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terça-feira, 16 de março de 2021

“A ideia de ausência de racismo e de exploração na relação colonial tem grande continuidade até hoje”

Posted: 15 Mar 2021 04:34 AM PDT

 


«Como é que a Guerra Colonial e o fim do império marcaram a nossa identidade colectiva?
A continuidade da associação entre império colonial africano e identidade nacional foi determinante na cultura de elites e de massas muito para além do colonialismo tardio e das guerras coloniais da década de 1960. Com a descolonização e a adesão à União Europeia as elites políticas portuguesas conseguiram associar desenvolvimento a Europa, mas a “identidade imaginada” dos portugueses ainda está muito ligada ao espaço pós-colonial. O “lusotropicalismo” não foi apenas um “sucesso” do salazarismo na sua transposição para a cultura das elites políticas governantes e de massas, na democracia. A ideia da ausência de racismo e de exploração na relação colonial de Portugal é mais antiga e com grande continuidade até hoje.

Vamos demorar o mesmo tempo a reconhecer os crimes do colonialismo que a Igreja Católica demorou a reconhecer os seus?
Depende de que memória falamos. Se for a memória oficial, a que é expressa pelo Estado e Governos, ou seja, pelas instituições políticas, o panorama não se apresenta favorável. Em 1974 e 1975 existiu uma forte dinâmica política e cultural anticolonialista. Uma parte significativa das elites políticas de esquerda formaram-se no activismo antiditatorial e anticolonial, na fase final do Estado Novo e o processo de transferência do poder para os movimentos de libertação foi realizado quase unanimemente, apoiado mesmo pelos partidos de direita.

Com a consolidação democrática, os governos do PS e do PSD construíram um duplo discurso oficial: uma relação cultural pós-colonial e politicamente pragmática e de “esquecimento” do colonialismo tardio e da Guerra Colonial, da responsabilidade da ditadura. Por outro lado, convém não esquecer que os actores do 25 de Abril foram os militares da Guerra Colonial, o que talvez explique porque é que o ajuste de contas com o Salazarismo, não teve correspondência em igual ajuste com a Guerra Colonial e o colonialismo.

Acresce que a guerra se dá em contexto autoritário. O colonialismo foi assim obra do Estado Novo, com a qual a democracia rompeu. O contexto pós-colonial de guerras civis, Estados fracos, e dinâmicas cleptocráticas das elites, não ajudou. Na conjuntura actual da chegada das “guerras memoriais” e de eventual mobilização da direita populista, tenho grandes dúvidas sobre qualquer avanço nessa direcção no campo da memória oficial.

O país já estava isolado internacionalmente quando a Guerra Colonial começa e, no entanto, ainda dura 13 anos. Isso significa que a ditadura teve uma enorme capacidade de resistência?
O colonialismo tardio, algumas dinâmicas de modernização (bem estudadas por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro), associado à natureza ditatorial do regime representou uma grande capacidade de resistência à descolonização.

Claro que daqui um século, a descolonização portuguesa, será um pequeno capítulo da dinâmica global de descolonização dos impérios europeus. 13 anos não serão nada. Mas o que gostaria de sublinhar é que a natureza da resistência militar da década de 60 foi um “sucesso” do Salazarismo: o ditador venceu o Golpe de Estado de Botelho Moniz em 1961, restabeleceu o controlo político dos militares e avançou para uma Guerra Colonial em três frentes. Como a guerra coincide com um período de crescimento económico, ainda por cima tem dinheiro para isso. O aparente isolamento internacional, não o impede de ter o apoio militar e a neutralidade política dos seus aliados europeus da NATO, nomeadamente da França, da RFA, e da Grã Bretanha.

