Posted: 02 Apr 2021 04:09 AM PDT
Posted: 02 Apr 2021 04:09 AM PDT
por estatuadesal |
(António Guerreiro, in Público, 02/04/2021)
Muito antes da era zoom e da instalação do teletrabalho como regra geral, na qual entrámos em corrida forçada há cerca de um ano, já estava em acção o processo que nos transforma em zombies. Esta zombificação do mundo já estava latente numa fase anterior, quando ainda se preferia utilizar uma palavra da psiquiatria do século XIX, em vez de nomes inquietantes concedidos por filmes de género, e se falava de uma hipnose geral, isto é, dos poderes hipnotizadores, alucinatórios e fantasmagóricos dos media.
Basta, aliás, declinar a palavra media no singular, e dizer medium, para que a esfera do mediúnico seja evocada e entremos assim na ZAD dos fantasmas (ZAD: zona a defender): onde começa o mundo da medialidade começa também a dança dos fantasmas e dos mortos-vivos.
Antes de Baudrillard ter designado a “sociedade dos simulacros”, antes de Vilém Flusser ter definido as “tecno-imagens”, antes de Debord ter configurado a “sociedade do espectáculo”, antes da espectrologia do nosso tempo que até produziu leituras sofisticadas de Marx, Günther Anders descreveu longamente, no seu livro de 1956 sobre o ser humano como um ser antiquado (o título original é Die Antiquiertheit des Menschen; na tradução inglesa do livro, Antiquiertheit é traduzido por Outdatedness, e na tradução francesa, por Obsolescence), o modo como os media de massa nos condenam ao estatuto de zombies. É num capítulo intitulado Considerações Filosóficas sobre a Rádio e a Televisão que Günther Anders desenhou o “mundo como fantasma” e apontou o que ele entendia ser o principal efeito mediúnico da rádio e da televisão: o de fazer de cada consumidor “um trabalhador em domicílio, não remunerado, que contribui para a produção do homem de massa”. Noutro momento, Günther Anders utiliza a expressão “eremitas de massa”.
Talvez seja conveniente apresentar Günther Anders: filósofo e ensaísta alemão que viveu entre 1902 e 1992, o verdadeiro nome deste judeu alemão é Günther Stern. Foi o primeiro marido de Hannah Arendt (entre 1929 e 1937), que conheceu quando ambos eram alunos de Heidegger. Com a ascensão do nazismo, seguiu os passos de muitos outros intelectuais judeus: fugiu da Alemanha, em 1933, para Paris (foi aí que se divorciou de Hannh Arendt) e de Paris foi para os Estados Unidos, tendo regressado à Europa em 1950. A sua obra só a partir do início deste século começou a ter uma forte projecção. O teor apocalíptico dos seus textos sobre a ameaça da bomba atómica, no tempo da guerra fria, assim como as cores negras com que pintou o progresso da civilização técnica, fizeram com que fosse muitas vezes assimilado ao pessimismo cultural que tinha tido uma forte expressão na Alemanha, após a Primeira Guerra. Mas Günther Anders não pertenceu de facto a essa constelação que também albergou alguns representantes da “revolução conservadora”, um ambiente político-cultural do qual Anders sempre esteve distante.
Lido hoje o livro mais importante da obra de Günther Anders, as suas teses e intuições parecem análises e descrições do nosso presente mais imediato. “ A nossa normalidade é uma história de fantasmas”, escreveu ele, para a seguir acrescentar: “Muitos habitantes do mundo real já foram definitivamente vencidos pelos fantasmas e são já reproduções de fantasmas”. É provável que as teses de Anders só recentemente tenham chegado ao momento em que se tornaram legíveis. A condição zombie, na época do zoom e do teletrabalho, deixou de ser um cenário especulativo. Mas entre o mundo de Anders e aquele com que estamos confrontados há uma linha de continuidade e de ascensão progressiva do zombie. No início deste século começou-se a assistir em várias cidades do Estados Unidos a marchas de indivíduos mascarados de zombies, de “corporate zombies”, que pareciam paradas carnavalescas. Numa delas, em Wall Street, os manifestantes (silenciosos, sem pronunciar qualquer mensagem) mascaram notas de banco do jogo do Monopólio, parodiando a pulsão nutritiva do capitalismo financeiro. O filme de George Romero, A Noite dos Mortos-vivos , parece ter servido de inspiração a este “povo zombie” que foi mais longe do que o simples “Occupy Wall Street”. A palavra de ordem desta massa zombie era “Occupy everything”.
Posted: 01 Apr 2021 03:53 AM PDT
por estatuadesal |
(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 01/04/2021)
Ao fim de seis dias e bastantes esforços, o porta-contentores Ever Given foi finalmente desatolado na passada segunda-feira, desobstruindo o Canal do Suez e permitindo a retoma gradual do tráfego marítimo para as centenas de navios que se haviam acumulado à espera dos dois lados desta via. Tudo nesta história é colossal: da dimensão do navio, com a sua capacidade de carga equivalente a mais de vinte mil contentores de vinte pés (6m) de comprimento (TEU), aos esforços de desbloqueio envolvendo 14 rebocadores, aos custos provocados pelo próprio bloqueio, que serão seguramente da ordem de milhares de milhões de dólares.
