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quarta-feira, 21 de abril de 2021

O linchamento continua


por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 20/04/2021)

A direita vai fazer render a Operação Marquês até à última gota de sangue que puder extrair na sangria ao PS; a qual começou em Julho de 2014 (ainda nem sequer havia arguidos constituídos), altura em que alguém no Ministério Público cometeu um crime com o único propósito de interferir nas eleições para secretário-geral contra Costa.

Isso passa por continuar a desprezar o Estado de direito democrático, onde o cidadão José Sócrates não só é inocente face à Lei como viu cair todas as acusações de corrupção e a enorme maioria das restantes acusações que pendiam sobre si após o despacho do juiz de instrução. E passa por judicializar a política através de um moralismo hipócrita, cínico e rapace.

A ideia de que o PS deve fazer um mea culpa por ter tido um líder “corrupto” corresponde na perfeição à cassete que se ouve desde Março de 2007, literalmente a partir do dia a seguir ao chumbo da OPA da Sonae sobre a PT. Nesse dia seguinte, o Público iniciou uma campanha negra contra Sócrates, lançando o caso da sua licenciatura em Engenharia Civil. Nas vésperas da OPA, José Manuel Fernandes ainda escrevia editoriais elogiosos para Sócrates, em tandem com o esforço de Paulo Azevedo para influenciar o Governo recorrendo a paleio secreto. Gorado o aliciamento, soltaram os cães e iniciou-se uma caçada que dura até hoje nesse jornal.

A imagem que queriam espalhar então só se foi adensando ao longo dos anos de incessantes e furiosas calúnias, voltando o Freeport em 2008 e criando-se o Face Oculta em 2009. Neste processo comandado a partir de Aveiro por um Marques Vidal, tivemos o primeiro-ministro em funções a ser espiado para que fosse a eleições constituído arguido do que hoje sabemos ter sido uma golpada. Falhado esse plano, a dois meses das eleições legislativas de 2009, foi lançada a Inventona de Belém.

Estes casos, e muitos outros, tinham um subtexto obsceno: o PS era uma máquina de corrupção, um polvo que estava a asfixiar a democracia, a tomar conta do Estado, a ocupar o topo do poder financeiro para depois abarbatar a comunicação social. Isto foi e continua a ser repetido por políticos, editorialistas e comentadores direitolas. Este é o caldo decadente e sórdido donde nasce a Operação Marquês.

Agora, com a ajuda de quem no PS e no comentariado de esquerda, por variegadas razões, vê proveito em apanhar a boleia, cresce a onda para que o PS se enterre nessa cova. Seria o absoluto delírio na pulharia, ver uma procissão de socialistas arrependidos de terem fechado os olhos, mesmo ajudado a roubar, ao tal “corrupto” que a maior investigação de sempre no Ministério Público provou não se poder levar a julgamento por corrupção. Porque não existem provas, mano. Só existem fantasias, disse um juiz que honra a classe.

A psicologia explica: num linchamento, os mais cobardolas são os mais cruéis. 

Contra a síndrome do silêncio? Parar de aceitar o inaceitável

Posted: 20 Apr 2021 03:48 AM PDT

 


«É mais fácil dizer que as mulheres mentem do que responsabilizar os abusadores. É mais culpabilizar e descredibilizar as vítimas do que confrontar e condenar agressores. É mais fácil o linchamento público da vítima do que não compactuar com uma sociedade que as silencia. A luta das mulheres e dos homens que respeitam as mulheres, não é por vingança que a vingança não nos merece, é por justiça.

Em 2017 a personalidade do ano para a revista Time foram “as vozes que lançaram um movimento”, as pessoas que denunciaram casos de assédio e abuso sexual. As campanhas #MeToo e Time´s Up derrubaram a ideia normalizada de que o assédio sexual, o abuso e a violação eram uma contingência do ser-se mulher. Essa mudança aconteceu pela enorme força colocada em movimento pelas mulheres ao começarem a falar. Harvey Weinstein acabaria condenado a 23 anos de prisão por crimes sexuais.

