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sábado, 3 de abril de 2021

Crise? Que crise?

Posted: 02 Apr 2021 04:09 AM PDT

 


«Ao desafiar o Presidente da República e a Assembleia da República com o envio de três leis que alargavam os apoios sociais ao Tribunal Constitucional, o primeiro-ministro abriu uma página nova na política recente. Pode admitir-se que esse passo tornará mais frágil uma estabilidade já de si precária; pode considerar-se que o confronto é insólito numa governação alicerçada na arte dos expedientes, na imaginação de soluções imprevistas, nos acordos de última hora e, obviamente, na criação de mitos como o famoso “virar da página da austeridade”. Mas estamos ainda longe de poder falar numa crise política grave. O que tem de ser tem muita força e nem o Presidente, nem o PS, nem as oposições desejam moções de censura, chumbos de orçamentos ou eleições antecipadas. O que sobra então deste incidente?

Ao exigir, e bem, o cumprimento estrito das normas constitucionais, António Costa recusou apoiar um precedente, mas abriu outro. Daqui para a frente, o Governo deixa de ter moral para adiar meses a fio a aprovação da Lei de Enquadramento Orçamental. Deixa de ter legitimidade para torpedear a Lei do Orçamento do Estado com cativações. Deixa de ter margem para ludíbrios como o da lei das 35 horas na função pública prometida e anunciada como não tendo custos para o erário. Se tudo for levado à letra, a oposição deixará de ter margem para tentar governar por leis da sua iniciativa e o Presidente razões para defender a estabilidade, a negociação e o compromisso a qualquer custo.

Para nosso infortúnio, porém, nada garante que essa maior transparência, exigência, escrutínio ou equilíbrio de poderes seja possível. Ninguém está interessado nisso. Porque a política em democracia não se faz com fórmulas matemáticas, ainda mais quando no poder está um Governo minoritário. Sem improviso e navegação à vista o Governo tem os dias contados. A “geringonça” foi o que foi e é o que é porque está na sua natureza ser incapaz de andar em linha recta. Se a forçarem a esse objectivo, cai. E se há um pavor no país e na classe política é que o Governo caia.

É por isso que o incidente desta semana significa muito, mas vale pouco. A crise vai agravar-se nas palavras ou na encenação. Mas, com a pandemia em curso, o plano de recuperação à porta, a fraqueza das oposições e o desejo profundo de Marcelo em ser o Presidente-rei que dá coerência ao modelo, o Governo está para durar, cambaleando ou não. Como terá perguntado o primeiro-ministro Jim Callaghan no auge do “Inverno do descontentamento” britânico de 1979, que abriu as portas ao poder a Margaret Thatcher: “Crise? Que crise?”»

A nossa condição zombie

 


por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 02/04/2021)

António Guerreiro

Muito antes da era zoom e da instalação do teletrabalho como regra geral, na qual entrámos em corrida forçada há cerca de um ano, já estava em acção o processo que nos transforma em zombies. Esta zombificação do mundo já estava latente numa fase anterior, quando ainda se preferia utilizar uma palavra da psiquiatria do século XIX, em vez de nomes inquietantes concedidos por filmes de género, e se falava de uma hipnose geral, isto é, dos poderes hipnotizadores, alucinatórios e fantasmagóricos dos media.

Basta, aliás, declinar a palavra media no singular, e dizer medium, para que a esfera do mediúnico seja evocada e entremos assim na ZAD dos fantasmas (ZAD: zona a defender): onde começa o mundo da medialidade começa também a dança dos fantasmas e dos mortos-vivos.

