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segunda-feira, 7 de junho de 2021

 

Europa – um continente que se transforma em península

por estatuadesal

(Vítor Lima, in Blog Grazia Tanta, 02/06/2021)

Habituámo-nos a considerar a Europa como um continente. E se a realidade política e económica a transformarem de dependência norte-americana em península asiática?


1 - A União Europeia das desigualdades

No capitalismo avançado, de perfil neoliberal, as fronteiras são tomadas como estorvos que podem dificultar a tramitação de mercadorias. E a internet veio facilitar de modo exponencial os contactos em geral, as operações de capitais e a demência especulativa, em particular. Quanto aos seres humanos as coisas são algo diferentes; são necessários cartões de cidadão, passaportes, vistos, títulos de residência e … em curso, um certificado sobre a situação face à covid-19.

A UE pretendeu ser um factor de homogeneidade quanto a direitos e usufrutos no sentido da facilitação das trocas entre os países membros, como resposta à grande rivalidade saída da II Guerra, entre norte-americanos e soviéticos. Inicialmente, as diferenças políticas e económicas entre os seus membros não eram muitas até à integração da Grécia (1981) e dos países ibéricos (1986), com graus de desenvolvimento económico claramente inferiores aos fundadores. Posteriormente, com a inclusão dos países saídos do Comecon e do sangrento desmembramento da Jugoslávia, as desigualdades no seio da UE alargada cresceram substancialmente, apresentando enormes bolsas de potenciais emigrantes destinados a trabalhar nos países mais ricos, desertificando e envelhecendo os seus países de origem, tomados como exportadores de mão-de-obra. Como os níveis de formação desses países são dos mais elevados da Europa (mormente a Leste) e, essa formação sendo paga pelas famílias dos países das suas origens, logo se vê que quem vai beneficiar da qualificação desses trabalhadores emigrados são os países ricos, com dinheiro suficiente para pagar salários que nos países de origem não são praticados. Como essas desigualdades interessam aos contratantes (países ricos) e aos contratados (trabalhadores dos países pobres), falar de coesão social e territorial no seio da UE é uma mentira consolidada com a passagem do tempo.

O piedoso objetivo de unificação e solidariedade não se cumpriu. São perfeitamente visíveis os países ou regiões em processo de regressão populacional e aquelas que atraem população, embora na UE não haja apenas migrações entre os estados-membros mas também de gente vinda do exterior. Por exemplo, os turcos dirigem-se para a Alemanha, os marroquinos para Espanha, indianos e paquistaneses para a Grã-Bretanha, brasileiros para Portugal…

Os países mais ricos viram nos países mais pobres integrados na UE destinos interessantes para investimentos, com aproveitamento dos baixos níveis salariais locais e, em muitos casos, ligados a níveis educativos elevados (sobretudo nos antigos países do Comecon); nesses territórios encontrava-se gente ávida de consumo e bem-estar, pronta para trabalhar e obter melhorias nas suas vidas[1]. Por outro lado, a integração desses países funcionaria como um modelo de consolidação de centros e periferias, com estas a orbitarem os países com maior pujança económica, demográfica ou financeira; um modelo de reorganização espacial e económica, geradora de desigualdades que interessam ser permanentes nomeadamente no capítulo do preço do trabalho. Tudo porém, bem camuflado numa linguagem de igualitarismo que a realidade demonstra ser falsa; registando-se entre as periferias casos de algum sucesso, como de total insucesso.

Toda essa arquitetura está bem embrulhada em textos legais, extensos e detalhados onde claramente se evidenciam as dificuldades para os países que queiram voltar atrás, saindo da União; sem prejuízo de ser evidente o desastre de uma saída para qualquer estado-membro de menor gabarito, sobretudo se incluído na área do euro[2]. A Grã-Bretanha conseguiu sair mas levou consigo problemas que põem em causa a continuidade das suas parcelas periféricas – Escócia e Ulster – deixando à realeza a Grande Londres como poderosa praça financeira ligada aos numerosos pontos offshore espalhados pelo planeta. É duvidosa a viabilidade da saída de países desestruturados, pobres, com comércio em grande parte efetuado no seio da UE e dependente de apoios comunitários. A UE replica no seu seio as desigualdades típicas dos estados federados; nos EUA as diferenças entre a Florida e a Virgínia Ocidental são gritantes; no Brasil, o estado de S. Paulo tem uma capitação de rendimento três vezes superior ao do Ceará; em Espanha, o rendimento na Comunidade de Madrid é duplo da autonomia mais pobre (Extremadura); e em Portugal a região Norte apresenta um rendimento pouco superior a 2/3 do registado em Lisboa e Vale do Tejo. Em suma, a UE replica as desigualdades sociais e económicas vigentes em todos os estados-nação e estas jamais desaparecerão num quadro de competição capitalista; a gestão global da pandemia atual revela à saciedade as diferenças que o capitalismo gera e sustenta. Cooperação e entreajuda dão melhores resultados do que a tara da acumulação de capital até ao infinito.

