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terça-feira, 13 de abril de 2021

Pagar para iludir a solidão

Posted: 12 Apr 2021 03:27 AM PDT

 


«Tem sido notícia de jornal pelo mundo fora. O japonês Shoji Morimoto, de 37 anos, formado em Física, aluga-se a si próprio para não fazer nada, apenas proporcionando companhia. Depois de passar por vários empregos terá concluído que esse era o seu único e autêntico talento e a verdade é que tem angariado milhares de clientes nos últimos tempos.

Tudo começou quando comunicou nas redes sociais que, por cerca de 77 euros por encontro, não faria nada na companhia de quem o contratasse, a não ser comer, beber e dar respostas simples às interpelações. Já agora, a comida, bebida e transportes são por conta dos clientes. Solicitações não lhe faltam. Recentemente contava à BBC que as mais comuns são para acompanhar quem não quer ir sozinho às compras de supermercado ou quem não deseja comer só. Mas também existe quem o queira para ir ao hospital ou, mais insólito, como companhia para assinar os papéis de divórcio. Dir-se-á que tal só é possível num país que acaba de criar o Ministério da Solidão, mas não parece. As sociedades contemporâneas são máquinas de produção de isolamento e a pandemia só o intensificou.

Claro que existem vários tipos de solidão. A escolhida, por opção consciente, não deveria teoricamente significar nenhum conflito para quem a vive. Na pré-pandemia, para quem habitava sozinho, era relativamente fácil evitar a sensação de isolamento, com um pouco de vida social, trabalho ou lazer. Agora existem novas circunstâncias, que se agravam consoante as situações económicas ou de empregabilidade de cada um. Já a indesejada, que tende a ser ligada a pessoas idosas ou dependentes, é mais transversal do que tendemos a aceitar, mas os estigmas nem sempre nos levam a assumi-la. Isto se nos limitarmos a ligar o estar só com o confinamento num lugar físico. O espaço mental é outra realidade. E se formos para aí, a solidão é ausência de ligação, de envolvimento, de proximidade e de intimidade. E isso é muito mais diagonal.

Como diz a economista inglesa Noreena Hertz, autora da obra The Lonely Century: Coming Together in a world that’s pulling apart (2020), vivemos num tempo onde tudo se pode comprar, até uma companhia como quem adquire uma pizza, citando o exemplo de uma empresa americana que cobra 30 euros à hora para proporcionar companhia, com pessoas formadas para cumprirem a função a preceito. Não são acompanhantes de luxo, mas o modelo fá-lo lembrar. Nada de surpreendente, diz-nos ela, citando que num estudo pré-pandemia era veiculado que um em cada cinco adultos assegura que se sente solitário a maior parte do tempo, enquanto num outro, do ano passado, é referenciado que um em cada oito britânicos reconhece que não tem nenhum amigo em quem confiar.

Como se chegou a este oceano de solidão? Há muitas e cumulativas causas nas últimas décadas. Sociedades estilhaçadas do ponto de vista socioeconómico, político, racial, de género ou classe. Prevalência de sistemas impessoais e complexos em relação a noções de comunidade. Ausência de lugares públicos o que não propicia sociabilidades espontâneas. O predomínio do individualismo neoliberal e a primazia do lucro privado sobre o interesse social. Redes de tecnologia que permitem a hiper-conectividade, mas que não anulam o sentimento de isolamento, nem garantem a criação de comunidade. Quanto muito simulam a solidão.