Antes de Baudrillard ter designado a “sociedade dos simulacros”, antes de Vilém Flusser ter definido as “tecno-imagens”, antes de Debord ter configurado a “sociedade do espectáculo”, antes da espectrologia do nosso tempo que até produziu leituras sofisticadas de Marx, Günther Anders descreveu longamente, no seu livro de 1956 sobre o ser humano como um ser antiquado (o título original é Die Antiquiertheit des Menschen; na tradução inglesa do livro, Antiquiertheit é traduzido por Outdatedness, e na tradução francesa, por Obsolescence), o modo como os media de massa nos condenam ao estatuto de zombies. É num capítulo intitulado Considerações Filosóficas sobre a Rádio e a Televisão que Günther Anders desenhou o “mundo como fantasma” e apontou o que ele entendia ser o principal efeito mediúnico da rádio e da televisão: o de fazer de cada consumidor “um trabalhador em domicílio, não remunerado, que contribui para a produção do homem de massa”. Noutro momento, Günther Anders utiliza a expressão “eremitas de massa”.

Talvez seja conveniente apresentar Günther Anders: filósofo e ensaísta alemão que viveu entre 1902 e 1992, o verdadeiro nome deste judeu alemão é Günther Stern. Foi o primeiro marido de Hannah Arendt (entre 1929 e 1937), que conheceu quando ambos eram alunos de Heidegger. Com a ascensão do nazismo, seguiu os passos de muitos outros intelectuais judeus: fugiu da Alemanha, em 1933, para Paris (foi aí que se divorciou de Hannh Arendt) e de Paris foi para os Estados Unidos, tendo regressado à Europa em 1950. A sua obra só a partir do início deste século começou a ter uma forte projecção. O teor apocalíptico dos seus textos sobre a ameaça da bomba atómica, no tempo da guerra fria, assim como as cores negras com que pintou o progresso da civilização técnica, fizeram com que fosse muitas vezes assimilado ao pessimismo cultural que tinha tido uma forte expressão na Alemanha, após a Primeira Guerra. Mas Günther Anders não pertenceu de facto a essa constelação que também albergou alguns representantes da “revolução conservadora”, um ambiente político-cultural do qual Anders sempre esteve distante.

Lido hoje o livro mais importante da obra de Günther Anders, as suas teses e intuições parecem análises e descrições do nosso presente mais imediato. “ A nossa normalidade é uma história de fantasmas”, escreveu ele, para a seguir acrescentar: “Muitos habitantes do mundo real já foram definitivamente vencidos pelos fantasmas e são já reproduções de fantasmas”. É provável que as teses de Anders só recentemente tenham chegado ao momento em que se tornaram legíveis. A condição zombie, na época do zoom e do teletrabalho, deixou de ser um cenário especulativo. Mas entre o mundo de Anders e aquele com que estamos confrontados há uma linha de continuidade e de ascensão progressiva do zombie. No início deste século começou-se a assistir em várias cidades do Estados Unidos a marchas de indivíduos mascarados de zombies, de “corporate zombies”, que pareciam paradas carnavalescas. Numa delas, em Wall Street, os manifestantes (silenciosos, sem pronunciar qualquer mensagem) mascaram notas de banco do jogo do Monopólio, parodiando a pulsão nutritiva do capitalismo financeiro. O filme de George Romero, A Noite dos Mortos-vivos , parece ter servido de inspiração a este “povo zombie” que foi mais longe do que o simples “Occupy Wall Street”. A palavra de ordem desta massa zombie era “Occupy everything”.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Presos até quando?

Posted: 01 Apr 2021 03:53 AM PDT

 


«Há umas semanas, perguntei no Twitter por que razão os residentes dos lares de terceira idade, mesmo depois de vacinados com as duas doses, continuavam sem poder abraçar os seus familiares. Qual o motivo para a distância higiénica imposta, além de várias outras restrições? A resposta foi rápida. A vacina protegia os velhos, mas não os impedia de contaminar as visitas. Nem valia a pena argumentar que isso era problema da visita, imediatamente respondiam que se tratava de um problema de saúde pública e não individual. Ou seja, fechámos os velhos nos lares para os proteger. Agora, mantemo-los fechados para nos protegermos deles. A inversão moral, que penaliza os mais frágeis da nossa sociedade, não parece incomodar ninguém.

