Posted: 09 Mar 2021 03:55 AM PST
Posted: 09 Mar 2021 03:55 AM PST
por estatuadesal |
(Jorge Rocha, in Blog Ventos Semeados, 09/03/2021)
Dispenso-me quase sempre de ouvir o que diz Marcelo. Nunca com ele simpatizei e não é nesta altura da vida, que vou mudar de opinião quanto à sua sobrevalorizada personalidade. Filho e afilhado de fascistas, soube reciclar-se nos padrões canónicos da Democracia, mas sem perder de vista os valores e a perspetiva ideológica das direitas, que tão opostas são relativamente ao tipo de sociedade onde anseio viver e em que sinta potencialmente mais felizes as minhas netas.
Desta vez, porém, abri exceção tendo em conta o sucedido da vez anterior em que um presidente se viu reconduzido para um segundo mandato. Quem esquece a guerra anunciada por Cavaco contra José Sócrates nesse dia em que soubemos toldado o futuro imediato pelo previsível acesso das direitas entroikadas ao que qualificavam como pote?
Talvez o sinal mais emblemático da razão porque talvez, desta feita, não se perspectivem grandes embates institucionais entre Belém e São Bento, seja o de Cavaco ter saído da cerimónia sem ter cumprimentado o reempossado sucessor. Por não ter gostado da passagem do discurso em que ele rejeitava expressamente a imagem do país amordaçado que, ridiculamente, quis colar à ação deste governo que execra? Por certo que sim, embora os antigos prosélitos, queiram desculpar-lhe a vindicta rancorosa a título de inexplicável distracção.
Mas, não excluindo a sua senilidade - que a sê-lo assim manifestada, de há muito data! - sabemos bem que tipo de (falta de) carácter o norteia, não havendo assim novidade, que nos cause verdadeira admiração. Afinal, e apenas, o auto convencimento de quem já de tudo se julga legitimado por se considerar inimputável das muitas malfeitorias, que foi acumulando no curriculum.
No geral o discurso de Marcelo foi apaziguador das tensões, que as direitas gostariam de vê-lo promover contra o governo, desarmando quem teima em criticar quem tudo tem feito dentro do possível para vencer as sucessivas vagas da crise pandémica e se vem confrontando com a permanente dose de imprevisibilidade das suas circunstâncias. A deslegitimação dessas críticas transforma em pólvora seca as munições, que as oposições consideravam deter para prosseguir o afã de sucessivos disparos contra o governo. Razão para se reconhecer genuína a tranquilidade de António Costa durante toda a cerimónia ou na intervenção depois feita perante os jornalistas.
Com tão incompetente oposição o primeiro-ministro sabe que os maiores desafios dos anos vindouros continuarão a ser os decorrentes da pandemia e os das ameaças ambientais, que obrigarão a decisões económica e socialmente exigentes. Com Marcelo a cumprir o seu papel de figurante, embora aparentemente com um poder que sabe não ter...
por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/03/2021)
Um certificado de vacinação não me levanta problemas. Existe para a febre amarela. Mas só pode haver limitações de movimentos se as vacinas estiverem disponíveis para todos. Para Bruxelas, a propriedade (mesmo paga com dinheiro público) é tão sagrada que, ao arrepio dos acordos internacionais, as patentes estão acima da saúde pública. Para não lhes tocar, está disposta a abrir alçapões morais e jurídicos. A questão não é a globalização. É o que está primeiro: lucro de poucos ou bem estar de todos? Propriedade ou liberdade?
A Alemanha e, por inerência de funções, a Comissão Europeia, avançou com a ideia de criar um passaporte de vacinação. À partida, um certificado de vacinação não me levanta qualquer problema. Quando viajamos para vários países ou de alguns países é obrigatório, por exemplo, o certificado internacional de vacinação para a febre amarela. Até defendo a obrigatoriedade de algumas vacinas que constam no plano nacional de vacinação para inscrição na escola pública, por exemplo.
