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terça-feira, 27 de abril de 2021

Quando tivermos um dia a mais de liberdade

Posted: 26 Apr 2021 03:57 AM PDT

 


«Tenho passado anos nestas páginas escrevendo sobre a importância do dia em que tivermos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura, mais tempo de liberdade do que de repressão. Para mim, essa data tem uma importância que vai muito para lá de uma mera efeméride: mais do que uma comemoração, ela deve ser uma missão.

Vi por isso com natural contentamento o Governo decidir iniciar as comemorações para os cinquenta anos do 25 de Abril no dia 24 de Março de 2022 — que calcularam como a data em que o tempo da democracia ultrapassará o da ditadura — e nomear como comissário dessas comemorações Pedro Adão e Silva. É, portanto, daqui a apenas onze meses que esse ciclo se inicia. Nos próximos parágrafos quero relembrar os argumentos a favor da sua importância histórica e aqueles que, em meu entender, podem ser os seus objectivos.

Portugal padeceu a mais longa ditadura da Europa ocidental, durante praticamente quarenta e oito anos, e isso deixa marcas. A gerações, a indivíduos, à sociedade como um todo. Hoje dei por mim a pensar que a mim, nascido em Julho de 1972, o tempo em democracia superou o tempo em ditadura muito cedo, antes dos meus quatro anos. Mas ao meu pai, nascido em 1929, a democracia só chegou quase aos quarenta e cinco anos, e ele nunca chegou a ter mais tempo de liberdade do que opressão. A maior dívida de gratidão, é claro, vai para todos aqueles e aquelas que lutaram contra a longuíssima ditadura sem chegarem a ver o fim dela. Vidas que não puderam realizar o seu potencial em democracia, gerações inteiras sujeitas aos horizontes estreitos da ditadura.

O 25 de Abril representou uma atualização de Portugal com a história do mundo tão grande que por vezes ainda não é inteiramente entendida. Não só porque nas meras vinte e quatro horas daquele dia uma série de coisas que eram dadas por adquiridas passaram a ser inconcebíveis — a polícia política, a censura prévia, os presos de opinião — mesmo que nem tudo tenha estado no plano inicial. Mas sobretudo porque em pouco tempo se tornou evidente que “ao fim do ciclo imperial” se iria suceder “um ciclo europeu”, como um ano antes escrevera José Medeiros Ferreira. Essa atualização inevitável significou uma viragem radical da inserção geopolítica e geoeconómica do nosso país depois de 500 anos de história. Ainda muitas vezes acho, nos nossos debates sobre Portugal, a Europa e a globalização, que não se entende verdadeiramente a enormidade desta adaptação em tão pouco tempo, e o seu significado profundo: que basicamente Portugal como era não seria sustentável nesse novo ciclo, com o fim dos mercados cativos e da extração de matéria-prima nas colónias, e com uma força de trabalho com baixos níveis de qualificações a ter de competir num continente onde a maior parte da produção continha níveis de incorporação de conhecimento e tecnologia então inatingíveis para nós.

O manifesto do Movimento das Forças Armadas trazia consigo uma espécie de fórmula-síntese particularmente brilhante no traçar do rumo para os primeiros tempos do novo regime. Eram os “três D” que vinham precisamente do texto de Medeiros Ferreira ao Congresso da Oposição Democrática de 1973, de Democratizar, Desenvolver e Descolonizar (no texto original de 1973 havia também um “S”, de socializar, que não aparece no manifesto do MFA). Nenhum desses “três D” perdeu atualidade — não, nem o de descolonizar. Continuamos a precisar de aperfeiçoar e reforçar a nossa democracia; precisamos absolutamente de encontrar um novo modelo de desenvolvimento para o país; e ainda apenas adentrados no ciclo pós-imperial, continuamos a precisar de definir melhor o nosso lugar na Europa e no mundo, e a encontrar formas de sarar as chagas do colonialismo que ainda sobrevivem em novos preconceitos, discriminações e assimetrias.