Até ao momento, as vacinas da covid demonstraram ter 100% de eficácia contra casos graves. O medo propagado por tantos de que a vacina não protege contra a infeção e, consequentemente, contra o contágio não tem sustentação a não ser a paranoia de se estar sempre a pensar em tudo o que pode correr mal. Perante estes dados, é simplesmente incompreensível que a política de visitas aos residentes nos lares de terceira idade esteja, no essencial, igual ao que era há um ano.

Muito corretamente, a prioridade na vacinação foi para os lares. Neste momento, todas as pessoas que vivem ou trabalham em lares já terão sido vacinadas com duas doses. Isso quer dizer que é seguro fazer visitas. Não só não há qualquer perigo de provocar um surto seguido de mortandade num lar — a vacina tem 100% de eficácia contra casos graves, vale a pena relembrar —, como as possibilidades de as visitas serem contagiadas pelos velhos são também diminutas. As vacinas de RNA, que foram as aplicadas nos lares, mostram ter uma eficácia de 90% mesmo contra infeções ligeiras.

Como se justifica então que as regras se mantenham? Continuam as restrições à proximidade física durante as visitas e continuam as proibições relativamente a visitas das crianças. Nunca tendo eu concordado com todas estas restrições, ao menos entendia-as. Neste momento, já nem isso. Não percebo em nome de que princípio continuo sem poder tocar no meu pai há um ano. Não percebo por que motivo impedem o meu pai de ver as netas ao vivo, ficando relegadas para um ecrã de um telemóvel. E, felizmente, onde está, tem rede de internet razoável. Mas já se fez algum levantamento para saber quantos lares não têm condições tecnológicas para visitas virtuais? De que tenha conhecimento, não.

Em Portugal, convencionou-se que as pessoas estão em lares porque a família não quer saber delas, porque olham para os velhos como um encargo, porque a lufa-lufa diária não deixa tempo para manter o tecido familiar intacto. O que temos observado é o exato oposto. Há cerca de um ano que quem tem famílias em lares se queixa do regime draconiano imposto. Já foram denunciadas ene situações absurdas. Desde pessoas com demência que, por causa da falta de contacto com os familiares, veem a sua situação clínica agravada. Velhos que nem sequer podem sair para dar o tal passeio higiénico que parece essencial para tanta gente, ao ponto de estar previsto nos decretos-leis dos estados de emergência. Há precisamente seis meses, denunciei nesta coluna a situação de um homem em estado de demência avançado, cego e sem mobilidade que, no seu lar, deixara de receber visitas da filha. Deixou de o poder tirar do lar nos feriados e nos fins de semana. Nas suas palavras, era ela “que o mantinha vivo”.

Como é que as regras se mantêm quando estão todos vacinados? Qual é a lógica? Só há uma resposta: apesar de tantas denúncias dos familiares, a sociedade não quer saber. A resposta às denúncias nunca passa de um encolher de ombros e de uma declaração pesarosa: compreendo, mas tenho pena.

Quando, no Natal passado, os velhos foram obrigados a passar os dias festivos trancados nos lares — acompanhados por profissionais dedicados, sublinhe-se — , muitos familiares fizeram vídeos para serem mostrados na Consoada. Em muitos desses vídeos estava presente uma esperança: já há vacina. Daqui a pouco serão vacinados e poderemos voltar a abraçar-nos. Mas os meses passam e nem se fala no assunto.

Estamos em abril e discutimos o Plano de Recuperação e Resiliência. A reabertura das escolas. A vacinação dos profissionais do ensino. A testagem maciça. A constitucionalidade dos apoios sociais aprovados na Assembleia da República. Enquanto isso, os velhos nos lares estão esquecidos. Há assuntos mais importantes, como a criação de passaportes sanitários que nos permitam passar férias onde quisermos sem grandes engulhos.»

A logística global e a metáfora Ever Given

 


por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 01/04/2021)

Ao fim de seis dias e bastantes esforços, o porta-contentores Ever Given foi finalmente desatolado na passada segunda-feira, desobstruindo o Canal do Suez e permitindo a retoma gradual do tráfego marítimo para as centenas de navios que se haviam acumulado à espera dos dois lados desta via. Tudo nesta história é colossal: da dimensão do navio, com a sua capacidade de carga equivalente a mais de vinte mil contentores de vinte pés (6m) de comprimento (TEU), aos esforços de desbloqueio envolvendo 14 rebocadores, aos custos provocados pelo próprio bloqueio, que serão seguramente da ordem de milhares de milhões de dólares.