A imunidade de grupo para algumas doenças implica a participação de todos. E a recusa da vacina é um ato de parasitismo, em que alguém que não quer correr qualquer risco se protege à custa do risco alheio. A liberdade individual não pode pôr em perigo a segurança coletiva. A moda dos antivaxxers é uma doença do individualismo extremo e do conforto que tem correspondido, em alguns países do primeiro mundo, a um recuo de décadas na saúde pública.
Mas qualquer limite de movimentos determinado pela a ausência de vacina contra a covid tem de ter como pressuposto que as vacinas estão disponíveis para todos e em todos os países europeus. Não estar vacinado tem de corresponder a uma escolha. Caso assim não seja, estaremos perante uma segregação de grupo inaceitável numa Europa que se diz democrática e solidária.
A parte interessante deste debate tem a ver com a inversão de valores a que assistimos na União Europeia. Esta proposta surge na mesma Comissão Europeia que é incapaz de usar a legislação internacional para levantar ou pelo menos ameaçar levantar as patentes, perante o descarado incumprimento dos deveres de umas poucas empresas farmacêuticas. Não tem nada de radical. Permite-o a declaração de Doha, no âmbito do TRIPS e da OMC. Como já aqui foi explicado, dezenas de países quebraram patentes, já neste século, em nome da saúde pública. Os EUA fizeram-no quatro vezes nos últimos 20 anos. Uma delas sobre o Tamiflu, durante a gripe das aves. E não é verdade que não haja, na Europa e fora dela, capacidade extra de produção.
Mas, para Bruxelas, a propriedade é sagrada. Tão sagrada que, ao arrepio dos acordos internacionais de comércio, está acima da saúde pública. Tão sagrada que é intocável mesmo quando foi paga com dinheiros públicos e os contratos não são cumpridos. E tão sagrada que a Comissão Europeia está disposta a abrir alçapões morais e jurídicos para não lhe tocar.
Este é apenas o primeiro sinal do que previ, em dezembro, que viria a acontecer quando se percebeu qual seria o modelo para o financiamento e produção destas vacinas. Com os países mais pobres a terem acesso mais generalizado às vacinas lá para 2024, viveremos anos em que a Europa se tornará numa fortaleza ainda mais murada e fechada sobre si mesma, para se proteger dos infetados. Um maná para a extrema-direita.
É curioso ver como os maiores defensores das maravilhas do capitalismo globalizado estão disponíveis para encerrar fronteiras e limitar a liberdade de movimentos das pessoas só para não tocarem na propriedade. O que prova que a divisão política entre os que estão abertos ou fechados ao mundo e à globalização é enganadora. A questão é a que sempre foi: que valores estão primeiro? O lucro de poucos ou o bem-estar de todos? A propriedade ou a liberdade?
por estatuadesal |
(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 09/03/2021)
A tomada de posse do segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa é, na simplicidade da cerimónia, a confirmação alegórica da inevitabilidade da sua reeleição, mas também antecipa alguma incerteza sobre o que pode fazer. Ainda assim, tudo parece fácil, doce engano que podemos vir a pagar caro.
Só os fantasistas duvidavam de que era uma vitória escrita nas estrelas. Por isso, sem surpresa, os analistas sublinham (e festejam) o sucesso do primeiro mandato presidencial e a facilidade da sua simples campanha em janeiro, como a prova do êxito de uma estratégia, conquistar o centro. Marcelo representa essa visão, que gere com pinças e a que chama “cooperação estratégica” com o Governo, apesar de o primeiro-ministro só usar relutantemente a expressão.
Ela constitui uma prisão para ambos, exactamente como pretendem: o centro, para um e outro, é essa ponte institucional que serve de referência para a coisa política. E é neste sítio que se reconhecem, o centro, seja inclinado para a esquerda seja para a direita, é em todo o caso o único espaço em que entendem o poder de decisão e a bússola das regras da União Europeia, mas é também o único lugar em que imaginam a sociedade. É, portanto, o confinamento central que desejam e que disputam, de modo elegantemente florentino, porque nessa praça só pode haver uma estátua, mas já se viu quem vai ganhar: agora o primeiro-ministro, que governa beneficiando do apoio permanente e das virtudes pedagógicas do presidente, mas, no fim destes dias, será Marcelo o vencedor, dado que ele estará quando Costa rumar para o seu cargo europeu. O tempo que vai passando cansa o governo e preserva o presidente. Qualquer que seja a transição, mais cedo ou mais tarde, é Marcelo quem a vai gerir.