No quadro da “Guerra fria”, sobretudo na fase em que os movimentos de libertação já eram claramente alinhados com outros blocos, os aliados da Ditadura não tinham pressa. A muralha protectora da NATO diminuiu o isolamento internacional. A eficácia militar do PAIGC e mini-Vietname da Guiné-Bissau ditou o fim surpreendente do Regime. Convém aliás salientar as guerras coloniais de Portugal não eram de grande importância para nenhum dos blocos. Tudo muda com o 25 de Abril, sobretudo em Angola.»

segunda-feira, 15 de março de 2021

Costa: medíocre, desleixado e perfeito

 

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 13/03/2021)

António Costa não escolheu ser primeiro-ministro em pandemia, e se pudesse alterar o passado essa surgiria como uma experiência que iria manter fora das suas memórias. Não por causa do eventual desaire eleitoral nas próximas legislativas que os adversários e inimigos se babam a dar como certo em consequência da crise económica já presente e em agravamento imparável, antes por ser um dos mais ingratos papéis aquele que um primeiro-ministro tem de assumir neste tipo de crise de saúde pública – o dele e o de todos os colegas no Executivo, especialmente o da ministra da Saúde (cujo protagonismo estóico e heróico deve ser repartido com Graça Freitas que não pertence ao Governo). Aliás, o papel destas pessoas é muito mais difícil e penoso do que a semântica de “ingrato” comporta, elas estão a passar por uma vivência traumática em tudo equivalente a ficarem retidas num cenário de guerra.

António Costa também não imaginou ao longo da sua vida, até chegar às eleições de 2015 como secretário-geral do PS, que viria a ser o co-autor (mas primeiro subscritor) de uma revolução no sistema partidário português ao conseguir destruir o bloqueio à esquerda que vinha da práxis e herança de Cunhal e que se estendia a Louçã. Concorreram para tal variadas e desvairadas circunstâncias, como sempre no caldo aleatório dos acontecimentos, embora a menor das quais não terá sido a consequência trágica dos idos de Março de 2011. Foi dele, contudo, o mérito de ter aproveitado, para criar um melhor futuro para todos em Portugal, as oportunidades desse presente imprevisto que levaram ao primeiro Governo formado sem o partido com mais deputados – oportunidades que continuam a revelar-se, infelizmente, tão insólitas que parecem irrepetíveis dado o sectarismo endógeno no PCP (menos, graças a Jerónimo e aos ventos da História) e no BE (muito mais, por causa de todos lá dentro e à sua volta).

António Costa é primeiro-ministro e secretário-geral do partido mais votado numa altura em que a direita portuguesa há muito que bateu no fundo e só agora começa a suspeitar que está na altura de parar de escavar. O contraste entre a qualidade política dos quadros do PSD, CDS e IL com os do PS, PCP e Bloco é tão alto que nem dá vontade de gozar. E se enfiarmos o Chega no retrato, ao pasmo junta-se o nojo. Esta diferença de talento nos recursos humanos em cada lado do espectro não é de agora, pois há três décadas que os filhos-família, a elite da oligarquia financeira-económica, faz a sua vida fora de Portugal ou com visceral repulsa pela existência pobretana e chungosa dos políticos que queimam pestanas a legislar e sujam as mãos e a camisa no circuito da carne assada. Enquanto na esquerda o talento implica sempre uma matriz ideológica que enche motivações e agrega vontades, na direita o cinismo e o individualismo antropológicos apenas são eficientes na gestão do poder mas não conseguem ter produção intelectual por falta de alimento e vocação. O resultado é a baixa política, a chicana tribunícia, o golpismo como estímulo máximo da adrenalina e testosterona, a pulsão incontrolável para a violação do Estado de direito como prerrogativa de classe, e o erotismo do ódio político nascido do usufruto do privilégio e da ferocidade da desigualdade.

Este António Costa não tem uma Cofina que lhe persiga adversários políticos, não tem um grupo Impresa que seja arma de manipulação e arremesso ao serviço do militante nº1 do PS, não tem jornalistas altamente influentes na RTP a comportarem-se como editorialistas fanáticos para o ajudar, não tem um único órgão de comunicação que trabalhe para a sua agenda, é exactamente ao contrário.

E, no entanto, consegue comunicar com a comunidade a partir dos seus defeitos e fragilidades, gerando simpatia, empatia e confiança.

Liderando sondagens quando os carolas, meses antes, davam como fatal a sua queda. O fenómeno talvez esteja relacionado com uma genuína ausência de ambição pelo cargo, pelo topo da pirâmide, supostamente revelada in illo tempore em conversa com Vicente Jorge Silva. A sua mediocridade (que quer dizer normalidade, que suscita proximidade), o seu desleixo (não se importando de ser visto como friamente pragmático ou até cobarde no trato de questões de substância idealista) acabam, nesta lógica, por compor um líder perfeito para o Portugal que somos. O País que olha para a sua direita, olha para a sua esquerda, e só encontra projectos de tiranetes e ante-projectos de fantasistas.

