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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

 

A cultura da vitória e da violência é uma faca de dois gumes — lições d’Os Lusíadas

By estatuadesal on Outubro 14, 2024

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 13/10/2024)



A propósito da guerra na Ucrânia, numa entrevista recente, Sergei Lavrov, o ministro dos negócios estrangeiros russo, afirmou que ela apenas poderá terminar com a vitória da Rússia, porque vitória e derrota são as únicas linguagens que o Ocidente entende.

Independentemente do que cada um possa pensar sobre as causas do conflito e das justificações dos contendores, a vitória com esmagamento do adversário é a doutrina da Europa e do Ocidente desde que a Europa iniciou a sua expansão no século XV.

Estamos, embora se note pouco, na celebração dos quinhentos anos de Os Lusíadas, de Camões. Ora, Os Lusíadas refletem a diferença de pensamento e de estratégia do que foi o conceito português de abordagem do “outro” e o conceito vencedor do Ocidente, o dos impérios espanhol e inglês. Os Lusíadas expõem a diferença radical no modo como os dois grandes impérios europeus expandiram o seu poder e o da abordagem dos portugueses aos outros povos e civilizações. Motivam a provocadora interrogação: Com quem e com o que fariam os espanhóis uma epopeia? Com Cortés e a conquista do México, ou com Pizarro, que realizou o feito de prender o imperador Atahualpa, dos incas, depois de aceitar o convite deste para um jantar, durante o qual assassinou a sua pequena guarda? E os ingleses que herói têm para uma epopeia? Os corsários Drake e Raleigh, que os seus contemporâneos designavam por Sea Dogs, os cães do mar?

Os Lusíadas são também um extraordinário manual de relações internacionais. Os dirigentes dos impérios europeus que sucederam aos portugueses, os ingleses e os espanhóis, agiram com a arrogância e a convicção de superioridade que se iriam traduzir na gigantesca empresa da escravatura de africanos, na destruição das culturas e civilizações do continente americano e no genocídio dos povos. A partir da chegada de espanhóis e ingleses e também dos portugueses às américas que contributo foi permitido aos povos locais — desde a Patagónia ao Alaska — darem ao progresso do mundo e que possa ser comparado ao que as civilizações do Índico e do Pacífico proporcionaram?

A ordem internacional imposta por espanhóis e ingleses, também por franceses e alemães, atualmente pelos norte-americanos, assenta em princípios opostos aos que Camões expressou em Os Lusíadas. Fundou-se na morte por asfixia das culturas e civilizações existentes.

É este reconhecimento que Sergei Lavrov faz e que motiva a atitude da Rússia nos atuais conflitos que o Ocidente conduz na Ucrânia e no Medio Oriente.

A estratégia que o império Ocidental — herdeiro dos impérios inglês e espanhol — está a conduzir na Ucrânia e no Medio Oriente é a do esmagamento dos povos que existem desde o Líbano à Rússia — com propositado exagero, estabelecer uma Gaza de Beirute a Moscovo — ou uma limpeza como a que foi feita na América do Norte de Nova Iorque a São Francisco, ou como as levadas a cabo por Cortés e Pizarro na América Central e do Sul.

A velha Europa, como a tratam os “jovens americanos” — Reagan e Trump — acredita que a sua forma de abordar os outros — esmagando-os — ainda é a certa para impor a sua civilização e os seus interesses. A atual Europa, agora uma província do Ocidente Global, adotou como política para se relacionar com o Velho Mundo persa e mesopotâmico a dos invasores ingleses e espanhóis no Novo Mundo, o problema é que o “velho mundo” não está nu, apenas com arcos e flechas para se defender!

As visitas do presidente da Assembleia do Irão e do ministro dos negócios estrangeiros a Beirute realçam a aliança existente e a assinatura de um pacto de defesa entre o Irão e a Rússia. E isso significa que a reprodução da estratégia de vitória por esmagamento que presidiu à estratégia ocidental durante cerca de cinco séculos tem grandes probabilidades de degenerar num desastre a vários títulos, militar, desde logo, mas também económico e, mais profundamente ainda, civilizacional.

Apenas para recordar, os princípios filosóficos em que assenta o pensamento europeu foram transpostos do grego para a Europa através dos árabes e foram-no principalmente durante os sete séculos em que eles estiveram na Península Ibérica no Al Andaluz. Já agora, os nossos algarismos ainda são conhecidos por números árabes.

A estratégia de terra queimada que o Ocidente está a desenvolver em Gaza e no Líbano, mas que já utilizou na Líbia, no Iraque e na Síria é a-histórica e a Europa vai pagá-la com o definhamento que ocorre às árvores a quem cortam as raízes.

Os Lusíadas são a epopeia de uma península que era a proa de um continente que viajava ao encontro de outras gentes e culturas e ali aportava. Da epopeia dos portugueses no Oriente cantada em Os Lusíadas mantiveram-se e desenvolveram-se civilizações tão pujantes como a Índia, a China, a Indochina, o Japão, enquanto nas Américas nada restou, além de ruínas e a humilhação espelhada nos rostos daqueles a quem arrogantemente o Ocidente uniformizou sob a designação de “índios”. Na expansão para Ocidente, os europeus provocaram terror a todos os que encontraram com o barulho ensurdecedor das armas, o cheiro insuportável da pólvora e com os “monstros de quatro patas”, o cavalo, desconhecido pelos povos do continente americano. Tal como acontecerá em Hiroshima e Nagasáqui com as duas bombas atómicas e acontece hoje em Gaza e no Líbano com as mais mortíferas armas ocidentais.