Se inicialmente, os países da CEE tinham níveis de rendimento e estruturas produtivas aproximadas, a partir da entrada da Grécia na então CEE as coisas modificaram-se com a inclusão daquele país pobre, com estruturas produtivas e rendimentos muito diferentes; e a que se seguiram os países ibéricos, etc. Como é evidente, as classes políticas dos países menos desenvolvidos, sedentos de se tornarem os elos de ligação e protagonistas de uma corrupta absorção dos fundos comunitários, não se preocuparam em consultar as populações sobre a aceitação ou não, de tal alteração geopolítica. Pelo contrário, locupletaram-se ao que puderam e alguns tornaram-se “empresários” beneficiando das boas ligações no âmbito do partido-estado PS/PSD, no caso português. Os chamados investidores internacionais sabem que têm de pagar um fee específico para qualquer negócio com um paísonde a corrupção faz parte da naturalidade e, tratam de contratar intermediários abalizados – os escritórios de advogados.

Onde se afirmava um plano político de coesão territorial, política e de bem-estar, manteve-se, na realidade, apenas uma hierarquia de países com diversos níveis de poder político, comercial e tecnológico, concorrendo uns com os outros, para o aproveitamento dos fundos comunitários que possibilitassem o investimento dos capitalistas dos países mais ricos nos menos ricos, de mais baixos níveis salariais, dando ainda margem para a aplicação desses fundos de acordo com os interesses das mafias partidárias, nacionais ou autárquicas. Europa das Regiões, alguém se lembra?

Na realidade, os países mais pobres continuam a estar na parte baixa da hierarquia, mantendo-se a UE como uma união de desiguais.

Nesse contexto, há uma “especialização”. Os países da UE com estruturas económicas mais potentes e especializações produtivas de maior conteúdo tecnológico tendem a focar-se nas relações comerciais com um vasto leque de países, mormente na exportação – é o caso evidente da Alemanha. Os países com padrões de especialização menos avançados tendem a focar-se na produção de bens de menor conteúdo tecnológico, como produtos agrícolas ou turísticos, tendo como compradores os países mais ricos da União. E, no caso de produtos agrícolas de exportação, não faltam mafiosos locais para a integração de imigrantes não comunitários em condições e salários substandard.

2 - A UE no plano global

No final da II Guerra, a Europa tornou-se uma área política e militarmente partilhada. Na parte ocidental, a presença de tropas norte-americanas visaria a defesa face a qualquer avanço soviético; e, para tal foi instituída em 1949, a NATO, a que se juntaram a Grécia e a Turquia em 1952. Como resposta, em 1955, surgiu o Pacto de Varsóvia, abrangendo os países de modelo soviético, liderados pela URSS. Uma Europa segmentada, bipartida e,  obrigada a aceitar o fim de séculos de colonização, apresentou-se ainda mais frágil perante os dois colossos do momento – EUA e URSS.

Com o final da chamada guerra fria, a NATO manteve a sua existência, alargou o seu âmbito geográfico com a integração dos países do extinto Pacto de Varsóvia e, com intervenções militares nos Balcãs e, fora do âmbito europeu, na Líbia, no Sahel e no Afeganistão. O domínio militar e político dos EUA no cenário europeu representa também a garantia de um mercado cativo para a enorme produção norte-americana de armamento; mantém a influência política dos EUA a ocidente da fronteira russa e no Mediterrâneo; e, pretende ainda a contenção da penetração da influência comercial e política da China em todos os cantos do planeta (ver o mapa no final do texto) .

O gasto militar conjunto dos EUA, da França, da Grã-Bretanha e da Alemanha em 2020 foi de $ 942,7 mil milhões dos quais $ 778 mil milhões cabem aos EUA e, sabendo-se que a utilização de tais recursos está espalhada por várias partes do planeta e não apenas na Europa. O gasto militar da Rússia foi de $ 61.7 mil milhões, certamente não apenas centrados no cenário europeu. E a China, por seu turno, gastou $ 252 mil milhões, concentrados, no Extremo Oriente.