Este episódio conseguiu chamar a atenção mundial para algo que é absolutamente central para o funcionamento da economia global dos nossos dias mas que passa normalmente despercebido: a infraestrutura logística que suporta o capitalismo global contemporâneo. Só pelo Canal do Suez, que permite reduzir a duração da ligação marítima entre a Ásia e a Europa em cerca de dez dias, passam anualmente perto de 20 mil navios e mais de um milhão de toneladas de carga. Juntamente com o canal do Panamá, o estreito de Ormuz e o estreito de Malaca, é considerado um dos quatro principais pontos críticos das rotas marítimas globais. O transporte marítimo é central para o transporte global de mercadorias e é maioritariamente processado dentro de contentores, atingindo volumes quase inimagináveis: em 2018, o número de contentores (TEU) processados nos portos de todo o mundo ascendeu a perto de 800 milhões.

A generalização do recurso ao transporte de carga em contentores intermodais, suscetíveis de serem facilmente passados de navios para comboios ou camiões e vice-versa e de facilitarem a automação da logística, foi crucial para reduzir significativamente o custo do transporte de mercadorias e criar as condições para a globalização da produção nas últimas décadas, que tem como característica distintiva a dispersão global das cadeias de produção, nalguns casos envolvendo dezenas de países para um mesmo produto final. Por sua vez, isso permitiu a redução do custo de muitos bens de consumo, mas também desequilibrou a relação de poder entre trabalho e capital no Norte global no contexto das últimas décadas de neoliberalismo. É nesse sentido que podemos falar de uma (contra)revolução logística que ocorreu a par, e apoiou, a contrarevolução neoliberal, com a sua erosão dos direitos laborais e a sua tendência para o aumento da desigualdade.

Isto porque estamos a falar de processos surpreendentemente recentes. O desenvolvimento da contentorização arrancou fundamentalmente nas décadas de 1960 e 1970, impulsionado pelo recurso inovador à contentorização dos abastecimentos pelas forças armadas norte-americanas no contexto da Guerra do Vietname, se bem que as raízes históricas da logística em termos mais gerais sejam bastante mais profundas. Para quem quiser saber mais, esta história fascinante é contada em detalhe no best-seller “The Box” ou no podcast “Containers”, ambos os quais incidem sobre este tema.

Uma das implicações deste processo foi a perda relativa de centralidade estratégica por parte da produção e o correspondente ganho por parte da circulação logística. Os pontos onde ocorre a produção tornaram-se relativamente secundários, ou pelo menos mais facilmente substituíveis, face aos fluxos de circulação de produtos acabados ou inacabados. E também por isso houve mudanças nos principais espaços e protagonistas dos conflitos sociais, incluindo uma relativa perda de centralidade da fábrica, característica do capitalismo fordista, e uma relativa ascensão dos portos, rotundas e outros nós críticos da logística contemporânea enquanto como palcos privilegiados do conflito social. Recordemos por exemplo a centralidade das rotundas nos protestos dos ‘coletes amarelos’, a greve de motoristas de matérias perigosas em Portugal no verão de 2019 ou as várias disputas que têm envolvido trabalhadores portuários. Os detentores do capital estão bem cientes da sua vulnerabilidade face a estes fluxos críticos e aos trabalhadores que lhes estão associados e é por isso, até mais do que por uma questão de economia de custos, que consideram importante e prioritária a redução dessa vulnerabilidade por via da automação e robotização, seja nos portos ou no transporte rodoviário por camiões autónomos que se conduzam a si próprios.