Fala-me ao postigo

 

Posted: 14 Mar 2021 05:01 AM PDT

 


«Este fim-de-semana é para esquecer. O dia importante é amanhã, segunda-feira. Porque é amanhã que volta o postigo.

O postigo é o filho pródigo da pandemia. À volta do postigo, os portugueses podem pegar num café, segurá-lo nas mãos e, enquanto beberricam, congregar.

O português é postigueiro porque o português é gregário. O postigo está-nos no sangue. Parece uma coisa boa - se não fosse boa não a tinham proibido - mas é ancestral.

Nem toda a gente tem a sorte de morar em cidades e poder patrocinar quiosques. Os quiosques são os Jerónimos dos postigos.

Aliás, os quiosques são os Jerónimos não só dos postigos como dos balcões. É verdade que há quiosques que têm umas mesitas e cadeiras mas nunca houve, que se saiba, português algum que se tenha lá sentado.

Os quiosques são para estarmos de pé, usando o balcãozito para pousar o braçolo em momentos de discussão futebolística.

Há-de reparar-se que, mesmo em restaurantes finos onde só há mesas, só os portugueses degenerados é que se sentam.

Os genuínos encostam-se ao que houver. À copa, se não houver balcão. À máquina de tabaco, se não houver copa. E, se não houver máquina de tabaco, à boa, velha parede.

O renascimento do postigo veio despertar um atavismo que julgáramos perdido. Tinha florescido com a cultura do guichet - o postigo do funcionalismo, no sentido antropológico da palavra - mas a introdução das esplanadas e de outros lamentáveis estrangeirismos veio acabar com os nossos doces hábitos congregativos.

Agora a questão é saber se o postigo poderá sobreviver à pandemia. É que o pessoal reapaixonou-se pelos postigos, pelas conversas e pelo delicioso vai-e-vem que só os postigos proporcionam.

Será difícil arrancá-los outra vez dos nossos cotovelos.»

Sarja e liberdade

 

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 12/03/2021)

Daniel Oliveira

Durante anos, havia, num canto de um quarto e depois na arrecadação da minha casa de infância, uma bandeira vermelha absurdamente pesada. Penso que era de sarja. Pouco mais de um metro e meio de comprimento. Tinha uma foice e um martelo amarelos cosidos à mão, no mesmo material. E, escrito em baixo, “Partido Comunista Português”. Foi feita dias ou meses depois do 25 de Abril, pela minha mãe e pelo meu padrasto. Há quem garanta que a minha tia e a minha madrinha também participaram. Elas negam. Fizeram outra, de cetim. Seguramente mais leve. Pouco tempo antes, a minha mãe descobrira que o seu companheiro, futuro pai do meu irmão mais novo, era militante do PCP. Que a sua irmã e duas das melhores amigas eram do PCP. Que a Teresa, uma jovem pouco dada ao convívio que vivia com a minha tia e a minha madrinha, não se chamava Teresa. E que a minha tia mudava de casa constantemente, não por caprichos absurdos, mas porque tinha a função de garantir a segurança e o apoio à dirigente clandestina que afinal não se chamava Teresa. Com três filhos, quanto menos soubesse, melhor. Só depois disso conseguiu reconstruir acontecimentos misteriosos na sua própria família.

Na minha casa havia uma bandeira vermelha de sarja. Cosida à mão, uma foice e um martelo. Foi tecida na urgência dos dias da libertação e é a memória de uma dívida

