por estatuadesal |
(José Gameiro, in Expresso, 26/02/2021)
Não posso dizer que sempre quis ser médico. Talvez tenha sido pelos meus 15 anos, depois de uma doença grave da minha avó. Marcou-me muito a relação com o colega que a tratava e que falava comigo como se eu fosse um adulto. Explicava-me todos os procedimentos e, quando ela já estava melhor, fez-me uma visita guiada à enfermaria. Pude então ver de relance um quarto em que estava um doente cheio de tubos e fios. Mal eu sabia que viria a ser intensivista.
Fiz o curso sem sobressaltos, concorri ao Internato de Medicina Interna e fiquei. Durante esta fase estagiei nos CI e aí tive a certeza absoluta que a minha vida iria ser ali. Além daquela muito divulgada ideia que salvamos vidas no limite, sempre tive alguma atração pela passagem para o outro lado, para o nada absoluto. Conheci-a nesses meses. Transpirava segurança e a calma de quem já tinha tratado centenas de doentes, muito graves. Tinha uma máxima que nunca mais esqueci, “aqui não se fala da morte, nunca se sabe se os doentes nos ouvem”.
Passaram dois anos até ficar efetivo no hospital. E voltei para a unidade onde tinha aprendido. Mal sabia eu o que me esperava... Ela já era a chefe. Nos primeiros meses, os doentes eram os habituais, politraumatizados graves, com multifalência de órgãos, sépsis, cardiovasculares, complicações pós-cirurgia. Trabalho de rotina, duro, mas satisfatório, uma urgência interna semanal, com a responsabilidade de todos os doentes. E veio a pandemia. Os primeiros doentes muito graves, a tristeza de perdermos alguns e a alegria, quase euforia, de tirarmos muitos do fundo.
A pouco e pouco o ambiente foi mudando. Tornámo-nos mais próximos, por vezes quase confidentes. Os pequenos intervalos para um café ficavam, por vezes, parecidos com festas de finalistas. Claramente o stresse tinha de sair por algum lado. Uns cantavam, outros contavam anedotas, cada vez mais arrojadas. Depois voltávamos a vestir os fatos de proteção individual e ficávamos ultrafuncionais, com gestos seguros, a cumprir os protocolos há muito estabelecidos.
Tínhamos instituído equipas de dois, para alguns procedimentos. Um pouco como trabalham dois pilotos num cockpit de avião. Um faz e o outro verifica.
Foi ao puncionar uma artéria mais difícil que senti a mão dela a guiar a minha. Mesmo com luvas, não me foi indiferente. Fez um sorriso aberto, que só vi nos olhos, por trás da viseira.
— Vês como é fácil, já fizeste tantas, estás cansado, a mão tremia-te.
Seguimos para a doente seguinte. Uma senhora com 90 anos, sedada há duas semanas e ainda com um prognóstico muito fechado. Antes de ser entubada pediu-nos para, sempre que possível, lhe deixarmos junto ao ouvido o telefone. Tinha muitas playlists, se pudéssemos ir mudando, agradecia. Na dúvida, tentámos respeitar. De Bach a Mozart, passando pelos Beatles e Rolling Stones, ouviu tudo. Enquanto a observávamos trauteámos a ‘Michele’.
Parecia estar a ser um dia, não direi leve, mas sem nenhuma tragédia, quando os alarmes dispararam. Um jovem internado há dois dias, em paragem cardíaca. Os gestos foram automáticos, na sucessão protocolada das intervenções. Ainda conseguimos reanimá-lo, mas, depois, perdemo-lo para sempre. Foi o único jovem que não resistiu, na nossa unidade. Disse-me que, ao fim de tantos anos, não conseguia habituar-se àquilo. Que um velho morra é a lei da vida, agora um miúdo, com a vida toda à frente, é muito injusto. Preciso de ir beber um copo, vens comigo?
Hesitei, mas fui. Levou-me para um local com uma vista deslumbrante sobre a foz do Tejo.
— É aqui que venho quando preciso de pensar em mim. Nunca deixes de pensar em ti, se o fizeres as coisas correm mal.
Encostou a cabeça no meu ombro e pegou na minha mão. O que aconteceu depois apaguei.
Segui, quase à risca, uma das orientações das UCI.
O que acontece aqui dentro, não passa lá para fora.
Mas é sempre um hino à vida.