O paradoxo é que a pandemia veio mostrar que a mutualidade é vital. Somos existências conectadas. Necessitamos uns dos outros. Satisfazemos necessidades e interesses, embora de forma diversa, graças à acção concertada de muitos. As respostas individuais são curtas quando se abordam estruturas geradas socialmente. Não somos auto-suficientes, mas sim interdependentes, e a pandemia só veio patentear que o somos ao nível global, local e particular. O que mais apreciamos como pessoas é de estar com outras pessoas. De preferência sem ter de lhes pagar.»

segunda-feira, 12 de abril de 2021

257 anos para a igualdade de género

Posted: 08 Apr 2021 03:31 AM PDT

 


«O World Economic Forum (WEF) prevê que, a nível global, ainda tenhamos de esperar 257 anos para atingir a igualdade económica entre mulheres e homens. As desigualdades de género criadas pela pandemia podem atrasar ainda mais este processo. Os dados já disponíveis sugerem que a desvantagem das mulheres no mercado de trabalho pré-pandemia se agravou, uma vez que as mulheres concentram maiores perdas de rendimento e uma sobrecarga de tarefas domésticas.

As mulheres são a maioria da força de trabalho dos setores mais afetados pela pandemia – a Restauração, os Alojamentos Turísticos e a Moda e Acessórios –, com 58%, 57%, e 84% de trabalhadoras, respetivamente. Estes setores tiveram uma quebra nas compras com meios de pagamento eletrónico superior a 80% entre em abril de 2020 e de 2019. Estes números da SIBS Analytics mostram que é provável que os trabalhadores destes setores tenham também sido severamente prejudicados. Na primeira edição do relatório “Portugal, Balanço Social”, que resulta de uma parceria da Nova SBE com a Fundação La Caixa, o Bruno P. Carvalho, a Susana Peralta e eu tentamos perceber quem são estes trabalhadores. Dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que agregam informação dos trabalhadores do setor privado, mostram que são sobretudo pessoas com salários baixos e vínculos precários.

Em 2018, na Restauração, o salário bruto médio era 761€/mês e 78% dos trabalhadores recebiam menos do que o salário mediano nacional (867€). A proporção de contratos de trabalho a termo certo (e, portanto, mais precários) no setor dos Alojamentos Turísticos é de 48%, quase o dobro da média nacional. A Restauração concentra também um maior número de trabalhadores com escolaridade básica e mão de obra estrangeira. Além de estarem numa situação à partida mais frágil, com a pandemia, e uma vez que a maior parte destas atividades não são compatíveis com teletrabalho, estes trabalhadores terão perdido rendimentos (ou mesmo o emprego).

Algumas profissões são compatíveis com teletrabalho, o que permitiu a muitos trabalhadores destas profissões manterem o seu nível de rendimento. Ainda assim, estes trabalhadores não foram imunes ao impacto da pandemia. Em muitos casos, custos de telecomunicações, água e energia foram transferidos do empregador para o trabalhador. Além disto, o confinamento torna mais difícil a separação da vida profissional e familiar, e pode amplificar o stress e ter importantes impactos na saúde psicológica. As mulheres foram particularmente sobrecarregadas, por exemplo porque são elas quem mais cuida de crianças e dependentes em casa. Já antes da pandemia, o Inquérito às Condições de Vida e do Rendimento (ICOR), disponibilizado pelo INE, mostrava que, em 2019, entre as que trabalhavam menos de 30 horas semanais, 11,5% apontam o tempo despendido com o trabalho doméstico e a cuidar de crianças como uma razão (face a apenas 0,6% dos homens) e apenas 1,3% afirma estar a estudar ou a receber formação (face a 16% dos homens).

A pandemia não ajudou. Um estudo representativo que entrevistou 800 mulheres italianas antes e depois do início da pandemia sugere que a carga de trabalho doméstico aumentou para as mulheres, enquanto que os homens aumentaram o tempo com os filhos, mas não o tempo dedicado a outras tarefas domésticas. Inquéritos realizados no Reino Unido, em março de 2020, mostram que as mulheres cuidam dos filhos independentemente de trabalharem ou não, enquanto os homens cuidam mais dos filhos quando não estão a trabalhar. Também nos Estados Unidos, um inquérito realizado numa semana de junho de 2020 mostra que 12,7% das mães, contra apenas 2,8% dos pais, não estava a trabalhar devido ao fecho de escolas e creches. Os autores estimam que este fenómeno contribuiu para o aumento em quase três pontos percentuais da taxa de desemprego entre mães de crianças pequenas. Em Portugal, segundo os números do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), até agosto de 2020, as mulheres tinham menos probabilidade de regressar ao trabalho depois de se inscreverem no centro de emprego.