Outros factores desenham a menoridade europeia. O euro não conseguiu suplantar o dólar como moeda global, o renminbi chinês também não e, a libra é uma sombra do seu passado. Não é estranho que a Europa se mostre como uma potência exportadora (a despeito das suas gritantes desigualdades internas) mas com uma capacidade de intervenção reduzida no xadrez político global. Mantém-se, portanto, a situação de uma Europa como uma base norte-americana para o domínio estratégico do Atlântico Norte e do Mediterrâneo, contando ainda os EUA com a desestruturação política e económica do espaço que se estende do Líbano à Mesopotâmia e ao mar de Oman, englobando-se aí, obviamente o Golfo Pérsico[3]; e, sobretudo com o apoio da fiel entidade sionista. Em resumo, os EUA mantêm o seu controlo estratégico sobre a Europa; e esta evidencia a sua menoridade política focando-se nas minudências burocráticas, deixando ao longe a liderança global marcada em Lepanto (1571) e, consolidada no segundo cerco de Viena (1683).

Está em curso uma grande alteração vinda do Leste asiático, depois de uma primeira fase protagonizada pelo desempenho económico do Japão e da Coreia do Sul, países que continuam desde os finais da II Guerra sob protetorado dos EUA (como na Europa com a presença da NATO) embora não se dispensando de elevados custos militares; aqueles dois países em 2020 gastavam com as forças armadas pouco menos de $ 50000 M cada um.

Essa tara militarista que carateriza os EUA, com bases e frotas em todo o mundo, com o envolvimento em guerras e destruições assombrosas tornou os EUA totalmente distanciados da criação, em 2014 doAsian Infrastructure Investment Bank (AIIB); ou, em 2020, do Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) que inclui países tutelados militarmente pelos EUA (Coreia do Sul e Japão) ou, sob a sua influência política (Austrália e Nova Zelândia) e no qual a Índia não quis participar… por enquanto, durante o consulado do fanático hinduísta, Modi. A História regista que o comércio, as trocas, aproximam os povos, promovem interações culturais e constituem um enorme instrumento de desenvolvimento económico, ao contrário do militarismo; como se pode observar no quadro seguinte.Percentagem do PIB mundial (em termos de paridade de poder de compra)

 198019902000201020152020  (est)
UE30.227.623.719.016.915.6
EUA21.922.120.716.815.814.7
China2.34.17.513.917.319.0

                                                     Fonte: FMI - Economic Outlook 2016

Em 2020, a pujança económica chinesa conduziu a que a UE tenha tornado a China como o seu primeiro parceiro comercial, remetendo os EUA para um segundo posto; a forma como ambos os países enfrentaram o surto do coronavírus releva a decadência dos EUA e a sua substituição pela China como principal economia mundial.

A relação que se estará a firmar na Euro-Ásia, envolve várias vertentes. Uma, é o reforço da Rússia como elo essencial de ligação entre a Ásia Oriental e a Europa; ligação essa que pode vir a ser praticada através do Ártico. Outra, é um desenvolvimento do abastecimento de gás russo à Alemanha, através do Báltico, perante o azedume dos EUA.

Este é o estabelecimento de vários troços da Rota da Seda, integrando os países da Ásia Central e os países muçulmanos do Próximo e do Médio Oriente, através de vias ferroviários de elevada velocidade, uma área em que a China tem um elevado desempenho, como se releva adiante. Segundo Keith Bradsher, do New York Times, em 2012, a China inaugurou uma linha férrea de alta velocidade que percorre 2298 km entre Pequim e Guangzou, com 35 paragens, em dez horas; transposta para a Europa, essa infraestrutura faria um percurso Londres-Belgrado em… oito horas. A distância acima referida equivale à distância entre New York e Key West, no sul da Florida; no entanto, um percurso ferroviário atual, um pouco menor (New York/Miami) é, hoje efetuado em… 30 horas de viagem. Tais desenvolvimentos na China como na Europa poderão oferecer percursos diversificados para as transações entre a Europa e o Oriente e incluir os países da referida ASEAN e da costa oriental de África.

Tendo em consideração a população da “Península Europeia” a integração euro-asiática (de momento, excluindo a Índia) vai para além dos 2500 M de pessoas ligadas por uma massa continental contínua e diversificada, culturalmente e quanto aos níveis de vida ou criação de riqueza.