A anti epopeia da Europa terminou com a sua derrota na Segunda Guerra Mundial, quando foi substituída por uma entidade sem alma, que funda o novo mundo com um imenso genocídio e uma exploração sem regras nem limites da natureza, expressa na célebre carta do cacique de Seattle ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1855:

O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também a sua amizade e benevolência. Isto é gentil da sua parte, pois sabemos que não precisa da nossa amizade. Vamos, porém, pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. […]

Cinco séculos após a passagem do Cabo das Tormentas, rebatizado em da Boa Esperança, o Adamastor venceu, o Ocidente perdeu. O Oriente apresenta hoje ao mundo uma civilização vencedora, mais aberta, mais flexível, mais adaptada ao mundo. O Ocidente seguiu o caminho na direção contrária ao que Camões celebrou e, em vez de respeitar o ‘Outro´, aniquilou-o, esquecendo-se que as sementes do ódio são eternas. São estas sementes que o Ocidente continua a espalhar.

Há uma diferença radical entre a chegada dos europeus às Américas e a de Vasco da Gama à Índia. Entre a dominação e uma aliança, Vasco da Gama propõe uma aliança ao Samorim:  E se queres, com pactos e lianças/De paz e de amizade, sacra e nua, Comércio consentir das abondanças/Das fazendas da terra sua e tua, Por que creçam as rendas e abastanças/(Por quem a gente mais trabalha e sua)/De vossos Reinos, será certamente/De ti proveito, e dele glória ingente.

Os Lusíadas não fazem parte das leituras nem na sede da UE, nem da NATO.

domingo, 13 de outubro de 2024

 

Da impunidade dos crimes do Ocidente à impotência coletiva dos povos – Parte II

By estatuadesal on Outubro 12, 2024

(Por Erno RENONCOURT, in Le Grand Soir, 10/10/2024, Trad. Estátua)

Anteriormente, postulámos que a invariância, no tempo e no espaço, da impunidade dos crimes ocidentais e do desamparo coletivo dos povos, confrontados com a desapropriação da sua identidade, autenticidade, liberdade, dignidade e humanidade pelo capitalismo inovador (através do cancelamento de direitos humanos e inteligência artificial), estiveram ligados à peregrinação das legiões militantes e revolucionárias que se lançaram, como vanguardas das lutas dos povos, em todos os lugares, ao assalto ao capitalismo, com as bandeiras do materialismo histórico. Baseando-nos nos exemplos de Gaza e do Haiti, modelámos um sistema de equações que tende a mostrar que esta invariância, esta impotência e esta deambulação estão entrelaçadas e emaranhadas nos fios de uma espiral desumanizante que carrega o mundo, não sem resistência, mas com perda de sentido e de inteligência, rumo ao que chamamos de indigência para todos.



Apressemo-nos a dizer que, na nossa concepção, a indigência é um estado de inclinação (colapso) da consciência humana em direção aos padrões culturais e éticos mais básicos, onde o ser humano, acotovelado, precário e condicionado pelas incertezas da sua existência, renuncia à inteligência e abandona a dignidade humana através do desejo de se apegar a vacuidades materiais que são promovidas, mediadas e, portanto, percebidas como valores existenciais. Esta busca pelo sustento da existência resulta em fissuras na consciência humana. É através delas que o capitalismo se infiltra para despejar os recursos da sua geoestratégia de desumanização, brutalizando os humanos.

O paradoxo de não pensar, através de um processo de duplo pensamento

Este processo de embrutecimento, condicionamento e colapso da consciência através do capitalismo mutante foi previsto por Pierre Bourdieu. Em 1998, ele escreveu, com uma precisão analítica cirúrgica, que “esta utopia neoliberal, que pretende basear-se no progresso, na razão e na ciência, procura apenas enviar o pensamento crítico de volta ao arcaísmo, destruindo metodicamente todas as estruturas colectivas e todas as conquistas sociais” (Pierre Bourdieu, Contre-feux. Propos pour servir à la résistance contre l'invasion néo-libérale, Paris, Liber-Raisons d'Agir, 1998).

No mesmo livro, escreveu: “A essência do neoliberalismo é impor por toda a parte o embrutecimento coletivo maciço, promovendo o caos e a precariedade como únicos modos de dominação. São estes os factores que permitem manter este estado generalizado de insegurança e precariedade como condicionamento psicológico para melhor subjugar os trabalhadores, escravizar o povo e impedi-lo de pensar noutras possibilidades mais dignas de sair deste impasse existencial que faz do mercado livre o único valor dominante que se pode impor à humanidade".

Tendo gerado precariedade material, que condiciona os seres humanos a uma busca frenética pelo acesso aos recursos materiais para subsistir e sobreviver, o capitalismo também se infiltrou nas fendas que essas precariedades geram. E isto porque, aparentemente, melhor do que os marxistas, os teóricos do capital compreenderam que a relação entre existência e consciência gera ciclos de feedback que podem levar a vários estados mentais que condicionam a acção humana. Porque como escreve Ludwig Von Mises em seu Abridged Human Action, um tratado de economia: "O homem só age na história se sua consciência estiver em dificuldades (frustrada, desconfortável) em relação a determinadas condições de existência". E é para evitar esta elevação da consciência para as vibrações mais elevadas de resistência que o capitalismo, nas suas mutações históricas, deu a certos homens a ilusão de uma certa influência, de um certo sucesso, de uma certa cobertura mediática que não só os condicionará a submeterem-se à autoridade, mas também atrairá a admiração das massas que só vêem o seu futuro através do prisma daqueles que são enobrecidos pelo sistema. O que induz este paradoxo de desempenho fracassado: a mesma geoestratégia, que aliena e desumaniza, também produz uma forma de enobrecimento e mediatização através de uma ilusão de sucesso, que fascina os pobres. Daí a sua incapacidade de escapar do bloqueio da invariância.