A pobreza já afetava mais as mulheres antes da pandemia. Em 2019, ser pobre em Portugal significava ganhar menos de 6014€ por ano (isto é, 501€ por mês). Em média, 18% das mulheres vivia abaixo deste limiar (versus 16,5% dos homens). A taxa de pobreza atinge os 34% em famílias monoparentais, onde em 85% dos casos o adulto é uma mulher. Antes da pandemia, segundo a OCDE, mesmo quando trabalhavam, as mulheres ganhavam menos – em média, uma mulher ganha 0,73€ por cada 1€ ganho por um homem com o mesmo nível de escolaridade. O nascimento do primeiro filho é um dos determinantes desta disparidade salarial. Um relatório de 2016 do Institute for Fiscal Studies mostra que, no Reino Unido, as mulheres ganham 0,90 libras por cada libra ganha pelos homens antes do nascimento do primeiro filho e apenas 0,75 libras quando o filho chega aos 12 anos. Quando os filhos atingem 20 anos de idade, as mães têm, em média, menos quatro anos de trabalho remunerado do que os pais.

A perda de rendimentos, a precariedade laboral e o aumento o trabalho doméstico não remunerado podem apagar anos de conquistas na igualdade de género. O mito de que o homem providencia e a mulher cuida continua a atrasar-nos. Daqui a 257 anos, nenhuma de nós estará cá para celebrar.»

Um encontro do Jorge Coelho

 

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 08/04/2021)

Jorge Coelho era um homem de compromissos. E isso foi evidente quando o tive ali, à minha frente, durante duas horas, numa situação que seria sempre tensa. Quem pede para falar com quem lhe fez uma crítica ética violenta, seja para compreender as razões para o ter feito, seja para o convencer que não tinha razão, é alguém que sabe que a política não é a arte de somar inimigos, mesmo que eles sejam inevitáveis. É, mais vezes do que isso, fazer pontes para chegar a quem dispara do outro lado do rio.


Um dia, há bastante tempo, no "Eixo do Mal", disse uma coisa bastante desagradável sobre Jorge Coelho. A crítica, sendo política, tinha uma dimensão inevitavelmente ética e por isso pessoal. Por interposta pessoa, pediu para falar comigo. Não reagiu irado, não protestou, não queria tirar satisfações. Como acho que ouvir aqueles de que falo faz também parte do meu ofício, obviamente que aceitei a proposta. Uns dias depois, falámos durante duas horas, presencialmente. Não foi um almoço de confraternização. Foi numa sala em terreno neutro, um em frente ao outro. Diria que foi desconfortável para os dois e não é coisa que me tenha acontecido muitas vezes na vida.

Dei-lhe as minhas razões, que ele pediu. Porque queria, disse-o genuinamente, perceber o meu ponto de vista. Deu-me as dele, em parte pessoais, que eu ouvi. Falámos da vida dele. Eu não recuei no que tinha dito (nem acho que tivesse de recuar), nem ele me pediu que o fizesse. Ele também não terá mudado de opinião no que via como uma injustiça. Apesar da tensão da conversa, nunca perdeu o pé, nunca foi incorreto, nunca deixou que nada daquilo resvalasse para mais do que tinha pedido: uma conversa sincera. Foi sempre incrivelmente educado, apesar do que tinha dito dele, que foi forte e tinha a ver com a ida dele da política para a Mota-Engil.