O meu padrasto viria a ser deputado à Constituinte. A minha mãe, funcionária dos Correios, seria uma das primeiras mulheres a dirigir um sindicato maioritariamente masculino. O PCP marcou a minha infância e juventude. De tal forma que entrei para a Juventude Comunista aos 12 ou 13 anos, de onde saí aos 20. Com discordâncias muito profundas, mas sem ressentimentos. E nunca esquecendo aquela pesada bandeira cheia de urgência. Tudo o que resta dela é uma fotografia em que está nas mãos do meu irmão mais velho, no 1º de Maio de 1975. A bandeira estará empacotada em casa dele, que continua comunista, provavelmente meio desfeita pelo uso, pelo tempo e pela inadequação do material. Mas ficou, na minha imaginação — porque tendo quatro ou cinco anos na altura ela mistura-se com os factos —, a excitação com que foi feita em casa, com o material que havia à mão. Um ato que, pouco tempo antes, poderia levar a minha mãe e o meu padrasto à prisão. E que por isso correspondeu a um símbolo de libertação. Aquela bandeira esteve em minha casa como um lembrete. Foi pendurada na varanda, nas primeiras comemorações do 25 de Abril, como um lembrete. Símbolo de liberdade e de subversão. Noutros países significava o oposto — a opressão e a situação. Mas, na minha casa e no meu país, ser exibida foi um marco de liberdade. Até por representar o partido que de forma mais corajosa e consequente resistiu à ditadura.

No último fim de semana, os comunistas espalharam bandeiras pelos centros das principais cidades do país, para celebrar o centenário do PCP. Ao me aperceber da indignação de alguma direita, incluindo dirigentes partidários, que consideram um insulto à democracia exibir na rua o símbolo do partido que mais lutou contra a ditadura, tentei seguir o rasto dessa bandeira pesada, que havia em minha casa.

Até pensei pendurá-la na varanda. Não porque seja comunista ou simpatizante do PCP, mas porque aquela bandeira, tecida na urgência dos dias da libertação, é a memória viva de uma dívida. Pela resistência à ditadura e pela luta social em democracia. Aquele pedaço de pano recorda que o tempo passa, mas não muda a vontade de calar o impulso que permitiu tecer aquela bandeira vermelha. Metro e meio de liberdade feito de sarja.

Marine Le Pen, Presidente da França em 2022?

Posted: 13 Mar 2021 03:57 AM PST

 


«Falta quase um ano para as eleições presidenciais francesas – primeira volta a 8 de Abril de 2022. Mas a campanha já começou. O debate em curso resume-se numa pergunta: pode Marine Le Pen ser eleita Presidente da França? Não é provável, mas é possível, dizem as sondagens e os politólogos. Emmanuel Macron continua favorito mas só venceria Le Pen, na segunda volta, por uma curta margem: 52-48% ou 53-47%. Em 2017, Macron somou 66% na segunda volta.

No dia 27 de Fevereiro, o diário Libération fez soar o alarme: acabou a “frente republicana”. Muitos eleitores de esquerda e de direita detestam Macron e dispõem-se a escolher a abstenção ou votar Le Pen. O director, Dov Alfon, escreveu no editorial: “A frase ‘o fascismo não passará’, tão querida à esquerda, poderá perder a sua força em 2022. Um grande número de eleitores recusará votar Macron para barrar o caminho a Le Pen.” Em suma: “Nem Macron, nem Le Pen.”

Segundo a sondagem Harris Interactive (8 de Março), 24% dos eleitores do Insubmissos (extrema-esquerda), de Jean-Luc Mélenchon, 5% dos ecologistas e 21% dos eleitores de Os Republicanos (direita tradicional) optariam pelo voto Le Pen no segundo turno. Mas a maior ameaça a Macron seria a abstenção: 52% dos eleitores de Mélenchon, 42% dos socialistas da presidente de Paris, Anne Hidalgo, 44% dos ecologistas e 41% da direita...

Dias depois do inquérito do Libération, cinco politólogos e economistas, conotados com a esquerda, assinaram um artigo no site Telos: “Macron=Le Pen… a sério?” (Alain Bergounioux, Elie Cohen, Gérard Grunberg, Bernard Manin e Jean-Louis Missika). Argumentam que a crença de que Macron derrotará infalivelmente Le Pen encerra uma armadilha que, desde já, deve ser desmontada. Serão os eleitores dos outros candidatos a decidir quem será eleito na segunda volta. “Marine Le Pen arrisca-se a ser eleita Presidente da República em 2022, não por causa do seu programa, da amplidão dos seus apoios ou dos seus esforços de ‘desdiabolização’, mas por uma série de flutuações na opinião, fruto de uma aversão a Macron, que alimenta a rejeição da tradicional disciplina da ‘frente republicana’ na segunda volta.”

