora, se é de borla, acreditemos que vale a pena, como dizia Rimbaud, perder por delicadeza a vida. A fé é que nos sustenta. E o ideal europeu. E o dinheirinho.