Foi o gesto de um sedutor, que é o que todo o político talentoso é. E de quem sabe que em democracia a relação com a crítica pública faz parte do ofício do político. Jorge Coelho saberia que uma reação pública irritada teria sido mais confortável para mim e talvez também para ele. Olhos nos olhos, perante um ser humano, é tudo mais embaraçoso. As pessoas ganham vida. Disse-lhe tudo o que achava que lhe devia dizer e ainda hoje não me arrependo, porque fui frontal, mas sempre correto. Quase frio, para resistir à aproximação. Mas o meu respeito por ele aumentou consideravelmente. Tinha à minha frente um dos homens que mais poder teve neste país a explicar-se perante quem, tendo muitíssimo menos poder do que ele, foi duro na crítica e não lhe pediu explicações.

Pelo menos uma coisa mudou na forma como o via: passei a acreditar na sinceridade da sua demissão, depois da queda da ponte de Entre-os-Rios. E ao mudar essa opinião mudei muito do que pensava sobre ele. Isso não me incomodou. Ao longo dos anos fui percebendo que somos todos muitas coisas. Que há tão poucos heróis como vilões. E que a uns e outros, quando o são em pleno, tende a faltar humanidade. Aquele encontro foi um dos muitos passos que dei na vida para a tolerância, caminho que todos devemos estar destinados a palmear.

Saber resistir ao ressentimento é das qualidades mais importantes e difíceis que um político tem de ter. Há quem lhe chame cinismo. Mas é respeito pela democracia. A crítica, por vezes dura, faz parte do processo. Jorge Coelho não era arrebatador. Era um homem de compromissos. E isso foi evidente quando o tive ali, à minha frente, durante duas horas, numa situação que seria sempre tensa. Alguém que se senta para falar com quem lhe fez uma crítica violenta, seja para compreender as razões para o ter feito, como me disse, seja para o convencer que não tinha razão, é alguém que sabe que a política não é a arte de somar inimigos, mesmo que eles às vezes sejam inevitáveis. É, mais vezes do que isso, fazer pontes para chegar a quem dispara do outro lado do rio.

Sócrates: liberto de mais de 20 crimes, sim. Mas corrompido, apesar de tudo

Posted: 10 Apr 2021 08:28 AM PDT

 


Ouvi as mais de três horas das declarações de Ivo Rosa, até às 2h da madrugada li e ouvi dezenas (sim, dezenas) de analistas / comentadores com opiniões para todos os gostos e paladares, vejo as redes sociais cheias de convicções sem dúvidas, sendo que as «moralistas» me irritam especialmente.
Como é meu hábito, deixo aqui um texto, não porque me identifique necessariamente com tudo o que está escrito, mas porque me parece um resumo razoável de factos e algumas conclusões tão óbvias como dizer que o rei vai nu.

«O juiz de instrução Ivo Rosa destruiu quase por completo quatro anos de investigação do Ministério Público e, pelo caminho, também o trabalho feito pelo seu colega de tribunal Carlos Alexandre, que foi o magistrado que ao longo desses anos foi validando e promovendo buscas, escutas e outras diligências. Mas Ivo Rosa destruiu também a tese do ex-primeiro-ministro de que não foi corrompido. Ironicamente, a hipótese de vir a ser condenado em julgamento parece ter-se tornado muito mais forte depois desta sexta-feira.

No longo resumo da decisão de mais de seis mil páginas que tomou sobre quem vai e quem não vai a julgamento na Operação Marquês, Ivo Rosa não poupou nos rótulos com que classificou a acusação construída por sete procuradores contra o ex-primeiro-ministro José Sócrates, o seu amigo Carlos Santos Silva, o antigo banqueiro Ricardo Salgado e os outros arguidos do processo. De forma cirúrgica, o juiz de instrução percorreu os principais factos que suportavam os crimes de que o ex-primeiro-ministro e o ex-presidente do BES vinham acusados — “especulação”, “fantasia”, “falta de lógica”.