O movimento #MeToo teve a virtude de dar uma voz coletiva às mulheres. De as empoderar. Esse foi o seu grande feito. Há uma lógica de empatia, de identificação: mulheres de todo o mundo deixaram de se sentir sós.

Em Portugal falar na sua própria voz não é muito o hábito, uma denúncia é uma coisa muito íntima, dolorosa, há muitas mulheres que temem a exposição e a denúncia pública, com boas razões. Este fim-de -emana numa entrevista televisiva a atriz Sofia Arruda quebrou o silêncio. “Uma mão, um cumprimento que ficava no sítio que não era suposto. Um beijo que me deixava um bocadinho constrangida, mas às tantas tu pensas que se calhar a pessoa é assim, muito afetuosa, e ficas a sorrir timidamente e afastas-te. Mas depois disso ia passando para intervenções mais diretas, de dizer que estava bonita, que me tinha visto não sei onde (…) quando comecei a ficar mais desconfortável com a situação tive de pegar no telefone e disse que se fosse uma reunião ou um almoço de trabalho a minha agente iria comigo. Se não fosse essa intenção então não haveria qualquer almoço ou jantar. Essa pessoa disse ok e desligou o telefone. Depois, mais tarde, durante as gravações, estava na maquilhagem e a pessoa chegou, agarrou-me no braço e perguntou-me ao ouvido se era a minha última decisão. Eu disse que sim e ele respondeu-me que nunca mais ia trabalhar ali”. O que acabaria por acontecer. “Sei que fui vítima, mas sentia-me culpada porque pensava se em algum momento tinha dado a entender alguma coisa. Mas tinha a certeza que não tinha dado, que nunca tinha permitido qualquer tipo de aproximação que não fosse profissional dentro do local de trabalho”.

O que seguiu nas redes sociais foi o catálogo do previsível: “Porque só fala agora?”, “porque não diz o nome?”, “porque não foi à PSP?”, “isso é um não-assunto”. E estes são os comentários mais “benévolos”. É mais fácil dizer que as mulheres mentem do que responsabilizar os abusadores. É mais culpabilizar e descredibilizar as vítimas do confrontar e condenar agressores. É mais fácil o linchamento público da vítima do que não compactuar com uma sociedade que as silencia. A luta das mulheres e dos homens que respeitam as mulheres, não é por vingança que a vingança não nos merece, é por justiça.

Quando uma mulher conta uma experiência como esta a primeira coisa que devemos fazer é não duvidar dela, “essa dúvida não deve ser alimentada pelo facto de a pessoa ter demorado anos a falar. Uma experiência de assédio não prescreve. Vive no corpo da vítima até à sua morte. Nem todas as pessoas conseguem reconhecer imediatamente o assédio. Nem todas as pessoas têm uma estrutura pessoal, mental, emocional, profissional para o denunciarem. Nem todas as pessoas conseguirão, alguma vez, denunciá-lo”, escreveu na sua página de Facebook a atriz Sara Barros Leitão.

O testemunho de Sofia Arruda é de uma enorme coragem, como antes o fora o de Catarina Furtado, e parece ter espoletado o tão necessário #MeToo português. Mulheres mais ou menos anónimas partilharam nas redes sociais as suas histórias de assédio sexual e muitos homens reconheceram que o assédio não é uma bagatela, é um abuso de poder, uma consequência de uma sociedade laboral assimétrica, resultado da desigualdade de oportunidades, e de um mundo dominado por homens e determinado pelas decisões de homens.

Importa não se cair na tentação colectiva de pedir que a pessoa diga o nome do agressor. “Primeiro: não precisa. A vítima só deve contar até onde estiver preparada para contar. Não é o facto de haver um nome que irá alterar o que aconteceu. Segundo: apesar de o nome não ser público, pelo menos por enquanto, não significa que não se saiba quem é. Como dizer isto de forma clara? Toda a gente no nosso meio sabe quem é. De colegas a equipas, de canais a comunicação social”, continua atriz Sara Barros Leitão.

