Posted: 15 Mar 2021 04:34 AM PDT
Posted: 15 Mar 2021 04:34 AM PDT
por estatuadesal |
(Por Valupi, in Aspirina B, 13/03/2021)
António Costa não escolheu ser primeiro-ministro em pandemia, e se pudesse alterar o passado essa surgiria como uma experiência que iria manter fora das suas memórias. Não por causa do eventual desaire eleitoral nas próximas legislativas que os adversários e inimigos se babam a dar como certo em consequência da crise económica já presente e em agravamento imparável, antes por ser um dos mais ingratos papéis aquele que um primeiro-ministro tem de assumir neste tipo de crise de saúde pública – o dele e o de todos os colegas no Executivo, especialmente o da ministra da Saúde (cujo protagonismo estóico e heróico deve ser repartido com Graça Freitas que não pertence ao Governo). Aliás, o papel destas pessoas é muito mais difícil e penoso do que a semântica de “ingrato” comporta, elas estão a passar por uma vivência traumática em tudo equivalente a ficarem retidas num cenário de guerra.
António Costa também não imaginou ao longo da sua vida, até chegar às eleições de 2015 como secretário-geral do PS, que viria a ser o co-autor (mas primeiro subscritor) de uma revolução no sistema partidário português ao conseguir destruir o bloqueio à esquerda que vinha da práxis e herança de Cunhal e que se estendia a Louçã. Concorreram para tal variadas e desvairadas circunstâncias, como sempre no caldo aleatório dos acontecimentos, embora a menor das quais não terá sido a consequência trágica dos idos de Março de 2011. Foi dele, contudo, o mérito de ter aproveitado, para criar um melhor futuro para todos em Portugal, as oportunidades desse presente imprevisto que levaram ao primeiro Governo formado sem o partido com mais deputados – oportunidades que continuam a revelar-se, infelizmente, tão insólitas que parecem irrepetíveis dado o sectarismo endógeno no PCP (menos, graças a Jerónimo e aos ventos da História) e no BE (muito mais, por causa de todos lá dentro e à sua volta).
António Costa é primeiro-ministro e secretário-geral do partido mais votado numa altura em que a direita portuguesa há muito que bateu no fundo e só agora começa a suspeitar que está na altura de parar de escavar. O contraste entre a qualidade política dos quadros do PSD, CDS e IL com os do PS, PCP e Bloco é tão alto que nem dá vontade de gozar. E se enfiarmos o Chega no retrato, ao pasmo junta-se o nojo. Esta diferença de talento nos recursos humanos em cada lado do espectro não é de agora, pois há três décadas que os filhos-família, a elite da oligarquia financeira-económica, faz a sua vida fora de Portugal ou com visceral repulsa pela existência pobretana e chungosa dos políticos que queimam pestanas a legislar e sujam as mãos e a camisa no circuito da carne assada. Enquanto na esquerda o talento implica sempre uma matriz ideológica que enche motivações e agrega vontades, na direita o cinismo e o individualismo antropológicos apenas são eficientes na gestão do poder mas não conseguem ter produção intelectual por falta de alimento e vocação. O resultado é a baixa política, a chicana tribunícia, o golpismo como estímulo máximo da adrenalina e testosterona, a pulsão incontrolável para a violação do Estado de direito como prerrogativa de classe, e o erotismo do ódio político nascido do usufruto do privilégio e da ferocidade da desigualdade.
Este António Costa não tem uma Cofina que lhe persiga adversários políticos, não tem um grupo Impresa que seja arma de manipulação e arremesso ao serviço do militante nº1 do PS, não tem jornalistas altamente influentes na RTP a comportarem-se como editorialistas fanáticos para o ajudar, não tem um único órgão de comunicação que trabalhe para a sua agenda, é exactamente ao contrário.
E, no entanto, consegue comunicar com a comunidade a partir dos seus defeitos e fragilidades, gerando simpatia, empatia e confiança.
Liderando sondagens quando os carolas, meses antes, davam como fatal a sua queda. O fenómeno talvez esteja relacionado com uma genuína ausência de ambição pelo cargo, pelo topo da pirâmide, supostamente revelada in illo tempore em conversa com Vicente Jorge Silva. A sua mediocridade (que quer dizer normalidade, que suscita proximidade), o seu desleixo (não se importando de ser visto como friamente pragmático ou até cobarde no trato de questões de substância idealista) acabam, nesta lógica, por compor um líder perfeito para o Portugal que somos. O País que olha para a sua direita, olha para a sua esquerda, e só encontra projectos de tiranetes e ante-projectos de fantasistas.