Os três pilares do processo, que diziam respeito aos três crimes de corrupção imputados pela equipa do procurador Rosário Teixeira a Sócrates, caíram por terra. De acordo com o juiz, nenhum desses três crimes estão sustentados em prova sólida. Segundo Ivo Rosa, não existem indícios de que o ex-primeiro-ministro tenha influenciado o chumbo da OPA da Sonae sobre a Portugal Telecom em 2007, a favor do Grupo Espírito Santo (GES); tenha interferido na atribuição de qualquer obra pública ao Grupo Lena; ou tenha sido cúmplice de Armando Vara, quando este era administrador da CGD, na concessão de um empréstimo para a compra do resort de luxo Vale do Lobo, no Algarve.

Em qualquer dos três enredos, a prova foi considerada inconsistente, vaga ou mesmo inexistente porque foram outros decisores — e não ele, Sócrates — que tiveram influência nessas matérias e não há testemunhos a corroborar a tese do Ministério Público sobre o papel decisivo do ex-primeiro-ministro. Inclusive, foi desconsiderada a forma como Paulo Azevedo, do grupo Sonae, contou como tudo aconteceu nos bastidores da OPA da PT, em que o empresário descreveu a forma como o governo boicotou a tentativa de tomada de controlo daquela empresa de telecomunicações, quando o Estado era ainda um dos seus acionistas de referência, detentor de uma golden share.

SEM DÚVIDAS DE QUE O DINHEIRO NÃO FOI EMPRESTADO

No entanto, embora tenha feito essa espécie de terraplanagem à espinha dorsal do despacho de acusação que o Ministério Público proferiu em outubro de 2017, Ivo Rosa acabou por contrabalançar isso com outra conclusão: com base na análise que fez a todo o processo ao longo de mais de dois anos para poder chegar à decisão instrutória que deu a conhecer esta sexta-feira, Sócrates foi efetivamente corrompido, ainda que não seja possível provar por que razão isso aconteceu.

O juiz não acreditou nas explicações dadas pela defesa sobre o dinheiro que ao longo dos anos Sócrates recebeu do seu amigo Carlos Santos Silva, empresário que foi administrador do Grupo Lena, um conglomerado de empresas de construção e obras públicas.

Embora os arguidos tenham dito que Santos Silva emprestou 567 mil euros a Sócrates e que o ex-primeiro-ministro já devolveu 250 mil euros, o magistrado afirmou serem sólidos os indícios de que foram entregues a Sócrates um total de 1,7 milhões de euros. E que nada justifica tantos levantamentos e entregas em numerário. Se o que estivesse em causa fosse simplesmente um empréstimo entre amigos, “nada impedia que tivessem sido feitos por transferência bancária”. Ivo Rosa também considerou como relevante o modo como Sócrates e Santos Silva usavam uma linguagem codificada, mostrando uma preocupação em esconder a circulação de dinheiro.

“Houve um mercadejar do cargo do primeiro-ministro”, admitiu o juiz, assumindo que não tem dúvidas que todos aqueles pagamentos de Santos Silva a Sócrates significam que houve, efetivamente, um crime de corrupção passiva cometido pelo ex-primeiro-ministro enquanto foi titular desse cargo político, ainda que não haja indícios sobre os actos concretos que tenham estado na sua origem — ou seja, que possam identificar as contrapartidas do dinheiro recebido e levados a julgamento como prova.

No entendimento do juiz, esse crime de corrupção já prescreveu, mas não os esquemas usados para fazer chegar os subornos ao corrompido. Isso explica dois dos três crimes de branqueamento de capitais com que Sócrates foi pronunciado (o terceiro diz respeito ao modo como pagou ao professor Domingos Farinha para que este o ajudasse a fazer a sua tese de mestrado em Paris) e um dos três crimes de falsificação de documentos (um contrato de arrendamento para o apartamento de Paris, propriedade do amigo Carlos Santos, onde chegou a viver) pelos quais terá também de responder em julgamento (sendo que os outros dois têm, mais uma vez, a ver com a tese de mestrado e Domingos Farinha).