Não é expectável uma guerra na Europa com uma dimensão global. A presença militar dos EUA foi justificada durante quase meio século com a existência da URSS e do Pacto de Varsóvia. A extinção destes últimos teria sido uma boa oportunidade para o enterro das alianças militares; no entanto, a NATO continua a existir, feliz por ter englobado os países balcânicos; e esperando, depois da inclusão dos países do extinto Comecon, cercar as fronteiras russas na Ucrânia e no Cáucaso.

Depois do final da Guerra Fria, os EUA, com ou sem a máscara NATO, promoveu guerras no território da antiga Jugoslávia, invadiu a Líbia e o Afeganistão, armou o ISIS para desestabilizar a Síria e o Iraque, com o reforço da ligação às monarquias do Golfo para isolar o Irão e, desenvolver o cancro sionista na exata medida do esmagamento do povo palestiniano. Os EUA continuam a estar presentes nos conflitos africanos, mantendo a sede do seu Africom localizada em Estugarda (!), numa situação reveladora do seu papel de entidade estranha aos povos do continente; e enquadrando, entre outros auxiliares, também em África, mercenários portugueses.

A aposta militarizada dos EUA é uma verdadeira demência, sobretudo quando se toma conta do grau de pobreza de grande parte da sua população e as suas deficiências quanto a infraestruturas, como atrás exemplificámos. A sua presença militar na Europa continua a utilizar e reproduzir o cenário da Guerra Fria, imputando à Rússia um poder económico e militar que esta não tem. A Rússia tem apenas 150 milhões de habitantes e o seu gasto militar é mais de doze vezes inferior ao dos EUA.

Onde parece haver bastante homogeneidade entre os membros da UE é na subserviência estratégica perante a NATO, com a aceitação da liderança dos EUA[4]. Na UE parece que se quer manter os EUA com um pé na Europa, para evitar uma imersão total da Península Europeia nas infraestruturas da Rota da Seda, cuja concretização manterá bem longe as esquadras norte-americanas no Índico e no Pacífico, tendencialmente obsoletas do ponto de vista estratégico, com o aumento da relevância de vias terrestres na ligação entre o Oriente, a Ásia Central e a Europa. A pujança económica da China, aliada à sua força demográfica (mais que dupla que a dos países da UE) promete secundarizar a Europa. Essa secundarização, no passado, mostrou-se bem evidente em Bretton Woods, com a segmentação da Europa em ocidente e oriente, com a presença de bases militares de potências ocupantes e, com sangrentas descolonizações (Argélia, Vietnam e colónias portuguesas).

Que papel caberá à Europa, a médio ou longo prazo?

·        Potência económica regional sem um papel relevante na política internacional inserida, sem protagonismo, no confronto estratégico China/EUA?

·        Quanto à China, a Europa procurará uma relação de vantagens económicas mútuas integrando-se nos corredores logísticos previstos e para cuja construção a maioria dos países europeus se ligou (o AIIB acima referido);

·        Manutenção das atuais e gritantes desigualdades regionais no seio da UE susceptíveis de posições políticas desviantes, como o que a GB decidiu, com o seu Brexit? E potenciadores de diversificadas clivagens, facilitadas pela grande diversidade de culturas e enquadramentos históricos recentes?

·        Uma preferência como aliado subalterno dos EUA cuja decadência relativa é evidente, como se observou na gestão da pandemia, nas enormes bolsas de pobreza, pelos problemas políticos e sociais resultantes de um relevo ancestral dado à “raça”? Um país que gasta em armamento tanto como os restantes e que força os seus aliados a comprar o necessário à manutenção do seu enorme e influente complexo militar-industrial?

domingo, 6 de junho de 2021

 


A indústria de falsificações do Estado Novo

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 05/06/2021)

Pacheco Pereira

Numa altura em que a direita radical tenta recuperar o conjunto da sua história no século XX, ou seja, os 48 anos em que governou Portugal em ditadura, porque precisa de reforçar a sua legitimidade limpando-se do seu passado, para demonizar à vontade o dos “outros”, vale a pena olhar para o que foi esse período negro da nossa vida colectiva. Ou pensam que foi a esquerda que governou de 1926 a 1974? Como se diz em português plebeu, lata para dizerem isso têm.