A bem dizer, muitos dos outros protagonistas imitam esta estratégia da disputa do centro, cada um à sua escala: Costa, na sua recusa feroz de qualquer ajustamento estrutural nas leis laborais ou na capacidade dos serviços públicos, para assim manter a ligação às associações empresariais e a interesses financeiros na saúde; Rio, na combinação, tantas vezes menosprezada mas hábil, entre o apoio ao governo em primeira instância, no aeroporto, nas grandes questões económicas, como na dispensa de debates parlamentares a um primeiro-ministro impaciente com essas democratices, e um discurso com picos de contraste para mobilizar a sua base; e até Jerónimo de Sousa, como se viu na campanha presidencial, que colou o seu candidato ao governo e suscitou encómios entusiasmados por parte dos setores mais à direita do PS, uma aproximação que nenhum arroubo doutrinário pode esconder. O problema é que esta corrida para o centro só tem uma expressão possível: o poder do poder. Ela é um círculo vicioso. Exclui alternativas, não tanto porque não sejam possíveis, mas porque propõem unicamente a fisiologia continuista. Quanto mais incerteza, no mundo em que já se lamenta a saída de Merkel, se teme a eleição francesa, se espera o abismo do fim da política expansionista do BCE e se descobre que Biden tem como prioridade reafirmar a liderança de Washington, tanto mais estreito fica esse caminho do centro, mas mais desejável se torna para os seus cultores. Na dúvida, a sua resposta é que nada será como dantes, a única mudança desta vez é que tudo deve ficar na mesma.
Esta estratégia é um engano e pode ser um engano pesado. Precisamente porque há mais do que dúvidas no nosso horizonte, há também certezas: a fragmentação social, a hipercomunicação em modo de fanatismo e que reduz a política ao tribalismo, a emergência do autoritarismo social para suportar uma economia em que os vencedores são os donos de rendas e, portanto, a deslocação da direita para os proteger. Os estragos que estas mutações provocaram em poucos anos são tão visíveis que surpreende que o comodismo do centro possa fingir ignorá-los: Trump entrou pelas nossas casas adentro e há quem pretenda que basta contar as pratas e sacudir os tapetes para que tudo seja esquecido, sem reparar que ele não saiu da sala. Um terço da direita vai mesmo ser a extrema-direita, são precisas milícias para o programa de privatizar os hospitais ou a segurança social, ou para uma taxa única que baixe os impostos para os milionários.
Há por isso um argumento razoável para propor uma estratégia alternativa, a da polarização com alianças à esquerda, apostando que uma maioria popular e eleitoral apoiará medidas que mudem o dia a dia das pessoas, em vez de esperar alívio pelas pontes ao centro, como o têm feito o primeiro-ministro e o presidente. O enunciado desta política tem, no entanto, uma dificuldade: está a falar outra linguagem, não tem tradução para a que tem predominado. São incomunicáveis, uma garante o vínculo institucional que promete segurança pela afirmação dos protagonistas do poder, outra quer criar a força de propostas que criem segurança na vida da população. Uma é pose, outra deverá ser programa de ação. Uma triunfou sempre, mas foi o seu êxito que abriu o campo ao crescimento das direitas liberais mais autoritárias, outra ainda espera o seu tempo e é o tempo que testará a sua coerência, que lhe falta demonstrar.
Ainda vai haver arrependidos da busca do centro como o Santo Graal, se bem que não saibamos se a estratégia alternativa de polarização à esquerda será suportada pela coerência de propostas, pela visibilidade de soluções, pelo apoio popular e pela decisão de protagonistas. Era melhor que fosse, sem ela a alternância garantirá que ao centro se sucede uma nova direita, seria então a vez do rancor.
Posted: 07 Mar 2021 04:02 AM PST