São muitas as acusações, entre elas uma suposta tentação autoritária. “O paradoxo é que os defensores das liberdades públicas que se afastam de Macron, por ele ter reforçado o aparelho repressivo, encaram, sem tremer, confiar esse mesmo aparelho a Marine Le Pen.” Note-se que a actual cota de popularidade do PR até é boa: 48% dos franceses dizem confiar nele (Harris Interactive, 26 Fevereiro).

Esquerda e direita

O problema de fundo está relacionado com o enfraquecimento da clivagem esquerda-direita, que não desapareceu, mas deixou de ser o factor “natural” dos alinhamentos políticos. Segundo um recente inquérito do IFOP, mais de dois terços dos franceses consideram que “a oposição entre esquerda e direita está ultrapassada”, enquanto 28% pensam que ela “faz ainda sentido, mas deixou de ser determinante”.

Escreve Grunberg, num outro texto, que “o eixo esquerda-direita já não absorve a diversidade das sensibilidades culturais, societais e identitárias”. É por ser fraca e dividida, que a esquerda é incapaz de chegar a acordo sobre uma candidatura única ou sobre a opção na segunda volta. “A sua identidade é posta em causa pelas novas clivagens que não se encaixam no eixo esquerda-direita. Estas novas clivagens fragmentam o seu eleitorado tradicional e constroem uma nova configuração política. E as diversas componentes da esquerda não compreendem esta nova configuração e nem são capazes de a ela se adaptar. Ora, é ela que vai estruturar as presidenciais de 2022”.

Em 2017, Macron impôs uma clivagem entre partidários da “França aberta” e da “França fechada”, entre progressistas e populistas, mundialistas e nacionalistas. Para isso, serviu-se dos temas condutores do discurso de Marine Le Pen. Esta tem flutuado nas suas posições. Depois do “namoro” com Putin e Trump, depois da sedução pelo “Brexit”, está a ensaiar uma viragem à moda de Salvini: passar de eurocéptica a eurófila, de forma a anular uma das linhas de ataque de Macron.

Mas também este terá de elaborar uma nova mensagem, porque os tempos mudaram. “A sucessão de crises durante o quinquénio contribuiu para esvaziar o macronismo da sua substância”, diz Françoise Fressoz, analista do Monde. A conquista de 2017 assentava na afirmação da fé europeia, numa ideia de progresso fundada na emancipação individual e numa profunda renovação da vida política. Deste contrato apenas subsiste a fé na Europa. O resto foi varrido pelos ‘coletes amarelos’ e, depois, pela crise epidémica que levou à doutrina do ‘custe o que custar’. (…) A sociedade francesa aparece, ao mesmo tempo, esfarelada e desencorajada.”

As sondagens para a primeira volta colocam Macron e Le Pen a par, na casa dos 25% (em 2017, respectivamente 24 e 21,5%). O candidato republicano mais cotado será Xavier Bertrand, com 12 a 15%, seguindo-se Mélenchon com 11, a socialista Anne Hidalgo e o ecologista Yannick Jadot, ambos na casa dos 6/7%. Os Republicanos continuam a perder terreno. A esquerda está fragmentada. Le Pen tem um eleitorado fidelizado. Com que futuro?

Até agora, Marine Le Pen tem sofrido o efeito do “tecto de vidro”, uma barreira invisível que não consegue ultrapassar. Isto significava que ela e o seu partido não tinham vocação de governo, sendo essencialmente uma força de protesto. No entanto, algo pode estar a mudar. Em 2018, apenas 40% dos franceses admitiam que ela pudesse um dia chegar ao poder. Em 2020, esse número subiu para 56%. No entanto, hoje, 64% dos franceses excluem em absoluto dar o seu voto a Le Pen.

Continua a funcionar o “tecto de vidro”? Provavelmente sim. O que poderá diferenciar as presidenciais de 2022 é o facto de Marine Le Pen poder vencer por uma catastrófica “conjugação dos astros”: da volatilidade dos eleitores de esquerda e direita a inesperadas “emoções políticas”. Alguém imagina o efeito de uma vitória da extrema-direita em França?»

Jorge Almeida Fernandes