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Uma das técnicas é dizer que o regime da ditadura –​ a que não chamam assim, como é obvio –​ foi “indefensável”. De passagem, como se come um peão no xadrez, brevemente e sem consequências na economia do discurso, para depois não dizerem uma linha, uma palavra, um “mas”, mesmo de circunstância, sem mencionar a ditadura, as prisões e a repressão, a censura, e os milhares de mortos da guerra colonial durante a módica quantia de 48 anos. Terra de leite e MEL, com um pequeno problema, que é “indefensável no plano político”, mas nem sequer se diz porquê, porque estragava o resto, o que é “defensável”. O que está implícito é que em muitas outras matérias é “defensável”. Foi isto que fez um académico numa intervenção estritamente política e com muito pouco de académico, Nuno Palma, no MEL. No sentido weberiano percebe-se bem de mais o mecanismo da empatia com aquilo que é eufemisticamente classificado apenas como o Estado Novo. E desafio o Polígrafo a desmentir-me.

O problema do contexto é iludido e, neste caso, o contexto é tudo. Não faltam exemplos do contexto que, esse sim, falta aqui. Só a Censura tinha uma história longa e exemplar para contar, mas não havia só Censura, havia falsificações, fake news, com a publicação pela Legião Portuguesa e pela PIDE de documentos falsos, disfarçados de verdadeiros. Era uma prática muito comum, que abrangia panfletos com assinaturas falsas, exemplares falsos de jornais clandestinos e cartazes com imagens manipuladas, de que os que aqui reproduzo são meros exemplos. Desde Salazar, mentindo publicamente sobre o assassinato de Delgado, ao legionário da esquina, a falsidade era o corrente. A falsidade, a calúnia e a difamação como instrumento de ataque aos opositores.

(Números falsos do Avante!, de O Jovem, da FPLN, e um comunicado com falsas biografias de candidatos da oposição)

Dos exemplares que reproduzo acima um é particularmente repulsivo, a “biografia” de Mário Sottomayor Cardia. Cardia é acusado de roubar dinheiro nos vestiários da Cidade Universitária para ir cear ao restaurante Mónaco, de onde saía embriagado, e de ter sido protegido pela PIDE por ter participado num atentado à bomba. Tenho a certeza, mas tenho mesmo a certeza, que haverá quem leia isto hoje e pense: “Se calhar era mesmo verdade.” Hoje, em 2021, porque quando este papel imundo foi feito quem o lia percebia que a PIDE ou a Legião estava a fazer o seu trabalho sujo. Do modo como as coisas estão, era mais inócuo lê-lo em 1969 do que hoje.

A coisa repugna-me em particular, porque Sottomayor Cardia foi nesta altura preso e espancado pela PIDE, provocando-lhe um deslocamento de retina. Cardia era um homem tão franzino, como corajoso, e a violência contra ele é por si só uma “marca de água” da brutalidade da ditadura “indefensável”. Aliás, a mesma propensão dos valentes polícias e pides para baterem em homens de constituição frágil provou-a Urbano Tavares Rodrigues. E, em bom rigor, muitas e muitas centenas de comunistas, anarquistas, oposicionistas, ou inocentes apanhados por engano, como os primeiros acusados do atentado a Salazar que, como é óbvio, “confessaram”.

Eu, aos do MEL, do Observador, dos novos think tanks e da galáxia comunicacional cada vez mais vasta, percebo-os bem de mais. Esmagados pela ditadura férrea do PS, do PCP e do BE, e pela inoperância da “direita fofinha”, ou seja, o PSD, o que os irrita é não poderem assumir uma inocência que a sombra dos 48 anos de governo da direita em ditadura lhes tira. Mas em conclave estão cada vez mais à vontade para louvar essa direita não fofinha que nos protegeu do comunismo durante quase todo o século XX.

Eles pensam que são muito corajosos combatentes contra o ditador António Costa, mas são apenas lampeiros. Grandes palavras tem o português. E ouçam-se as palmas – aliás, o padrão das palmas no MEL é idêntico em todos os oradores, de Ventura a Sérgio Sousa Pinto –, que são o retrato da audiência na sala, do que quer e do que lhe interessa. E esse padrão é muito mais sinistro do que tudo o resto. Não se ponham a pau…


Historiador

sábado, 5 de junho de 2021


Arquitectura e crime

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 04/06/2021)

A estrutura de metal e vidro, dita “marquise”, que Ronaldo mandou implantar por cima da sua penthouse, no topo do edifício de 13 andares, em Lisboa, projectado pelos arquitectos José Mateus e Nuno Mateus, tornou-se imediatamente matéria para discursos jocosos, mas é um assunto muito sério. Só começa no entanto a ser sério se deslocarmos a questão da riqueza e do desejo de luxo ostentado por Ronaldo (coisa, aliás, bastante inocente) para o estetismo — a anestesia da arquitectura — e a exacerbação autoral de quem desenhou o edifício.