Um dos investigadores que se tem debruçado sobre este tema da economia política da logística, desenvolvendo alguns dos argumentos que indiquei nos últimos parágrafos, é o italiano Niccolò Cuppini. Participou há poucas semanas num seminário do programa de doutoramento a que eu próprio estou ligado, no qual apresentou a ideia da logística como uma lente através da qual podemos identificar as características centrais do capitalismo contemporâneo. É uma lente que aliás podemos aplicar a diferentes escalas, tal como ilustrado também pela questão dos trabalhadores de plataformas e dos dilemas e disputas laborais que lhes estão associados.

Se a ‘contrarevolução logística’ das últimas décadas alterou a relação de forças nos planos laboral e político, não se pense porém que ela erradicou ou resolveu as contradições e conflitos. Como afirma o Manifesto de Crítica Logística produzido pelo grupo de Cuppini e companhia, “a logística dita o ritmo do capitalismo contemporâneo, mas os seus movimentos são sempre voláteis e contestados (…) quanto mais a ‘orquestra’ da logística acelera os seus fluxos de mercadorias, tanto maior é o poder da interrupção destes fluxos”. Este mundo de fluxos e circulação não deixou por isso de ser um mundo político, da mesma forma, já agora, que não deixou de assentar no poder dos Estados: a logística envolve a constituição de formas de poder extraterritoriais, mas os Estados continuam a ser centrais para lhe dar forma e mantêm o poder de acelerar ou refrear este mundo e os fluxos que o constituem.

O que nos traz de volta para o incidente do Ever Given e para o seu valor metafórico. Depois da pandemia já o ter feito em 2020, este atolamento e o seu impacto na circulação global de mercadorias volta a ilustrar como o ideal líquido e desmaterializado do capitalismo contemporâneo continua a ter de confrontar-se na prática com a realidade contingente e material da produção, da circulação e do consumo. Tanto do ponto de vista analítico como político, o realismo exige que procuremos compreender as mudanças das últimas décadas e os processos em curso, sem cairmos na mistificação ideológica que esses próprios processos engendram.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Tenha calma, senhor Presidente

Posted: 31 Mar 2021 03:36 AM PDT

 


«“Uma verdadeira UE da saúde”, defende o Presidente da República (DN, 25/03). Se considerarmos a incapacidade demonstrada pela Comissão Europeia para gerir as várias fases da gestão da pandemia, mas sobretudo a aquisição e distribuição das vacinas, tenhamos calma. A comissária Kyriakides tinha uma palavra a dizer sobre este assunto e não o fez. Foi preciso a presidente vir justificar as trafulhices da AstraZeneca limitando-se a uma explicação que parecia um comunicado do laboratório que produz a vacina. A exigência esteve sempre ausente das negociações com os laboratórios. Este é um dos exemplos do ambiente existente na saúde europeia. E não se lhe pode chamar política de saúde porque para o efeito teria de haver escolhas e escrutínio sobre essas escolhas.

Aliás, não se percebe porque existe uma comissária para a saúde e assuntos correlativos, quando na verdade nunca se sentiu que a Comissão Europeia tivesse tido uma palavra sobre o assunto, a não ser sobre aspectos pouco mais do que correlativos. O que existe é a OMS para a Europa sediada não em Bruxelas, mas em Copenhaga, que emite recomendações técnicas sobre as melhores práticas e orientações quanto às políticas de saúde. Basta lembrar a Declaração de Alma Ata nos idos dos anos 70 e a marca que deixou na política de saúde de muitos países em todo o mundo, nomeadamente em Portugal.

Acabou por ser cada país, seguindo genericamente as orientações da OMS, a resolver os problemas complexos que a pandemia veio colocar. Não admira, por isso, que praticamente em toda a parte a técnica da tentativa e erro tenha sido aquela que veio a ser aplicada. Uma vez que a política de saúde é multifactorial, imagine-se o que poderia vir a ser uma política de saúde europeia, em que a distribuição dos determinantes da saúde é particularmente assimétrica e as desigualdades sociais extremamente pronunciadas. Atendendo à variabilidade de desenvolvimento em que cada país se encontra, as várias europas que já existem dentro do espaço europeu iriam contar com mais um parceiro para a sua ainda maior estratificação, uma vez que a rede que conecta as várias políticas sectoriais é particularmente débil, com cada comissariado a trabalhar para o seu gabinete.