Ivo Rosa não teve contemplações com o Ministério Público, mas ao não deixar Sócrates sair totalmente impune, o sinal fica dado: se um juiz de instrução como ele — visto por muitos como decidindo normalmente a favor dos arguidos — ficou convicto de que o ex-primeiro-ministro foi corrompido, que dúvidas disso terá o tribunal coletivo que agora o irá julgar?»

O que tinha que ter sido diferente no processo Marquês

 

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 10/04/2021)

Alguns dos pilares essenciais da acusação desabaram, a não serem salvos pelo recurso, José Sócrates clama vitória e ainda assim poderá ser julgado por crime com pena de prisão, vamos para uma década desde o início da investigação e ainda nem sabemos se haverá julgamento, ou sobre quê.

Este panorama é um desastre e não começou com o maremoto de ontem. Antes de todos, é o processo penal no combate à corrupção, que não chegou incólume a esta fase do processo, que sai ainda mais desacreditado daquela sala de tribunal, o que tem gigantescas consequências. Por isso mesmo, talvez o primeiro dever seja perguntarmo-nos como se chegou até aqui e o que correu mal.

Os prazos deste processo não são compatíveis com a defesa do bem público. E tudo contribui para os estender: a dificuldade de uma investigação sem meios, além de confrontada com longos atrasos da cooperação internacional; a vontade do Ministério Público (MP) de compilar indícios para a tese que formulara antes das evidências, seguindo portanto todas as pistas possíveis ou imaginárias e dispersando-se em todas as direções; a discricionaridade de decisões de anular os prazos processuais, o que os torna irrelevantes; o gigantismo do processo, prolongando os procedimentos de instrução; os conflitos entre magistrados sobre a própria interpretação da lei.

Conclusão, o que correu mal nos prazos ainda pode correr pior. Mas se o resultado for que um caso de corrupção é julgado vinte anos depois do início da investigação, trata-se então de um fracasso irremediável.

Depois, foram os truques. E, desta vez, foram todos à uma: a prisão preventiva sem suficiente justificação processual, na base de suspeitas que foram entretanto abandonadas e substituídas por outras, ou a insistente divulgação de peças em segredo de justiça, incluindo gravações áudio e vídeo de interrogatórios em jornais preferencialmente especializados nesta indústria, seguindo a estratégia de mobilizar a opinião pública para um julgamento prévio. Pela insistência nestas técnicas, já não se pode acreditar que quem usa este método no MP, os funcionários ou eventualmente algum advogado que promova este crime de violação do segredo acreditem ou respeitem o valor da justiça, antes preferindo um ganho circunstancial num causa particular, mesmo que a cidade arda toda. Se me parece fundamental evitar o abuso da prisão preventiva, já a consequência da persistente revelação seleccionada e criminosa de peças da investigação só tem como único remédio possível a abolição radical do segredo de justiça, ou a violação de direitos dos cidadãos. O que os corruptos agradecerão, dificilmente será possível investigá-los.

Finalmente, ainda se combate a corrupção na presunção de que os corruptos contarão ao telefone os seus sucessos, ou que haverá um arrependido que se disponha a trair a família. Ora, não se vai a lado nenhum com as declarações de um Helder Bataglia, como se viu.

É meridianamente claro que o dinheiro é a chave da corrupção e, por isso mesmo, a prevenção se deve basear na verificação dos rendimentos. Assim, uma lei que obrigue à declaração e que, portanto, exponha os rendimentos injustificados, não só permite a inspeção das alterações patrimoniais, como conduz à punição da sua ocultação como crime, tornando mais direta a intervenção da justiça. Talvez um processo por enriquecimento injustificado seja menos espampanante, mas levaria à decisão pelo tribunal sobre mais crimes, no tempo adequado e com mais eficácia.

Se no combate à corrupção, depois de tudo isto, continuarem a eternizar-se os processos, se não lhe forem dados meios, se não for imposto o respeito pelas suas próprias leis e a capacidade de atingir todos os dinheiros que enriquecem criminosos, então não sairemos deste pântano em que a justiça foi aprisionada.