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Não falarei do edifício em si, da sala de cinema, do spa, do hall de entrada, das piscinas, dos puxadores das portas, dos corrimãos, do primor de todos os pormenores, dos quais José Mateus falou com o orgulho de mestre de uma bela obra que recita aos que têm o privilégio de aceder ao interior: “Vejam como sou belo e requintado”. Exclusivo for the few. O problema começa aqui e, como é óbvio, não se limita à Rua Castilho, 203, nem ao atelier de arquitectos ARX. Até seria injusto tomá-lo como exemplo se não fossem as palavras cândidas dos próprios arquitectos, para quem o pecado, que dantes morava ao lado, se veio instalar mesmo por cima. Uma “conspurcação ignóbil da nossa arquitectura”, disseram eles. Certamente com razão.

Mas há uma outra razão que devia estar acima dessa. E essa serve não para interpelar os donos dos apartamentos, mas os arquitectos, urbanistas, vereadores e presidentes que nos espoliam a cidade que é de todos nós. Ouvindo as reacções de José Mateus à vilipendiada “marquise” que veio “atropelar” a “cultura” e as “autorias”, até parece ele que vive num empíreo e que só tem de responder perante quem lhe encomendou a obra e em nome de uma razão estética, de uma abstracta beleza. Ora, embora isso seja uma regra a que já estamos habituados, há momentos como este em que apetece dizer que essa regra é um atropelo ignóbil ao nosso direito à cidade. Os arquitectos daquele edifício sabem seguramente o que significa a verticalização da arquitectura, a transformação do skyline da cidade para oferecer a uns poucos “um conceito único de exclusividade” (como se diz no site do edifício). Entre essas exclusividades, está a paisagem, da qual este e muitos outros edifícios como este se apoderam.

Analisando a descrição do edifício, percebemos que ele foi concebido segundo o modelo urbano a que os urbanistas americanos chamam gated comunities, isto é, comunidades fechadas, completamente separadas da cidade, sem alimentar a vida que lhe corre nas veias, de onde esta se oferece apenas como uma vista panorâmica. As gated communities que se formam nos bairros mais ricos das cidades são “privatopias”, isto é, espaços utópicos privados, para utilizarmos um conceito introduzido por um estudioso americano de política urbana, Evan McKenzie. São atentados à cidade.

Os arquitectos têm todo o direito de reivindicar a sua liberdade autoral, mas na medida em que conformam a nossa cidade e determinam o seu destino, eles não podem sentir que só têm de responder à razão estética e à exigência dos clientes que de um modo geral não coincide com a nosso direito a uma cidade habitável e mais produtora de uma cultura que animou o “espírito” das grandes cidades.

O “atropelo estético” perpetrado no topo do belo edifício desenhado por José e Nuno Mateus é um crime menoríssimo quando comparado com a arquitectura anestesiante que desconhece completamente a responsabilidade profissional de um arquitecto, a questão ética que lhe é inerente. Este vínculo não é de agora, vem de Vitrúvio. A bienal de arquitectura de Veneza, no ano 2000, tinha como título Less Aesthetics, More Ethics. Esta questão da ética da arquitectura não é certamente dos temas mais frequentes e sempre que surge provoca polémica. O grande historiador de arte italiano Salvatore Settis, que chegou a ocupar um cargo oficial relacionado com o património, defendeu há alguns anos que se devia consagrar na Constituição dos países o direito à paisagem. E, por entender que os arquitectos deviam estar deontologicamente obrigados a defendê-la, propôs, em jeito de provocação (bastante polémica, aliás) que eles deveriam fazer um “juramento de Vitrúvio”, por analogia com o “juramente de Hipócrates” a que os médicos estão obrigados. Tal como um médico não pode matar o doente, o arquitecto não deve matar a paisagem nem deve contribuir para saquear a cidade. Mas isto, não percebem os autores do “Castilho 203”. 

 We speak english, pá!

Posted: 04 Jun 2021 03:46 AM PDT

 


«Primeiro vendemos a autonomia financeira do Estado, depois vendemos os bancos e as grandes empresas, a seguir vendemos as dívidas falidas a fundos-abutre por 10%, vendemos a cobrança de impostos a reformados europeus e vendemos-lhes os prédios nas avenidas das cidades, as casas na praia e as quintas no campo, agora vendemos a vergonha e as regras nacionais em troca de barris de cerveja e pires de amendoins, come to Portugal, aqui é very nice, por umas libras é all you can eat com bebidas à parte, abrimos as portas, abrimos os braços e até abrimos as penas, toste o pão e toste ao sol, os nossos baixos salários são o seu paradise, isto sai baratinho, faça o que lhe aprouver, leve o que quiser, deixe like no TripAdvisor — e até à próxima, má frend!