Assim, não é raro ver, particularmente no Haiti, activistas revolucionários que combatem o capitalismo no terreno económico e na luta dos trabalhadores, a correrem atrás dos atractivos culturais e académicos que o capitalismo produz através das suas instituições. O que cria um efeito paradoxal que aniquila o seu compromisso militante. Só podemos encontrar as causas desta manifestação no colapso da consciência e na perda de inteligência colectiva que o capitalismo alimenta através da cultura, do conhecimento e da tecnologia, realidades que são sempre percebidas como progresso. É através dos seus paradoxos que o neoliberalismo se perpetua, criando fissuras na consciência dos seres humanos que os impedem de integrar esses paradoxos num modelo de dados que torne evidente a sua interligação.

Não foi senão isto, essencialmente, o que George Orwell disse quando escreveu em 1984 que: “Os próprios nomes dos quatro ministérios que nos lideram revelam uma espécie de atrevimento na inversão deliberada dos factos. O Ministério da Paz trata da guerra, o da Verdade, da mentira, o do Amor, da tortura, o da Abundância, da fome. Estas contradições não são acidentais, nem são o resultado da hipocrisia comum, são exercícios deliberados de duplo pensamento. Na verdade, é apenas através da reconciliação dos opostos que o poder pode ser mantido indefinidamente. O velho ciclo não poderia ser quebrado de outra forma. Para que a igualdade humana seja para sempre posta de lado, para que os grandes, como os chamamos, mantenham perpetuamente os seus lugares, a condição mental dominante deve ser a loucura dirigida.” (George Orwell, 1984 , Gallimard, 1950, p. 253).

Não será esta loucura controlada precisamente a engenharia do caos que está em acção em todo o mundo? Mas quantos são capazes de saber que se trata de um verdadeiro processo científico que tende a garantir a confiança (portanto o desempenho) de um sistema, simulando falhas contínuas no seu ambiente para avaliar o impacto, planear uma melhor defesa e refinar a estratégia de manutenção do modelo? Não é este jogo perverso praticado por estes homens das sombras a quem Giulano Da Empoli, no seu livro Os Engenheiros do Caos, chama “engenheiros do caos”? Na verdade, são eles que implementam os algoritmos e processos para desviar a nossa raiva legítima, capturando nas suas redes a massa de públicos insatisfeitos, mas vulneráveis ​​e frágeis. No entanto, estes públicos, embora tenham todos os motivos para se levantarem contra as respectivas elites dos seus países, não estão, no entanto, menos sob a influência das elites, contendo a sua raiva através de plataformas de redes sociais que transmitem extensivamente temas populistas, através do respeito pelas instituições democráticas. , através do respeito pelos pactos republicanos. Tantos pseudovalores que não têm outro objetivo senão quebrar a resistência coletiva das pessoas.

É apenas uma forma de dizer que é navegando nas águas estagnadas das fissuras da consciência humana que os geoestrategas da desumanização asseguram o ressurgimento do seu modelo económico. E é por isso que nos parece que é na consciência que é preciso voltar atrás e repensar o materialismo histórico e orientá-lo para um materialismo sistémico.

Ouvir o som da indigência do mundo para além do nosso inconsciente coletivo

Lembremos que este fórum, nas suas sucessivas partes, não tem outras razões que o motivem, a não ser: alimentar, neste tempo que se reconfigura pelos múltiplos braços da espiral da indigência para todos, um problema contextual e construtivo para encorajar aqueles, daqui e de outros lugares, que realmente querem pensar e inovar as lutas contra a desumanização, a sistematizar os fundamentos do materialismo histórico, radicalizar a sua dialética num compromisso do EU no terreno da consciência, para o além do compromisso militante no campo da ação política.

Mas a acção política falhou em quase todo o mundo. A esquerda tornou-se mais reacionária e mais atraída pelo fascismo tecnológico do que a outrora direita fascista. É como se, com a ajuda da relatividade geral, a esquerda e a direita tivessem respectivamente invertido as suas linhas ideológicas sob o efeito das curvaturas e enganos da geoestratégia ocidental.

Se excetuarmos algumas raras vozes de uma esquerda extrema, em geral consciente, todos aqueles que nas redes sociais manifestam pensamento crítico contra o sistema são pessoas que navegam à vista na margem direita para as suas ondas tempestuosas, próximas dos níveis extremos.

Onde está o erro, senão na perda de rumo da bússola ideológica? "E como é na prática que o homem deve provar a verdade, isto é, a realidade e o poder do seu pensamento neste mundo e para o nosso tempo” (Karl Marx e Friedrich Engels, L'ideologie Allemande , Éditions sociales, 1968, pp. 31-32), a incapacidade das vanguardas marxistas, em todo o mundo, de colocar em prática a dialética da história para se apropriar dos três tempos necessários à abolição da alienação capitalista (Ibid., p.60) é ao mesmo tempo uma fracasso teórico e prático. Mas este fracasso teórico não é necessariamente o do marxismo, só pode ser o fracasso intelectual (falha da inteligência) daqueles que o interpretaram como uma teoria universal e imutável da acção revolucionária. Com efeito, segundo Alex Mucchielli (Savoir Interpréter , Armand Colin, 2012) as coisas só adquirem sentido para um observador num determinado contexto e de acordo com a posição que ocupa em relação a esse contexto.