Mas agora que nos aproximamos de ter mais tempo de democracia do que de ditadura, é cada vez mais pelo futuro que temos de definir. Isso significa rever metas, mesmo dentro do acervo de abril. Um exemplo que costumo dar: o objetivo da convergência com a média da União Europeia já deveria desde o início deste século ter sido considerado obsoleto; ele serviu bem à geração dos meus pais e dos meus irmãos, mas já não chega para a geração dos meus sobrinhos e filhos. E significa, no fundo, encontrar os novos “três D”, a fórmula-síntese que trace o rumo para uma democracia madura que depende cada vez mais só de si.

Por isso digo que mais do que comemoração, precisamos de uma missão. Uma missão por uma nova relação entre Estado e cidadão, entre o país e o seu território, entre as gerações e o seu futuro, num período que será marcado por enormes transformações tecnológicas, ambientais e sociais mas no qual queremos que a democracia fundada no 25 de Abril não só sobreviva mas floresça. Venham mais cinquenta.»

Não me insultem: não digam que eu sou exemplar!

 


por estatuadesal

(Amadeu Homem, 26/04/2021)

Amadeu Homem

Agora, que toda a gente tanto fala em corrupção, agora que tanta gente declara "eles são corruptos, ou simplesmente venais, ou moderadamente incorretos, MAS EU NÃO, EU SOU EXEMPLAR!”, este Vosso amigo vem dizer que nunca foi exemplar e que, muito provavelmente, nunca o irá ser.

Passo a explicar. Eu considero que não sou mau tipo e que não sou mau cidadão. Mas levaria a mal que me considerassem exemplar! Saibam todos os que frequentam esta página que eu - que não sou má criatura - não me considero e talvez nem me queira exemplar.

Foram inúmeras as situações em que roubei o Estado! Inúmeras! Desde a daquela vez em que arranjei um pintor que me pintasse a casa "mas sem recibo", até àquela outra em que disse ao mecânico que lhe pagava uma retificação de motor do meu velho "jeep", pelo preço que ele me adiantou, mas só se as coisas fossem feitas "por fora"!

E as vezes em que eu já vendi livros meus a amigos sem passar recibo? E uns selos em duplicado e umas especialidades filatélicas que eu vendi no OLX sem os declarar ao fisco? Ainda foram umas centenas de euros!

Isto, só que me lembre! É provável que haja um milheiro de situações em que eu estive muito longe de ser exemplar! A chatice toda está em que eu não tenho apetite em me portar bem, em certos domínios. E isto, porquê? Porque o equilíbrio saudável do mundo é aquele que se alcança no reconhecimento da imperfeição ética da espécie.

Aqui para nós: de quem eu tenho mais receio (juro, sob palavra de honra!) é daqueles que declaram que eles foram sempre transparentes, lisos, corretos, incapazes de uma safadeza! Desses, eu tenho um receio que se aproxima do pânico!

Cheiram-me a "Venturas", que deve ser o mais acabado dos filhos da puta!

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Sócrates

 


por estatuadesal

(Porfírio Silva, in Blog Machina Speculatrix, 16/04/2021)

Creio que José Sócrates tem razões de queixa do sistema judicial, mas também creio que seria profundamente errado pretender que isso é tudo o que há a dizer sobre a matéria.  

1. Sócrates não é o primeiro, e não será o último, a ter razões de queixa da justiça portuguesa. A detenção mediatizada do antigo primeiro-ministro, ser preso para ser investigado, as condições da sua prisão preventiva, os anos à espera de que seja feita justiça, as constantes fugas seletivas de informação do meio processual para alimentar as campanhas de ódio no espaço público, as reviravoltas da acusação e da pronúncia, dão, no seu conjunto, um retrato horrível daquilo que um poder do Estado pode fazer ilegitimamente contra um cidadão.

A transformação de um processo judicial numa arena de combate primitivo, para alimentar audiências, é o corolário de um sistema de justiça que parece incapaz de impedir que as suas fraquezas sejam aproveitadas para o espetáculo da erosão da própria justiça substancial. O que se está a passar com Sócrates já se passou, embora com espetáculos de menor duração, com outras pessoas. Há casos de, no mínimo, flagrante incompetência do sistema de justiça, que deixam marcas profundas e dolorosas na vida de muita gente e um ferrete na vida coletiva: basta lembrar a ignomínia de que foi vítima Paulo Pedroso, um dos mais competentes e brilhantes políticos portugueses.