Quero lá saber da Cham¬pions, não dou para o peditório da semana, mais a marquise do Ronaldo, mais fazer de Eduardo Cabrita a pinhata da nação e o embaraço de ouvir o dono da Ryanair mandar o Governo bater a bola baixinho porque traz mais turistas líquidos a Portugal do que a TAP. Eles até estavam todos testados, a julgar pelas notícias houve até mais ingleses assaltados do que infetados no Porto. A questão não é essa, interessa-me mais o que está por detrás do que o que nos põem à frente. E o que está por detrás é um país aflito a governar-se supondo-se governado.

Mais vale dizer a verdade, servimos sardinhadas porque estamos tesos como carapaus, e não se trata de xenofobia invertida, em que tratamos os estrangeiros melhor do que os portugueses, mas de carência-urgência. E por isso os ingleses estão acima das regras sanitárias, os suecos e os finlandeses abaixo da tributação de IRS, a TAP engole três mil milhões porque precisamos dos brasileiros e dos americanos, queremos 27 milhões de turistas daqui a meia dúzia de anos porque isso é o nosso ganha-pão.

São todos bem-vindos, sem ponta de ironia, turistas e capitalistas. Mas assuma-se o modelo. E assuma-se que o modelo é uma economia descapitalizada e sobre-endividada, uma economia desinvestida, uma economia de baixos salários, baixos preços e trabalhos precários, em que o imobiliário é para ricos, em que o interior se esvazia, em que os miúdos têm de rachar a renda da casa primeiro com os colegas de universidade e depois com os colegas de trabalho, em que não somos esquisitos com a origem do capital, em que o PRR é uma galinha já esfolada antes de sair do ovo de ouro, em que o país está de tanga há 20 anos e engolir conversa da tanga há 20 anos, não há plano B, estamos dispostos à barganha, aos vistos gold, aos benefícios fiscais, às negociações discretas, à venda ao melhor preço.

É isto que vemos na Ribeira do Porto, nos jardins de Lisboa ou nas ruas de Albufeira, exceções consentidas à regra porque, dizia Molero, “os camones são uns naifistas do caneco”, têm dinheiro e nós não, e isso justifica uma lei paralela para abrir as portas e fechar os olhos.

Pergunta-se pelo futuro e respondem PRR, questiona-se a dívida e falam de BCE e do adiamento das regras do Pacto Orçamental. Se Costa fosse Durão, pirava-se a tempo para a Europa, como Centeno já se mudou para a filial portuguesa do BCE, e deixava isto ao próximo gestor de falências, que lá engrenará no círculo vicioso do sistema viciado. Assim como assim, nós ficaremos cá, mais abanados que abonados, à espera de um futuro diferente do de sermos a marquise da Europa.»

sexta-feira, 4 de junho de 2021

 


Covid e sobremortalidade

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 03/06/2021)

Alexandre Abreu

Contar o número de vítimas da Covid-19 é uma tarefa mais complicada do que parece à primeira vista. Ainda que alguns sítios de internet, como o Worldometer, façam um trabalho notável de compilação dos dados disponibilizados pelos vários países, os totais são necessariamente tão bons quanto os dados de base em que assentam – e estes são tão bons quanto os sistemas de recolha de dados e os critérios adotados em cada país.

Muitos dilemas que tudo isto envolve são hoje em dia mais conhecidos da maioria das pessoas do que sucedia há ano e meio. Por exemplo, como devem ser considerados os casos em que há causas múltiplas que concorrem para explicar um óbito, por exemplo um doente oncológico terminal muito fragilizado que contraia Covid-19? E de que forma devem ser consideradas as mortes causadas por fatores que se devem indiretamente à pandemia, como a redução do número de consultas e de rastreios de outras doenças, mas que nem por isso deixam de contribuir significativamente para o aumento da mortalidade?

A forma mais ampla de responder a esta questão passa por comparar a mortalidade total no período da pandemia com a média do período equivalente em anos anteriores. Se (e é um “se” crucial) não tiver havido outros fatores extraordinários a influenciar de forma relevante a mortalidade no período, o excesso de mortalidade face à média pode ser interpretado como tendo resultado direta ou indiretamente da pandemia.