No entanto, muitos marxistas ainda não estão conscientes de que a realidade social não é dada, de que não existe uma realidade verdadeira imposta a todos da mesma forma, por assim dizer, universal. Têm dificuldade em admitir que a realidade é uma construção que se estrutura em contacto com as incertezas da existência, e esta construção depende da forma como a consciência humana interpreta essas incertezas. Todo o nosso propósito é provar que este é o verdadeiro ensinamento do materialismo dialético. Infelizmente, este ensinamento não foi compreendido, porque nos concentramos mais nas fórmulas marcantes que decretam, ressoam como profissões de fé e se impõem como dogmas eternos. Como se os dialéticos materialistas, em todo o mundo, tivessem lido Marx, sem realmente compreender que o marxismo, por ser uma teoria científica, exige um esforço de contextualização, uma abordagem sistémica que nos convida a ir além da contradição para ceder ao paradoxo o status de um possível não excludente.

Se considerarmos que uma abordagem sistémica da lição marxista nos obriga a admitir a verdade da tese, de que são as condições de existência dos homens, decorrentes das forças produtivas e do estado social do seu contexto, que determinam a sua consciência, encorajá-los a agir para fazer história e transformar sua existência, não exclui o vaivém entre existência e consciência e certos estados de consciência plena ou vazia, onde respectivamente o ser pode estar totalmente desperto e permanecer em conexão com o ambiente ou estar sem peso num vazio cognitivo permanecendo totalmente desconectado do mundo. Isto permite-nos postular que a invariância da impotência dos povos face à sua desumanização e a impunidade arrogante e eficiente dos crimes ocidentais se devem ao facto de ser a consciência da grande maioria dos homens que não foi capaz de entrar em contradição (na luta, na revolta, na indignação) com o caráter insuportável que a alienação capitalista atingiu na história. O que dizemos aqui não é muito diferente do que escreveu Julian Assange: “Cada vez que testemunhamos uma injustiça e não agimos, estamos a formar o nosso carácter para sermos passivos... Acabamos então por perder toda a capacidade de nos defendermos [... ]. »

E é precisamente isso que o capitalismo faz: agora, na sua versão de geoestratégia de desumanização global e universal, treina a nossa consciência para ser passiva, dando-nos pequenas distrações, liberdades virtuais, valores pseudo-universais para nos manter afastados das esferas superiores. de plena consciência, e impede-nos de entrar nesta inquietação existencial que nos obriga a ver o duplo padrão (duplo pensamento) em tudo o que o Ocidente engrandece. Mas porque é que as vanguardas marxistas em todo o mundo não conseguiram compreender a advertência de Bourdieu contra o neoliberalismo? Um alerta, no entanto, facilmente descodificável, pois ao dizer-nos que “o neoliberalismo é apenas um programa de destruição de estruturas colectivas capazes de obstruir a lógica do mercado puro”, convidou-nos a perceber que a força de resistência dos povos reside agora na sua capacidade de obstruir a lógica do mercado (nas suas múltiplas manifestações), recusando o consumo de produtos que se revelem prejudiciais à nossa humanidade. Eles não tinham inteligência? Ou foram todos recrutados para os redemoinhos desta engenharia do caos que se infiltra nos corações das vanguardas mais doutrinadas?

Na verdade, se a história da indústria evoluiu, ao ponto de o capitalismo se ter transformado num poder insuportável que desumaniza todas as pessoas, e ainda assim esta dupla realidade não mobilizou os homens a rejeitarem os valores do capitalismo e a radicalizarem-se para transformarem a sua existência e realizarem-se humanamente na história, é necessariamente porque há uma falha na consciência humana. E quando a consciência humana falha, ela só pode suportar a existência. Isto é, aliás, o que o próprio Marx postula: "é igualmente claro que é impossível fazer história quando falta aos homens não apenas a faculdade de conceber o significado da história e os materiais para a ação de transformação da história". (Karl Marx e. Friedrich Engels, A Ideologia Alemã , Edições Sociais, 1968, p.58).

Há, portanto, no ruído ensurdecedor desta errância, as ondas de falhas de uma impotência e de uma invariância que, embora precária e alienante da existência das massas humanas em ecossistemas falidos, não tem sido capaz de despertar as suas consciências para as empurrár para empreendem a marcha rumo à apropriação do seu ser genérico, para a realização da celebração da humanidade e do fim da história. São as incertezas que pontuam este ruído que nos tornam tão insolentes ao questionar a inteligência das vanguardas marxistas em todo o mundo na sua apropriação da noção de consciência na teoria marxista da história.

Uma manifesta falta de consciência num ecossistema divergente

Convém lembrar aos papas infalíveis que detêm o monopólio da verdade da dialética materialista, que para nós não se trata de vestir a farda de especialista e de intérprete de Marx, mas de procurar, na consciência humana, a falha que os estrategas globalistas, engenheiros do caos, criadores de imposturas, guardiões do ressurgimento do carrossel invariável têm explorado com sucesso. Porque são eles que permitem que o capitalismo, na sua incessante metamorfose, alcance no século XXI aquilo a que Francis Cousin chama aquele “estágio onde o mundo inteiro [oscila e se afunda] num êxtase obsceno perante a sua dominação” (Francis Cousin, Ser versus ter, Para uma crítica radical e definitiva da falsidade onipresente, O retorno às fontes , 2012, p.6). Este êxtase obsceno foi particularmente evidente durante a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, em Julho passado: toda a Paris vibrava com cultura, desporto e luxo, embora ao mesmo tempo Gaza estava a ser sujeita ao genocídio, a Ucrânia continuava a ser transformada pela NATO num território de carne para canhão para enfraquecer a Rússia, o Haiti mergulhou na desapropriação do seu território pelos gangues federados pela ONU, tendo sido desde a escravatura um território de experimentação de desumanização.