Desculpar as falhas ou os enviesamentos da justiça com uma presunção sobre culpabilidade ou inocência é, apenas, uma inversão de valores própria dos métodos inquisitoriais, dos julgamentos populares ou das ditaduras.

2. Repito, pois, que não tenho dúvidas de que Sócrates tem razões de queixa da justiça portuguesa. E isso importa, já que tanto os inocentes como os culpados têm, todos, direito a uma justiça justa, para que tanto uma condenação como uma absolvição sejam justiça e não vingança (e nem sequer desleixo). Uma parte das questões que este processo suscita são questões de organização do Estado, que afetam potencialmente qualquer pessoa que possa cruzar-se com o nosso sistema de justiça, e, por isso, dizem respeito a todos. E devem ser tratadas como questões políticas em sentido geral, porque dizem respeito ao bem de todos e aos perigos que todos corremos. Contudo, nenhuma dessas questões deve ser tratada especificamente por existir um processo envolvendo Sócrates. Essas questões devem ser tratadas como necessidades de melhoramento da justiça portuguesa, por todos e para todos. Qualquer tentativa de modificar regras legais por causa de, ou em ligação com um caso concreto, seria o caminho mais curto para deslegitimar as políticas públicas de justiça. Qualquer tentativa de centrar o debate sobre a justiça nas ocorrências de um caso, concreto e individualizado, seria um método e um procedimento errado, que teria consequências desastrosas.

3. Pode ter havido intenção política de capturar Sócrates neste processo? Pode. Como pode ter havido em casos anteriores. Contudo, essa acusação não deve ser feita levianamente – porque já estamos cansados de acusações formuladas levianamente. O próprio Sócrates pode perfeitamente ter sido vítima de acusações formuladas levianamente e não curamos a doença espalhando mais veneno. Não devemos perder a esperança, contudo, de que, se Sócrates, ou qualquer outro, tiver sido, estiver a ser, ou vier a ser vítima de um processo politicamente motivado, o possamos vir a demonstrar. Sabemos que a história não está virgem desses casos – embora uma concreta acusação contra uma determinada pessoa não se resolva por analogia política. Invocar Lula e Moro é uma analogia apelativa, mas fazer dela uma dedução automática para outro caso ainda seria proceder pelo método dos julgamentos populares. Ora, não há julgamentos populares bons e julgamentos populares maus: são todos iníquos.

4. Um dos venenos que têm sido vastamente espalhados a propósito deste caso é a confusão entre critério ético e critério penal. Um comportamento suscetível de censura ética não é necessariamente um crime. Ao mesmo tempo, o facto de um comportamento não configurar um crime não nos dispensa de o avaliar eticamente. Querer misturar ética e código penal, seja para mais facilmente condenar, seja para mais facilmente absolver, é inaceitável. Os tribunais não fazem avaliações de natureza ética geral, mas cabe aos tribunais avaliar crimes. É inaceitável que se insista em misturar esses dois planos. E essa mistura tem vindo de vários lados: do lado dos que desculpam tudo que não seja crime, e também do lado dos que argumentam com a ética para defender uma determinada ação penal. E sobram os candidatos a avaliadores éticos muito vesgos, consoante a cor do alvo – o que constitui a pior manifestação de uma fraude à ética. 

5. É perfeitamente possível que uma pessoa, vendo-se acusada em tribunal, se defenda admitindo um comportamento que não constitui um crime. O que não temos é de aceitar como normal, ou irrepreensível, qualquer comportamento que não seja criminalizável. Neste caso concreto, atendendo a declarações do próprio, é perfeitamente concebível que Sócrates tenha tido comportamentos que, não sendo crimes, são condenáveis. Condenáveis à luz de algum critério ético muito geral, ou condenáveis simplesmente à luz de escolhas de valores próprios de um determinado grupo humano. Mas, também no plano ético, a mera suspeita não prova nada.

O facto de Sócrates ter sido secretário-geral do PS, e de ter sido primeiro-ministro por indicação do PS, legitima que os socialistas tenham uma valoração dos seus comportamentos à luz daquilo que os próprios socialistas consideram coerente com os seus princípios políticos. Isso tem algum valor para uma condenação criminal? Não tem. Tem, não obstante, um valor ético. E ninguém nos pode pedir que prescindamos desse critério ético. Nem se nos pode pedir que deixemos o juízo ético para depois do juízo penal. Mesmo que os critérios éticos não sejam de aceitação uniforme ou universal (tal como as ponderações jurídicas são disputáveis).