Em Portugal, o INE tem feito e publicado regularmente estas contas. Em janeiro deste ano, por exemplo, estimou que os 99 356 óbitos registados em Portugal entre 2 de março (início da pandemia no nosso país) e 27 de dezembro de 2020 excediam em 12 852 a média do mesmo período dos cinco anos anteriores. Desses quase 13 mil óbitos a mais, apenas cerca de metade (6 677) foram classificados como provocados pela Covid-19. Dos restantes, sabemos que alguns se deveram a outros fatores extraordinários, como a vaga de calor de julho de 2020 que esteve associada a um pico de mortalidade, mas outros haverá certamente que se deveram, pelo menos de forma indireta, à pandemia.

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No mês passado, a The Economist publicou uma nova estimativa da sobremortalidade mundial associada à Covid-19, com base num modelo próprio e calculada país a país. Recorreu a um modelo próprio porque a própria mortalidade excessiva não está disponível para muitos países e períodos, tendo de ser estimada a partir de outros indicadores. O processo é por isso indireto a vários níveis e, nesse sentido, sujeito a mais do que uma camada de possível enviesamento. Em contrapartida, o facto de ser aplicado a dezenas de países faz com que alguns dos enviesamentos num e noutro sentido tendam a cancelar-se: o excesso de mortalidade que se verificou em Portugal por causa da vaga de calor de julho de 2020, por exemplo, não ocorreu seguramente no mesmo sentido em todos os países do mundo.

O estudo da The Economist chegou a algumas conclusões notáveis, a mais impressionante das quais é que o número de vítimas mortais diretas e indiretas da pandemia a nível global poderá ser três vezes maior do que o total oficial atual de 3,6 milhões. A estimativa com um intervalo de confiança de 95% é que a sobremortalidade totalize entre 7,1 e 12,7 milhões. E de forma não surpreendente, é nos países de baixo e médio rendimento, especialmente na Ásia e em África, que a diferença entre os óbitos oficiais e a mortalidade excessiva estimada é maior – o que se explica pela menor capacidade dos sistemas de rastreamento e, consequentemente, pela menor probabilidade de um óbito devido a Covid-19 ser classificado enquanto tal.

De alguma forma, esta estimativa responde àquele que tem sido um dos principais mistérios epidemiológicos em torno da Covid-19: porque é que muitos dos países mais pobres do mundo, nomeadamente muitos países africanos, têm aparentemente conseguido evitar o pior em termos de números de casos e óbitos? Para o conjunto do continente africano, por exemplo, o Worldometer refere um total oficial acumulado de 4,9 milhões de casos e 131 mil óbitos – valores parecidos com os do Reino Unido ou de Itália considerados isoladamente. Algumas das explicações avançadas têm incluído a estrutura demográfica especialmente jovem destes países e as condições ambientais menos propícias à transmissão e sobrevivência do vírus: há indícios fortes de que a incidência da doença está associada à latitude e à temperatura, exibindo características sazonais.

Mas é bem possível que boa parte da resposta seja simplesmente que a verdadeira mortalidade está a passar em grande medida despercebida. Para a África Subsariana, a estimativa é que o número de vítimas mortais possa ser 14 vezes superior ao total oficial: mais de um milhão de vítimas em vez de pouco mais de cem mil. Na Ásia, poderão ter sido quatro ou cinco milhões em vez das 600 mil oficiais. No Perú, acaba de ser publicada uma revisão do número de vítimas mortais da Covid-19 que sugere que estas poderão ter sido o dobro do que se pensava até aqui – em linha com o que se sabia da sobremortalidade.

A estimativa da The Economist sugere que os países mais pobres, ao invés de estarem a passar em grande medida ilesos pela pandemia, podem estar até a registar mais casos e mais mortes por Covid-19 do que a sua estrutura demográfica faria prever. Ao invés de estar a poupar os países mais pobres, a Covid-19 pode estar já a adquirir uma associação com a pobreza análoga à do HIV-SIDA, cujos efeitos mais dramáticos têm ocorrido nalguns dos países mais pobres do mundo. Isso, como aponta Duncan Green, autor do blog sobre desenvolvimento Poverty to Power, pode ter implicações importantes tanto ao nível do impacto da pandemia sobre o desenvolvimento e a pobreza globais como no que diz respeito às oportunidades de circulação e mutação do vírus, o que torna ainda mais urgente garantir o acesso generalizado de toda a população mundial às vacinas.