Quem tem tempo para ter um interesse humano e autêntico por estes lugares distantes, exceto navegando, surfando nas notícias, na agitação das redes sociais, nas mentiras e na propaganda da mídia oficial?

Quantos suspeitam que as redes sociais fazem parte do arsenal tecnológico da engenharia do caos que a geoestratégia da desumanização implementa para colapsar as consciências e quebrar toda resistência autêntica contra as suas estruturas? Quem tem tempo para entender a inflação de mensagens sem sentido que circulam nas plataformas de mídia social?

Quantos sabem que “o processamento destes imensos dados díspares exige hoje a utilização de novas ferramentas (Big Data, inteligência artificial) que se tornaram instrumentos de poder no cenário internacional. E cujo uso impacta de forma mais geral os modos de governo político de nossas sociedades” (Amaël Cattaruzza, Geopolítica dos dados digitais: Poder e conflitos na era do Big Data , Le cavalier bleu, 2019). Quantos dentre as vanguardas das lutas populares no mundo sabem que certos compromissos exigem maior vigilância e, portanto, maior consciência dos riscos?

Não será isto, de forma divergente, um indício ecossistémico dessa inconsciência que se revela no sublime texto de Djamel Labidi), publicado no mesmo dia da primeira parte desta coluna no site Grand Soir? Há de facto uma divergência entre estes ecos de inconsciência, porque esta fraqueza, estes erros, que Djamel Labidi percebe como as causas dos golpes desferidos à resistência palestiniana na sua luta contra este Estado criado para o genocídio, por aqueles que queriam limpar a sua consciência relativamente aos crimes do nazismo, são algumas das manifestações daquilo que chamo de fracasso humano e perda de inteligência colectiva nas formas de luta e resistência das vanguardas dos povos do mundo inteiro contra a geoestratégia da desumanização. Se o capitalismo triunfa e se recicla, para além das suas crises, ao ponto de ameaçar de extinção toda a vida na terra, é na verdade porque os estrategas da desumanização, os criadores da impostura, foram capazes de detectar as falhas na consciência humana. Exploraram-nos para criar esta engenharia do caos que torna as pessoas impotentes, inconscientes da sua desumanização e em perpétuo êxtase face às atracções culturais, tecnológicas e libertárias, e da fumaça que produzem, por sua vez, paradoxalmente, mas sem escrúpulos, os geoestrategistas da caos.

Mas como podemos compreender este êxtase da maioria dos povos do mundo perante os artefactos culturais do capitalismo senão através do fracasso da sua consciência? Como podemos explicar que apesar de ter “obstruído [virtualizado] a realidade de modo que ela não possa mais levar a nada [que seja] capaz de superá-la, de modo a que ela esteja assim em condições de se reproduzir indefinidamente sem nunca mais retornar a nada, que não ela mesma, na eterna multiplicação da reificação” (Francis Cousin, Ser contra o ter, Para uma crítica radical e definitiva da falsidade onipresente, Le Retour aux source , 2012, p.6), o capitalismo continua a lucrar vendendo às massas os produtos de consumo que as amolecem, pelo equilíbrio invariável entre os paradoxos que a engenharia do caos gera para entorpecer os humanos?

Para responder a esta questão, sugiro ao leitor o excelente texto de Marti Michel (Ver aqui ),
publicado no Le Grand Soir em 5 de outubro de 2024 que é, como o de Labidi, é um eco divergente do colapso da consciência humana, que postulamos como a linha de falha que precisa de ser assegurada.

E nisso, apesar da precisão da análise de Labidi, devemos reconhecer que os geoestrategas da desumanização são fortes. Porque a força de uns nunca é absoluta, está sempre ligada às fraquezas de outros. Quando as pessoas de todo o mundo se munirem de novas vanguardas - ficando plenamente conscientes de que o seu compromisso contra a desumanização multifacetada requer a unidade do seu ser, e que a menor das suas experiências sensíveis na existência deve cristalizar a essência desse compromisso através duma luta radical -, a força mudará de mãos... na esperança de que amanhã o mundo não desapareça.

Porque ao ler as linhas das nossas mãos, suadas e trémulas de impotência face à desumanidade e à impunidade demonstradas pelos líderes ocidentais e pelas suas redes mediáticas, não é preciso ser Nostradamus para compreender que a verdadeira ansiedade apocalíptica se apoderou de quase todas as pessoas do planeta.

Elas adquirem uma consciência cada vez maior e mais aterrorizante, de que as linhas de incerteza, que fazem o mundo oscilar, desde a crise sanitária do coronavírus em 2019, entre o horror de uma falha humana pela realidade virtual do pós-humanismo e a engenharia do caos, estabelecendo o medo e a precariedade como modo de governo, se intensificaram, e tornaram-se mais precisas e claras em termos de ameaças aos seres humanos. Ninguém, exceto aqueles que vivem em total irreflexão analítica, em duplo pensamento, entre a insignificância e a inconsciência, ainda ousa duvidar de que existe um risco quase manifesto, entre a probabilidade absoluta e a certeza, de ver o mundo cair na loucura apocalíptica entre o outono de 2024 e o inverno de 2025.