O #MeToo não é uma “moda” como o tentam descartar muitos homens aterrorizados, é um movimento contra a impunidade que protege os agressores e deita fora as vítimas. Já há uma censura moral contra os agressores – nós sabemos quem eles são - , eles sabem que esses comportamentos são inaceitáveis, falta agora criar-se “redes de apoio e solidariedade, respeitando o tempo das vítimas, respeitando as suas histórias, e, sobretudo, resistindo à sórdida tentação de querer narrativas mais violentas, mais trágicas, o que acaba por desvalorizar as micro-agressões, deixando, assim, centenas de vítimas a sentir-se ainda pior com o que lhes aconteceu por não encontrarem, sequer, ali espaço para a sua história”.

A sociedade tem que ser um lugar seguro para mulheres, não um lugar onde assediadores e agressores continuem a escrever artigos de jornal, a trabalhar nas televisões, a chefiar departamentos, a perseguir mulheres. Que sociedade queremos? Basta de condenação moral, queremos consequências. Obrigada Sofia.»

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terça-feira, 20 de abril de 2021

Prescrições: quanto tempo pode um inocente ser suspeito?


por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/04/2021)

Daniel Oliveira

Não vou entrar aqui no debate técnico sobre as prescrições, no caso da Operação Marquês. Até porque ele parece estar viciado no debate público pelas costumeiras suspeições que se lançam quando a posição do sistema judicial não é aquela que se defende. É certo que o juiz Ivo Rosa usou como argumento para contar o tempo a partir da promessa de corrupção o acórdão do Tribunal Constitucional de 2019. E por isso, depois do tiro ao juiz do TCIC, começou o tiro ao juiz do Constitucional.

Acontece que este não é um debate iniciado pelo Constitucional. Isaltino Morais também viu o crime por corrupção cair por causa disto, muito antes deste acórdão. Como se explica no “Público”, depois de ter sido condenado por corrupção em primeira instância, o Ministério Público de Oeiras admitiu ter-se extinguido o prazo para punir um suborno, com base num parecer de Costa Andrade, alguém com peso no direito penal, que defendeu os critérios na contagem do tempo usado por Ivo Rosa.

Como também escreve o “Público”, a comunidade jurídica está dividida sobre a questão, que não se tratou, como se vendeu na primeira hora, de uma leitura esdrúxula de um juiz excêntrico, mas uma posição legítima em disputa. Eu até posso pender mais para a leitura inversa à de Ivo Rosa, só não aceito o vício de lançar lama sobre aqueles de quem se discorda, mais uma vez revelado por algumas pessoas com poder no espaço público. É cansativo e preguiçoso. Deixo, por isso, este debate para os juristas e a decisão para a Relação.

O que quero fazer é uma pedagogia básica sobre a importância das prescrições. É que com tanto entusiasmo a discutir as tecnicidades do direito, os juristas tendem a passar ao lado do debate popular, que está a léguas dos seus argumentos. É natural. São valores que têm como assentes.

Podemos aceitar, em casos muito extraordinários, pelo peso que têm na história de uma comunidade (o genocídio, por exemplo), que alguns crimes não prescrevam. Podemos aceitar, em casos também excecionais, que eles tenham tempos de prescrição muito dilatados, como aqueles em que as vítimas são menores e não têm capacidade de denunciar (ou sequer de perceber que são vítimas) em tempo útil. Mas o princípio da prescrição é fundamental para qualquer ideia de justiça.

A justiça tem um tempo para ser feita. Partindo de um princípio básico de que nós vamos sendo pessoas diferentes na vida – acreditamos na regeneração porque não achamos que as pessoas nascem e morrem criminosas –, a punição tem de ter uma proximidade suficiente ao ato para se aplicar à pessoa que prevaricou. Qualquer ideia de regeneração torna-se absurda meio século depois do crime ter sido cometido.

Há até argumentos práticos a favor das prescrições. Fazer prova e apurar a verdade material, em processo penal, vai-se tornando cada vez mais difícil à medida que o tempo vai passando. O rasto vai-se perdendo, assim como a memória dos factos das testemunhas.