6. A justeza do sistema de justiça, bem como a sua eficácia e eficiência, é aperfeiçoável. No caso de Portugal, tem vindo a ser aperfeiçoado. Por exemplo, a malha das prescrições tem vindo a ser apertada. Será preciso fazer mais, mas o que tem de ser feito é continuação do que já se tem vindo a fazer. É especialmente importante que continuemos vigilantes quanto à corrupção. A corrupção é o alimento do fascismo e dos seus monstros – mesmo sendo os fascistas e as suas metástases os principais beneficiários da corrupção, quando deitam a mão ao poder. Combater a corrupção é vital para defender a democracia.

Para quem exerce funções políticas, ou simplesmente funções de relevância pública, e não tira nenhum proveito pessoal disso no plano material – que é o caso da esmagadora maioria dos cidadãos que exercem essas funções – é simplesmente abominável que o seu trabalho seja conspurcado por alguns que confundem a coisa pública com outros caminhos que podiam ter seguido para enriquecerem legalmente. Evitavam de vir enriquecer ilegalmente para funções onde se pode empobrecer alegremente por dedicação à causa pública.

É inaceitável que alguns, na voragem de um comportamento incivilizado que faz do funcionamento da justiça um espetáculo de combate de morte, um espetáculo de ódios primários, se esqueçam como é decisivo para a democracia o combate contra a corrupção – coisa muito diferente de criar espantalhos à medida dos ódios políticos.

7. Nenhuma pessoa, nenhum socialista, tem o direito de querer que o PS se transforme num partido de uma causa individual, por mais justa que ela seja. Os socialistas têm o dever de honrar o património de um partido que sempre colocou o bem comum acima de qualquer causa particular. Também merece uma apreciação ética – aqui, uma apreciação negativa – a tentativa de emparedar um grande partido popular, que foi e continua a ser fulcral na construção e sustentabilidade da democracia portuguesa, tentando metê-lo no beco de um específico processo judicial, mesmo que dele seja preciso extrair consequências para a coisa pública. Os partidos não são um fim em si mesmos, os partidos são instrumentais – mas devem ser instrumentais exclusivamente para o bem comum.

Sem alarmismo, acionar alertas

Posted: 24 Apr 2021 02:56 AM PDT

 


«As pessoas, de todas as gerações, vivem um dia a dia carregado de apreensões e medos que geram nos seus comportamentos amolecimento e acomodações. Estamos encurralados entre os perigos reais provocados pela pandemia, o alarmismo causado por notícias especulativas e até empolamento de riscos, e uma catadupa de informação cheia de contradições (com ou sem justificação) produzida por Governo, presidente da República, alguns políticos e especialistas.

Perante esta encruzilhada, evoquemos o 25 de Abril e a dinâmica transformadora que gerou, para nos interrogarmos. Como salvaguardar a democracia e os direitos e deveres individuais e coletivos consagrados na Constituição da República? As sucessivas renovações do estado de emergência têm considerado os problemas concretos que as pessoas estão a viver, ou têm-se estreitado no objetivo de "equilibrar economia e saúde", considerando esta apenas em algumas das suas expressões? Vamos deixar que as emergências e exceções se consolidem como futura normalidade?

Centenas de milhares de crianças e jovens estão há mais de um ano impedidos de fazer desporto e atividades culturais e os clubes e associações que os acolhiam vão deparar-se com enormes dificuldades para retomar a vida normal. A desabituação poderá levar parte desses jovens a não voltarem às atividades. Por outro lado, o confinamento induziu-lhes receios sobre práticas de socialização que os vão marcar. Isto é um drama face à importância do desporto, da atividade física e das relações sociais na preparação de uma sociedade saudável.

Os trabalhadores e trabalhadoras que estão em caixas de supermercado, em atividades ligadas a abastecimentos indispensáveis, em serviços de limpeza e de segurança ou nas fábricas sem poderem parar de trabalhar, nunca foram considerados como potencial grupo prioritário no processo de vacinação. Isto merece reflexão e não é bom para a necessária valorização do trabalho.