Algo sombrio na minha plena consciência me diz que a equação 2+2=5, omnipresente, em 1984 de George Orwell , é um código de duplo pensamento em que sentido e absurdo coexistem, a tal ponto que os signos perdem o seu significado em qualquer equação, ao mesmo tempo em que têm um profundo , significado codificado que se refere ao elemento neutro da operação sugerida (o zero) pela equação colocada. A título de dica, deixo aos leitores a substituição do sinal de mais na equação 2+2=5 pelo elemento neutro da adição e a exclusão do sinal de igual que não tem mais significado.

Nos vemos em 2025 para o resto deste fórum... no outro mundo. Tremem humanos, o inverno de fogo está chegando, o grande bárbaro ocidental da desumanização prepara seu novo banquete para ressurgir sobre suas estruturas bárbaras em novas imposturas.

sábado, 12 de outubro de 2024

 

Ucrânia acumula perdas de território e está cercada pela Rússia no Donbass

By estatuadesal on Outubro 12, 2024

(Juan Pablo Duch, In Diálogos do Sul, 11-10-2024)


Os avanços da Rússia são lentos, mas constantes, e é apenas uma questão de tempo para que a Ucrânia seja expulsa de mais áreas sob seu controle.



No decorrer deste ano, exceto por sua incursão surpresa no início de agosto passado na região russa de Kursk, onde permanece até hoje, o exército da Ucrânia, em linhas gerais, conseguiu manter suas posições ao longo dos 1.200 km da linha da frente de combates, ao mesmo tempo em que, na parte de Donetsk sob seu controle – equivalente a dois terços de sua extensão quando começou o conflito há dois anos e meio –, vem, sobretudo nos dois últimos meses, perdendo território diante dos ataques das tropas russas, cujos avanços são lentos, mas constantes.

Nesse contexto, surge a pergunta inevitável: a Ucrânia está perdendo a guerra? Aqueles que respondem afirmativamente – em primeiro lugar os blogueiros-Z, como são chamados os promotores da campanha militar russa na Ucrânia, usando o distintivo do exército russo, a última letra do alfabeto latino – enumeram que, desde janeiro e levando em conta as localidades vistas como bastiões das tropas ucranianas, Kiev perdeu Marinka, depois Avdiivka e, mais recentemente, Vuhledar.

Isso faz com que a discussão nas redes sociais, entre os partidários da operação militar especial lançada pelo Kremlin em fevereiro de 2022, se concentre em acertar qual será a próxima praça ucraniana a cair, considerando que esta é uma tendência irreversível, embora ninguém possa prever quando Pokrovsk, aparentemente o objetivo mais cobiçado nos últimos tempos, será acrescentada à lista de conquistas russas.

Exército ucraniano sob cerco no Donbass

Além de Pokrovsk, a lista de lugares de relativa importância estratégica para a Ucrânia é longa. O exército ucraniano está sob cerco no Donbass (Donetsk e Lugansk), embora o exército russo, com superioridade de efetivos e armamento de pelo menos 3 para 1, não esteja em condições de iniciar uma ofensiva simultânea. Em vez disso, ataca separadamente e de forma indistinta Konstiantinovka, Dobropolie, Selidovo, Kurakhovo, Velika Novosilka, Chasiv Yar e Toretsk, entre outros, segundo se depreende dos comunicados oficiais do comando militar russo.

As cidades e povoados mencionados – explicam especialistas como Yuri FiodorovRuslan LeviyevYan Matveyev e Valeri Shiriayev, com base no acompanhamento diário dos campos de batalha – são parte dos distintos níveis de defesa que a Rússia teria que superar, e depois expor suas tropas a percorrer dezenas de quilômetros em campo aberto, à mercê dos drones e da artilharia inimiga, antes de poder se aproximar da zona mais fortificada de Donetsk, que é a grande aglomeração urbana de Kramatorsk e Sloviansk, com sua ramificada periferia industrial.

Em outras palavras, para alcançar a meta fixada pelo presidente Vladimir Putin de libertar toda a área administrativa que Donetsk e Lugansk tinham como parte da Ucrânia em 1991, após o colapso soviético, o exército russo – que nos últimos dois meses ocupou 699 quilômetros quadrados nessa região – precisaria expulsar as tropas ucranianas de mais 10.359 km² segundo Pasi Paroinen, analista do Black Bird Group, da Finlândia, que se dedica a interpretar dados e imagens geolocalizadas de fontes abertas.

Estratégia de desgaste

Muitos observadores independentes se perguntam por que o governo de Volodymir Zelensky insiste em manter suas tropas em Kursk, o que não faz sentido militar, além de constranger o Kremlin enquanto não consegue expulsá-las. Ao mesmo tempo, Kiev se apega à defesa de bastiões até que sejam reduzidos a ruínas pelo fogo da artilharia e das bombas guiadas da aviação russa.

A resposta foi dada recentemente por Kiev em reportagem do The New York Times, diretamente da capital da Ucrânia, que cita militares do país envolvidos na defesa de Vuhledar. Segundo eles, faz parte de uma estratégia para desgastar o exército russo, causando-lhe o máximo possível de perdas em pessoal e equipamento. Por esse motivo, dizem, seguem até o limite e só abandonam um local quando o risco de serem cercados é iminente.

Um membro do Instituto de Estudos Estratégicos, vinculado ao governo ucraniano, Mykola Bielieskov, dá a entender que a estratégia é “trocar território por perdas russas”. Kiev confia que, mais adiante, poderá recuperar o território cedido e também que a temporada de chuvas do outono vai transformar o terreno em lama intransitável, retardando os ataques russos, enquanto chegam as novas remessas de armamento prometidas pelos Estados Unidos e seus aliados.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

 

Será que Netanyahu e Zelensky fazem parte do projeto neoconservador?