Mas a razão mais importante é outra: o Estado não pode manter um cidadão como suspeito, sem o condenar ou inocentar, durante décadas. Porque isso dá ao Estado a possibilidade de destruir a vida de alguém sem sequer ter de o julgar. Sem ter de provar nada. É uma condenação não escrita. Fica um cutelo sobre a cabeça do cidadão sem que a Justiça tenha de se dar ao trabalho de o investigar. É a porta aberta para a arbitrariedade, a chantagem, a total ausência de direitos.

São as mesmas pessoas que pedem para não haver prescrições ou para que elas tenham tempos tão dilatados que é o mesmo que não existirem que, quando se confrontam com a vida destruída de um inocente, se perguntam como foi isso possível. A presunção de inocência não é apenas uma hipocrisia formal. Apela a um exercício fundamental: partirmos do princípio, na forma como o processo decorre, que está a ser julgado um inocente. Melhor: que somos nós que estamos a ser julgados e que somos inocentes. E a pergunta que quem se indigna com as prescrições se deve fazer é se aceitaria passar décadas como suspeito, até a declaração da sua inocência já não valer nada.

Escrever isto não é defender as prescrições em vigor. Com umas concordarei e com outras não. Não é defender a leitura que Ivo Rosa, o Tribunal Constitucional e quem julgou Isaltino Morais muitos anos antes disso têm da contagem do tempo em caso de crime de corrupção. É defender um quadrado que está em perigo, com a demagogia reinante: o do Estado de Direito, de que depende a nossa liberdade face à arbitrariedade do Estado. Sabendo que quem é contra o Estado de Direito nunca é contra a corrupção. É seu aliado objetivo. 

Aventuras e desventuras do R


por estatuadesal

(Amadeu Homem, 14/04/2021)

A Oposição virou-se, toda fula e colérica, para o governo e para o PR e disse: - Outro estado de emergência? Mas que pouca vergonha é esta? Atrevem-se a propor outro estado de emergência?

O governo meteu os olhos no chão; o PR tossicou e prometeu beijos. Foi o Costa que quebrou o enleio, declarando, muito tímido: - É o R, é a subida do R.

A Oposição franziu a testa e replicou:

- E quem criou o R senão vocês?

- Nós? - Interrogaram-se em uníssono o PR e o governo.

- Eu uso sempre máscara e até já deixei de beijocar - advertiu o PR.

- Eu deixei de ir à Índia e renunciei aos restaurantes - obtemperou o governo.

- Não queremos saber nada disso. Isso do R, e dos casos novos da pandemia, e dos internamentos, e dos cuidados intensivos, não é connosco. É tudo com os Senhores, que são incompetentes e não tomam as medidas mais corretas.

- Mas eu já não beijoco - obstou o PR.

- E eu já só como sandes trazidas pela Uber Eats - lamentou-se o Costa.

- Não queremos tomar conhecimento de nada disso. Ficam a saber que esta nossa permissividade acabará! Este é o último estado de emergência, ouviram bem? - Ganiram, em uníssono, o PCP e o BE e a Iniciativa Libérrima, e o Ventura Auschwitz e, mais baixo, o Canto-que-eu-Rio!

- Mas... mas... mas... - disse o Costa, muito à rasca. Não fomos nós que fizemos festas clandestinas, e que nos juntámos na praia, e que fomos em magote fazer surf à Caparica, e que andámos a saltar de concelho em concelho, e que juntámos a família de quarenta pessoas nas almoçaradas de Páscoa, e que...

- Cale-se, tenha vergonha, incompetente, dissoluto - gritou o Canto-que eu-Rio.

- Monhé ! - ganiu o Auschwitz.

- Comunista, estalinista, amigo dos cubanos - uivou o Libérrimo.

- Eu juro que não voltei a oscular velhinhas e putos ranhosos - assegurou o PR.

- Calem-se ambos. E já! - Acrescentou a Catarina Deseufémia, muito hirta e nervosa.