Antes da pandemia, Lisboa era apresentada como um destino turístico de referência, espaço para endinheirados estrangeiros investirem em imobiliário de luxo e zona de concentração de escritórios de grandes grupos empresariais internacionais. Eram estes os "fatores competitivos" desta cidade (e de outras) invocados para justificarem o custo elevadíssimo da habitação. Agora é evidente que o turismo tardará a ressurgir e não se sabe com que mudanças, as grandes empresas e múltiplos serviços públicos diminuem ou eliminam escritórios no pressuposto da massificação do trabalho remoto que, diz-se, levará muitas pessoas para o interior: mas o preço da habitação e do imobiliário não baixam. Quem explica isto com verdade?

Fruto de uma retoma económica com horizonte continuamente adiado, da economia se estar a afunilar crescentemente em meros negócios e do cutelo das moratórias, todos os dias vemos crescerem as ameaças do desemprego e a desproteção de pessoas. O Governo, para dar a ilusão de que toma muitas medidas de resposta aos problemas de cada setor da sociedade, vai respondendo em microparcelas de quase nada.

Na crise anterior, o povo português foi sujeito a sacrifícios depois de convencido de ter andado a viver acima das suas possibilidades. Agora, tudo indica que está em preparação o regresso à mesma receita. Talvez contem com o amolecimento dos cidadãos provocado pela sujeição às exceções.»

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sábado, 24 de abril de 2021

23.04.1936 – Tarrafal, 85 anos

 23.04.1936 – Tarrafal, 85 anos

Posted: 23 Apr 2021 03:30 AM PDT

 


A Colónia Penal do Tarrafal foi criada pelo Governo de Salazar ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26. 539, de 23 de Abril de 1936.

Seis meses depois, em 18 de Outubro, os primeiros presos saíram de Lisboa, no paquete Luanda, com destino ao que viria a ser o «Campo da Morte Lenta», na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Aquele navio era normalmente usado para transporte de gado proveniente das colónias e os porões utilizados para esse efeito foram transformados em camaratas. Depois de uma escala no Funchal e de uma outra em Angra do Heroísmo, para recolher mais alguns detidos e / ou largar os menos perigosos, e no fim de uma viagem em condições degradantes, foram 152 os que desembarcaram, no dia 29, em fila indiana, antes de percorrerem os 2,5 quilómetros que os separavam do destino final.

Edmundo Pedro foi o último sobrevivente deste primeiro grupo que construiu e viveu (durante nove anos, no seu caso) neste campo de concentração. No primeiro volume das suas Memórias, dedica longas páginas à descrição do que foi essa terrível viagem que durou onze dias. (*) O início e o fim:

«E na noite de 18 de Outubro, de madrugada, reuniram-nos em camionetes da GNR. Estas dirigiram-se para o cais de embarque, em Alcântara... No caminho, apesar das ameaças dos soldados, demos largas ao nosso protesto. O nosso vibrante grito de revolta ecoou, ao longo de todo o percurso, nas ruas, desertas, daquela madrugada lisboeta. Cantámos, a plenos pulmões, todas as canções do nosso vasto cancioneiro revolucionário... (...) A 29 de Outubro de 1936, onze dias depois de termos partido de Lisboa, o velho Luanda fundeou, ao princípio da tarde, na pequena e aprazível baía do Tarrafal. Pouco depois, começou a descarregar a "mercadoria" que transportava nos seus porões... Alguns prisioneiros tinham chegado a um tal estado de fraqueza que só puderam abandonar o barco apoiados nos seus camaradas...»

Depois, foi o que se sabe: histórias de terror, 32 pessoas por lá morreram e o Campo durou até 1954. Foi reactivado em 1961, quando começou a Guerra Colonial, como «Campo de Trabalho do Chão Bom», para receber prisioneiros oriundos das colónias portuguesas (o ministro do Ultramar era então Adriano Moreira e foi ele que assinou a respectiva portaria). Durou até 1974.

(*) Edmundo Pedro, Memórias, Um Combate pela Liberdade, Âncora Editora, 2007, pp. 350-359.