By estatuadesal on Outubro 11, 2024

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 10/10/2024)

Nem a Ucrânia, nem Israel teriam conseguido resistir não fosse o apoio político, financeiro e militar proporcionado por Washington. Tanto Israel como a Ucrânia estão a servir interesses norte-americanos, em particular de um poderoso segmento das suas elites.



Quando, em 1997, Zbigniew Brzezinski, antigo Conselheiro Nacional de Segurança do presidente Jimmy Carter, escreveu na sua obra de referência (O Grande Tabuleiro de Xadrez) o que deveriam fazer os Estados Unidos para controlar o mundo, prescreveu um programa de ação geopolítica para os EUA que inspirou a ala neoconservadora do establishment político norte-americano, e tem influenciado de modo determinante a política externa norte-americana no pós-guerra fria.

Não será de estranhar o surgimento ainda nesse ano do Project for the New American Century (PNAC), um think tank fundado por William Christol e Robert Kagan, onde se advogava ser o século XXI o século americano, onde o domínio militar dos EUA não só protegeria a segurança nacional e os interesses nacionais dos EUA, mas também estabeleceria uma Pax Americana global. Defendia ainda o PNAC que “a liderança americana é, ao mesmo tempo, boa para a América e para o mundo”.

De entre as muitas ideias avançadas por Brzezinski, pela sua atualidade, uma deve merecer a nossa particular atenção. Dizia ele que o cenário mais perigoso para o projeto hegemónico norte-americano seria uma coligação anti hegemónica constituída pela China, Rússia e Irão. Adiantando que “uma coligação que alie a Rússia à China e ao Irão só pode desenvolver-se se os Estados Unidos forem suficientemente míopes para antagonizarem simultaneamente a China e o Irão.”

Apesar do conselho avisado de Brzezinski, foi exatamente isso que aconteceu. A arrogância das sucessivas Administrações norte-americanas conseguiu alienar os seus adversários ao ponto de se coligarem contra Washington e pugnarem por uma ordem multipolar que desafia o projeto da primazia norte-americana. Não faltaram oportunidades para Washington aproximar Moscovo e Teerão do Ocidente, estupidamente desperdiçadas.

Muito se poderia escrever sobre a alienação da Rússia pelos EUA, desde o alargamento da NATO, apesar das garantias que foram dadas a Mikhail Gorbachev de que a Aliança não se expandiria para leste, à rejeição categórica da ajuda ocidental à União soviética em 1991, que impossibilitou que se produzisse na Rússia um efeito psicológico e político galvanizador semelhante ao do Plano Marshall para a Europa Ocidental no pós II Guerra Mundial, quando Moscovo procurava desesperadamente aproximar-se do Ocidente.

A invasão do Afeganistão pelos EUA foi outra oportunidade perdida para se esquecerem os acontecimentos do passado e aproximar Teerão de Washington. Em 2001, o Irão não hesitou em cooperar com os EUA na luta contra a Al-Qaeda e os talibãs. Teerão forneceu Intelligence e apoiou os EUA na operação de contraterrorismo Enduring Freedom.

Os iranianos estavam ansiosos por ajudar Washington e mostrar-lhe os benefícios estratégicos em cooperarem. No entanto, o comportamento colaborativo de Teerão não foi recompensado. Em 29 de janeiro de 2002, no discurso sobre o estado da União, o presidente George W. Bush incluiu o Irão no grupo dos países do “eixo do mal”, fazendo tábua rasa de toda a colaboração prestada pelo Irão aos EUA. Exauriu-se nesse momento, a possibilidade de se ultrapassarem experiências negativas do passado e encetar-se um novo capítulo nas relações entre os dois Estados.

A ter em conta a prosa prospetiva de Brzezinski, não será de estranhar que os três grandes focos de conflitualidade/tensão da atualidade sejam a Ucrânia, Israel e Taiwan, com os EUA a procurar tardiamente contrariar essa aliança anti hegemónica e a procurar reparar erros de cálculo estratégico passados muito difíceis agora de reverter. Como dizia Mike Pompeo, ex-diretor da CIA e ex-secretário de Estado, enganado telefonicamente por uma brincadeira feita por russos, “a Rússia precisa ser puxada de volta para a Europa, para longe da China.” Tarde piaste!

Há semelhanças evidentes naquilo que levou a União Soviética a invadir o Afeganistão, a Rússia a Ucrânia e o Irão a responder militarmente a Israel. Em todas essas situações, procurou-se, com sucesso, provocar o adversário criando-lhe uma situação psicológica insustentável. Visa-se com essas provocações levá-lo a envolver-se militarmente, utilizando esse pretexto para lhe responder e o derrotar, explorando a sua vulnerabilidade percebida.

No Afeganistão, o sucesso do apoio norte-americano aos Mujahidins que combatiam o regime pró-Moscovo de Mohammad Najibullah; na Ucrânia, a interferência de Washington na política interna de Kiev, o golpe de Estado em Maidan (2014), obra dos neoconservadores instalados na Administração Obama (nunca é demais recordar que a obreira Nuland participou em todas as Administrações norte-americanas desde a primeira Administração Clinton, em 1993), o armamento das fações ultranacionalistas e o iminente ataque às comunidades russófonas ucranianas.