Posted: 14 Mar 2021 05:01 AM PDT
«Este fim-de-semana é para esquecer. O dia importante é amanhã, segunda-feira. Porque é amanhã que volta o postigo. O postigo é o filho pródigo da pandemia. À volta do postigo, os portugueses podem pegar num café, segurá-lo nas mãos e, enquanto beberricam, congregar. O português é postigueiro porque o português é gregário. O postigo está-nos no sangue. Parece uma coisa boa - se não fosse boa não a tinham proibido - mas é ancestral. Nem toda a gente tem a sorte de morar em cidades e poder patrocinar quiosques. Os quiosques são os Jerónimos dos postigos. Aliás, os quiosques são os Jerónimos não só dos postigos como dos balcões. É verdade que há quiosques que têm umas mesitas e cadeiras mas nunca houve, que se saiba, português algum que se tenha lá sentado. Os quiosques são para estarmos de pé, usando o balcãozito para pousar o braçolo em momentos de discussão futebolística. Há-de reparar-se que, mesmo em restaurantes finos onde só há mesas, só os portugueses degenerados é que se sentam. Os genuínos encostam-se ao que houver. À copa, se não houver balcão. À máquina de tabaco, se não houver copa. E, se não houver máquina de tabaco, à boa, velha parede. O renascimento do postigo veio despertar um atavismo que julgáramos perdido. Tinha florescido com a cultura do guichet - o postigo do funcionalismo, no sentido antropológico da palavra - mas a introdução das esplanadas e de outros lamentáveis estrangeirismos veio acabar com os nossos doces hábitos congregativos. Agora a questão é saber se o postigo poderá sobreviver à pandemia. É que o pessoal reapaixonou-se pelos postigos, pelas conversas e pelo delicioso vai-e-vem que só os postigos proporcionam. Será difícil arrancá-los outra vez dos nossos cotovelos.» |
por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso, 12/03/2021)
Durante anos, havia, num canto de um quarto e depois na arrecadação da minha casa de infância, uma bandeira vermelha absurdamente pesada. Penso que era de sarja. Pouco mais de um metro e meio de comprimento. Tinha uma foice e um martelo amarelos cosidos à mão, no mesmo material. E, escrito em baixo, “Partido Comunista Português”. Foi feita dias ou meses depois do 25 de Abril, pela minha mãe e pelo meu padrasto. Há quem garanta que a minha tia e a minha madrinha também participaram. Elas negam. Fizeram outra, de cetim. Seguramente mais leve. Pouco tempo antes, a minha mãe descobrira que o seu companheiro, futuro pai do meu irmão mais novo, era militante do PCP. Que a sua irmã e duas das melhores amigas eram do PCP. Que a Teresa, uma jovem pouco dada ao convívio que vivia com a minha tia e a minha madrinha, não se chamava Teresa. E que a minha tia mudava de casa constantemente, não por caprichos absurdos, mas porque tinha a função de garantir a segurança e o apoio à dirigente clandestina que afinal não se chamava Teresa. Com três filhos, quanto menos soubesse, melhor. Só depois disso conseguiu reconstruir acontecimentos misteriosos na sua própria família.
Na minha casa havia uma bandeira vermelha de sarja. Cosida à mão, uma foice e um martelo. Foi tecida na urgência dos dias da libertação e é a memória de uma dívida
O meu padrasto viria a ser deputado à Constituinte. A minha mãe, funcionária dos Correios, seria uma das primeiras mulheres a dirigir um sindicato maioritariamente masculino. O PCP marcou a minha infância e juventude. De tal forma que entrei para a Juventude Comunista aos 12 ou 13 anos, de onde saí aos 20. Com discordâncias muito profundas, mas sem ressentimentos. E nunca esquecendo aquela pesada bandeira cheia de urgência. Tudo o que resta dela é uma fotografia em que está nas mãos do meu irmão mais velho, no 1º de Maio de 1975. A bandeira estará empacotada em casa dele, que continua comunista, provavelmente meio desfeita pelo uso, pelo tempo e pela inadequação do material. Mas ficou, na minha imaginação — porque tendo quatro ou cinco anos na altura ela mistura-se com os factos —, a excitação com que foi feita em casa, com o material que havia à mão. Um ato que, pouco tempo antes, poderia levar a minha mãe e o meu padrasto à prisão. E que por isso correspondeu a um símbolo de libertação. Aquela bandeira esteve em minha casa como um lembrete. Foi pendurada na varanda, nas primeiras comemorações do 25 de Abril, como um lembrete. Símbolo de liberdade e de subversão. Noutros países significava o oposto — a opressão e a situação. Mas, na minha casa e no meu país, ser exibida foi um marco de liberdade. Até por representar o partido que de forma mais corajosa e consequente resistiu à ditadura.
No último fim de semana, os comunistas espalharam bandeiras pelos centros das principais cidades do país, para celebrar o centenário do PCP. Ao me aperceber da indignação de alguma direita, incluindo dirigentes partidários, que consideram um insulto à democracia exibir na rua o símbolo do partido que mais lutou contra a ditadura, tentei seguir o rasto dessa bandeira pesada, que havia em minha casa.
Até pensei pendurá-la na varanda. Não porque seja comunista ou simpatizante do PCP, mas porque aquela bandeira, tecida na urgência dos dias da libertação, é a memória viva de uma dívida. Pela resistência à ditadura e pela luta social em democracia. Aquele pedaço de pano recorda que o tempo passa, mas não muda a vontade de calar o impulso que permitiu tecer aquela bandeira vermelha. Metro e meio de liberdade feito de sarja.
Posted: 13 Mar 2021 03:57 AM PST