Se considerarmos o indicador que melhor traduz o estádio de bem-estar de uma população, a esperança de vida saudável, a discrepância entre os valores de cada país é particularmente significativa, traduzindo o seu nível de desenvolvimento, medido pelos determinantes sociais da saúde - grau de escolaridade, habitação, alimentação saudável, emprego, PIB per capita, rendimento disponível, mobilidade, integração social, suporte social, cobertura e acesso aos cuidados de saúde, meio ambiente, entre outros.

Segundo os últimos dados disponíveis (Eurostat, 2018), os valores extremos deste indicador são: o melhor valor, nas mulheres, encontra-se na Suécia, com 73,7 anos de esperança de vida saudável, nos homens este valor é de 73,4 anos, em Malta. Em Portugal, este valor é de 59,8 anos para as mulheres e de 57,5 anos para os homens. O pior valor, nas mulheres, encontra-se na Letónia, com 53,7 anos e 51 anos nos homens. A média europeia é de 64,2 anos, nas mulheres e 63,7 anos nos homens. Portanto o valor da amplitude de anos de vida saudáveis é de 20 anos para as mulheres (Suécia/Letónia) e de 22,4 anos para os homens (Malta/Letónia). Quanto a Portugal, a diferença para a média europeia, nas mulheres, é de 4,4 anos, e para os homens de 6,2 anos. Se tivermos como referência o melhor valor, esta diferença é de 14,1 anos, nas mulheres (Suécia/Portugal) e 15,9 anos (Malta/Portugal). Feitas as contas, no indicador mais importante de qualquer política de saúde, Portugal encontra-se nos últimos lugares dos países europeus, exigindo grandes investimentos não tanto para a esperança de vida, em que as diferenças entre o valor de Portugal (81,3 anos) e a Suécia, por exemplo (82,6 anos), ou seja, 1,3 anos, mas para a vida depois dos 65 anos, que vai sofrer o impacto da exposição a riscos evitáveis desde o nascimento.

Uma vez que a esperança de vida saudável está associada aos determinantes sociais da saúde, tomemos como exemplo o PIB per capita daqueles três países e o valor das relações entre eles. Portugal com 24.590 € do PIB per capita (2020) representa 42% do valor da Suécia (57.975 €), a Letónia (16.698 €), 29% e a Letónia representa 68% do PIB per capita português. Relativamente à média do PIB per capita da UE (37.104 €), Portugal, Suécia e Letónia representam, respectivamente, 66%, 156% e 45%. Fonte: Trading Economics, 2021.

Estes valores servem para demonstrar que o SNS tem cumprido bem o seu papel, contribuindo para que o valor da esperança de vida seja equivalente aos países europeus mais desenvolvimentos. O SNS português, mau grado os seus défices, trata bem os doentes que lhe vão bater à porta. O grande défice encontra-se naqueles aspectos que contribuem para se ter uma população mais saudável, isto é, determinantes sociais da saúde que aumentem a esperança de vida saudável. E para colmatar estes défices seriam necessários grandes investimentos, não só em Portugal, sendo duvidoso que a EU estivesse disponível a fazê-lo. Portanto, vamos devagar. Questione-se que política de saúde é mais desejável. Investir em instalações e equipamentos pesados para darem resposta à doença, ou investir na promoção da saúde e na prevenção, sem menosprezar o tratamento da doença? Se um dia vier a colocar-se na agenda política uma UE da saúde, é respondendo a esta perguntas que se deve começar. Fora deste quadro é continuar-se a expandir os recursos para tratar as doenças oncológicas, as cardiovasculares, os AVC, a diabetes, as doenças pulmonares e mais aquelas que podem ser prevenidas, mas que só se dá conta delas no gabinete médico.

Fazer uma discussão destas em cima de um vulcão em actividade, é correr o risco de no fim só haver vulcão. Comece-se pelos alicerces, se for essa a intenção. E os alicerces consistem em melhorar as condições de vida das pessoas.»