No caso do Irão, o ataque a instalações diplomáticas iranianas em Damasco, os sucessivos assassinatos seletivos de dirigentes iranianos, do Hezbollah e do Hamas, muito em particular o de Ismail Haniya em Teerão, tinham como objetivo provocar o Irão, criar-lhe uma situação insustentável, não lhe dando outra alternativa que não fosse a de retaliar. Encostado à parede, o Irão respondeu à provocação e voltou a atacar Israel a 1 de outubro. O fornecimento de armamento e treino militar a Taipé ainda não colocou a China numa situação insustentável, em que não tenha outra alternativa senão intervir, como sucedeu com a Rússia e o Irão.

A Ucrânia e Israel desempenham papeis muito semelhantes no xadrez geopolítico mundial para os EUA. A primeira para controlar a Rússia, e o segundo o Médio Oriente. Se dúvidas existissem sobre isso, elas foram desfeitas num discurso do então energético Joe Biden ao Congresso norte-americano, em 1986, quando afirmou que “Israel é o melhor investimento que fazemos [EUA], caso Israel não existisse os EUA teriam que inventar um Estado de Israel para proteger os nossos interesses na região, os Estados Unidos teriam de inventar Israel.”

É também à luz disto que se deve procurar entender o comportamento de Washington, mais precisamente da ativa ala neoconservadora. Enquanto o enfraquecido Biden procura limitar a resposta de Telavive à retaliação de Teerão, de 1 de outubro, as fações da administração pública norte-americana trabalham nos bastidores em estreita coordenação com Israel, discutindo os possíveis ataques e “explorando opções de resposta ao ataque de mísseis do Irão contra Israel”, como afirmou o vice-secretário de Estado dos EUA, Kurt Campbell.

Segundo o Politico, ao mesmo tempo que a Administração Biden instava publicamente o Governo israelita a reduzir os seus ataques, “funcionários americanos apoiavam discretamente a ação militar de Israel contra o Hezbollah… figuras de topo da Casa Branca diziam a Israel que os EUA apoiariam o aumento da pressão militar contra o Hezbollah.”

Este comportamento aplica-se igualmente à possibilidade de uma contrarretaliação israelita ao ataque iraniano de 1 de outubro. Segundo o texto de Kenneth M. Pollack (Which path to Persia?) publicado pela Brookings, em 2009, o facto de os EUA afirmarem não querer que Israel ataque as instalações nucleares iranianas baseia-se numa estratégia de manter uma negação plausível enquanto, de facto, ataca o Irão, incluindo as suas instalações nucleares.

Por outras palavras, os neoconservadores instalados no poder querem uma guerra com o Irão, querem destruir a sua indústria de armamento, o seu programa nuclear, a sua economia e derrubar o seu governo, mas não querem ser alvo de condenação e retaliação a nível mundial, pelo que estão a armar/apoiar Israel para o fazer por eles.

Falamos daquilo a que Mearsheimer chamou de buck-passing. Isto é, quando uma grande potência se encontra numa postura defensiva, tentando evitar que os seus rivais ganhem poder à sua custa, pode optar pelo equilíbrio ou intervir, transferindo a responsabilidade de agir para outros Estados, mantendo-se à margem no assento traseiro.

Entretanto, multiplicam-se os apelos aos ataques ao Irão. “De facto, esta é a oportunidade ideal para destruir o programa nuclear do Irão. O tempo que o país leva para chegar a uma bomba é de uma a duas semanas. Não está previsto qualquer novo acordo nuclear. O Hamas e o Hezbollah não estão em posição de retaliar. E a República Islâmica acabou de o pedir. De facto, esta pode ser a última oportunidade para impedir Teerão de ter uma bomba.”

Na mesma linha, o antigo primeiro-ministro de Israel Naftali Bennett veio dizer que se trata da “grande oportunidade em 50 anos, para alterar a face do Médio Oriente, destruir o programa nuclear do Irão, as instalações energéticas terroristas, que se encontra mortalmente incapacitado.” “Temos uma justificação. Temos ferramentas. Agora o Hezbollah e o Hamas estão paralisados, o Irão está exposto. Há alturas em que a história nos bate à porta, e nós temos de a abrir. Esta oportunidade não pode ser desperdiçada.”

De facto, este é o momento indicado para o fazer aproveitando o vácuo de poder na Casa Branca e antes que Trump se possa vir a sentar-se na Sala Oval. Nesta matéria, Trump não é fiável para os neoconservadores, que já os tinha impedido em 2019 de materializar um ataque ao Irão. Os neoconservadores têm de aproveitar esta janela de tempo, porque com Trump no poder, se ganhar as eleições, essa possibilidade pode desaparecer.

Os projetos, as ideias e as ambições pessoais e políticas de Zelensky e Netanyahu só serão concretizáveis se inseridas numa grande estratégia, que lhes é alheia, atuando por procuração e colaborando na concretização da primazia geoestratégica norte-americana abraçada pelos neoconservadores: provocar mudanças de regime em Moscovo e Teerão (como o afastamento do primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadegh, em 1953, que teve a aleivosia de privatizar as petrolíferas) infligindo-lhes derrotas estratégicas.

Nem a Ucrânia, nem Israel teriam conseguido resistir não fosse o apoio político, financeiro e militar proporcionado por Washington. Tanto Israel como a Ucrânia estão a servir interesses norte-americanos, em particular de um poderoso segmento das suas elites. O envolvimento de Taiwan nesse projeto encontra-se, por enquanto, comprometido.

A grande interrogação que se nos coloca neste momento é saber se Teerão tem capacidade para responder à retaliação israelita, como Moscovo está a responder ao desafio geoestratégico colocado por Washington. Teerão já fez saber aos EUA, através do Qatar, que a fase da contenção unilateral terminou. Está para se ver se vai conseguir dar a volta por cima, como estão a fazer os russos.