Este episódio conseguiu chamar a atenção mundial para algo que é absolutamente central para o funcionamento da economia global dos nossos dias mas que passa normalmente despercebido: a infraestrutura logística que suporta o capitalismo global contemporâneo. Só pelo Canal do Suez, que permite reduzir a duração da ligação marítima entre a Ásia e a Europa em cerca de dez dias, passam anualmente perto de 20 mil navios e mais de um milhão de toneladas de carga. Juntamente com o canal do Panamá, o estreito de Ormuz e o estreito de Malaca, é considerado um dos quatro principais pontos críticos das rotas marítimas globais. O transporte marítimo é central para o transporte global de mercadorias e é maioritariamente processado dentro de contentores, atingindo volumes quase inimagináveis: em 2018, o número de contentores (TEU) processados nos portos de todo o mundo ascendeu a perto de 800 milhões.
A generalização do recurso ao transporte de carga em contentores intermodais, suscetíveis de serem facilmente passados de navios para comboios ou camiões e vice-versa e de facilitarem a automação da logística, foi crucial para reduzir significativamente o custo do transporte de mercadorias e criar as condições para a globalização da produção nas últimas décadas, que tem como característica distintiva a dispersão global das cadeias de produção, nalguns casos envolvendo dezenas de países para um mesmo produto final. Por sua vez, isso permitiu a redução do custo de muitos bens de consumo, mas também desequilibrou a relação de poder entre trabalho e capital no Norte global no contexto das últimas décadas de neoliberalismo. É nesse sentido que podemos falar de uma (contra)revolução logística que ocorreu a par, e apoiou, a contrarevolução neoliberal, com a sua erosão dos direitos laborais e a sua tendência para o aumento da desigualdade.
Isto porque estamos a falar de processos surpreendentemente recentes. O desenvolvimento da contentorização arrancou fundamentalmente nas décadas de 1960 e 1970, impulsionado pelo recurso inovador à contentorização dos abastecimentos pelas forças armadas norte-americanas no contexto da Guerra do Vietname, se bem que as raízes históricas da logística em termos mais gerais sejam bastante mais profundas. Para quem quiser saber mais, esta história fascinante é contada em detalhe no best-seller “The Box” ou no podcast “Containers”, ambos os quais incidem sobre este tema.
Uma das implicações deste processo foi a perda relativa de centralidade estratégica por parte da produção e o correspondente ganho por parte da circulação logística. Os pontos onde ocorre a produção tornaram-se relativamente secundários, ou pelo menos mais facilmente substituíveis, face aos fluxos de circulação de produtos acabados ou inacabados. E também por isso houve mudanças nos principais espaços e protagonistas dos conflitos sociais, incluindo uma relativa perda de centralidade da fábrica, característica do capitalismo fordista, e uma relativa ascensão dos portos, rotundas e outros nós críticos da logística contemporânea enquanto como palcos privilegiados do conflito social. Recordemos por exemplo a centralidade das rotundas nos protestos dos ‘coletes amarelos’, a greve de motoristas de matérias perigosas em Portugal no verão de 2019 ou as várias disputas que têm envolvido trabalhadores portuários. Os detentores do capital estão bem cientes da sua vulnerabilidade face a estes fluxos críticos e aos trabalhadores que lhes estão associados e é por isso, até mais do que por uma questão de economia de custos, que consideram importante e prioritária a redução dessa vulnerabilidade por via da automação e robotização, seja nos portos ou no transporte rodoviário por camiões autónomos que se conduzam a si próprios.
Um dos investigadores que se tem debruçado sobre este tema da economia política da logística, desenvolvendo alguns dos argumentos que indiquei nos últimos parágrafos, é o italiano Niccolò Cuppini. Participou há poucas semanas num seminário do programa de doutoramento a que eu próprio estou ligado, no qual apresentou a ideia da logística como uma lente através da qual podemos identificar as características centrais do capitalismo contemporâneo. É uma lente que aliás podemos aplicar a diferentes escalas, tal como ilustrado também pela questão dos trabalhadores de plataformas e dos dilemas e disputas laborais que lhes estão associados.
Se a ‘contrarevolução logística’ das últimas décadas alterou a relação de forças nos planos laboral e político, não se pense porém que ela erradicou ou resolveu as contradições e conflitos. Como afirma o Manifesto de Crítica Logística produzido pelo grupo de Cuppini e companhia, “a logística dita o ritmo do capitalismo contemporâneo, mas os seus movimentos são sempre voláteis e contestados (…) quanto mais a ‘orquestra’ da logística acelera os seus fluxos de mercadorias, tanto maior é o poder da interrupção destes fluxos”. Este mundo de fluxos e circulação não deixou por isso de ser um mundo político, da mesma forma, já agora, que não deixou de assentar no poder dos Estados: a logística envolve a constituição de formas de poder extraterritoriais, mas os Estados continuam a ser centrais para lhe dar forma e mantêm o poder de acelerar ou refrear este mundo e os fluxos que o constituem.
O que nos traz de volta para o incidente do Ever Given e para o seu valor metafórico. Depois da pandemia já o ter feito em 2020, este atolamento e o seu impacto na circulação global de mercadorias volta a ilustrar como o ideal líquido e desmaterializado do capitalismo contemporâneo continua a ter de confrontar-se na prática com a realidade contingente e material da produção, da circulação e do consumo. Tanto do ponto de vista analítico como político, o realismo exige que procuremos compreender as mudanças das últimas décadas e os processos em curso, sem cairmos na mistificação ideológica que esses próprios processos engendram.
Posted: 31 Mar 2021 03:36 AM PDT