Todos repetiram em coiro, digo, em coro:

- Este será último estado de emergência. Os portugueses têm o direito democrático de se infetarem em liberdade e com todas as garantias cívicas!

- Vou regressar a Goa - disse baixinho o Costa.

- Vou disputar o lugar do Marques Minorca - declarou quase inaudivelmente o nadador do Tejo.

Fez-se depois um denso silêncio, só quebrado pelo R, a subir pela escada, digo, pela escala acima. 

Do bicho humanizado ao homem animalizado – algumas notas

 


por estatuadesal

(Amadeu Homem, 14/04/2021)

Amadeu Homem

Dizem que a humanidade acrescenta à pura animalidade qualquer coisa. Insiste-se muito na racionalidade e no livre-arbítrio. Claro que, com exceção de Kafka e de mais alguns autores malditos, ninguém fez ou faz um esforço sério para se meter na organização biológica de uma formiga, de um chimpanzé ou de um gato, senão com propósitos de simples curiosidade científica.

Ficam de fora as zonas penumbrosas que respeitam ao problema de uma possível consciência animal. Como podemos facilmente pisar formigas, meter chimpanzés em jardins zoológicos ou domesticar gatos, ainda com maior vigor sentimos a legitimidade de sustentar que nós, os humanos, cume da criação divina ou da complexificação da matéria, possuímos diferenciações de superioridade que nos projetam para a galeria do excecional.

Vem isto a propósito de ter lido um texto sobre as estratégias de produção do riso na obra literária. Lá se falava que a atribuição de características humanas aos animais é um expediente divertido. Foi o que fez um Esopo ou um La Fontaine.

Mas não é menos verdadeiro que a transposição de reações animais para os seres humanos apenas arranca – quando arranca… – um sorriso tímido, comprometido, vagamente culpado. Kafka escreveu a "Metamorfose", narrativa incómoda por trazer até nós o sofrimento de um bicho que herdou certas características humanas anteriores a uma mutação operada a partir do humano. Esse facto incomoda-nos, deprime-nos, parece aviltar-nos. Pergunto-me se a “vaidade do Eu” – e de um eu exclusivamente humano – não desempenha aqui o papel determinante.

Por outro lado, lendo as aventuras do Homem da Mancha, achamos piada a Sancho Pança, ao seu largo ventre de animal primário, ao seu rifoneiro castiço, a esse “viver à flor das vísceras”, ao realismo cru das suas avaliações. Gostamos dele complacentemente, é um facto. Já não nos incomoda; apenas nos diverte. Não nos embaraça porque morfologicamente, constitutivamente, é igual a nós, sem mutações de metamorfose.

Mas, embora lhe devotemos alguma ternura, fica esta complacência misturada com a defesa do nosso reduto de gente letrada e mais polida; gente que sabe que os moinhos atacados pelo Quixote, sendo apenas vulgares moinhos, possuem junto da mente do atacante a figuração mental de gigantes. E também saberemos que por detrás desses gigantes aflora a sublimação do Ideal, a flor sagrada dessa defunta Cavalaria andante. Sancho não sabia nada disto. E, por tal, gritava, aflito, para o seu amo: – Senhor, senhor, não são gigantes, são moinhos!

Agrada-nos imaginar que também nós, nas condições em que nos fosse possível transfigurar a realidade, desafiaríamos os leões e confiscaríamos o elmo de Mambrino. Na maior parte dos casos, a verdade é que não seríamos capazes de nada disso – e não apenas pelo facto do elmo de Mambrino ser uma ficção airosa. O Ideal é uma bela coisa quando temos de sacrificar pouco por ele...

Voltemos ao riso que se move na zona indecisa que vai da animalidade tornada humana à humanidade feita animal. E confessemos que nos é bem mais agradável privar com o Coelho apressado de Lewis Carroll (animalização com hábitos humanos) do que com o bicharoco imundo da Metamorfose de Kafka (humanização que se animalizou sem retorno à forma inicial).

Somos seres ambíguos, é o que é. Mas nessa ambiguidade, quão decisiva será a supuração do nosso narcisismo?