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sábado, 20 de outubro de 2018

As falazes divisões debilitadoras da Esquerda

Novo artigo em Aventar


por Ana Moreno

As relações entre os sexos são, sabidamente, um tema complexo e virulento. Não sou especialista no assunto, mas não sou cega e basta olhar em volta para ver, na mercearia, mulheres com nódoas negras sobremaneira suspeitas; basta conhecer os números sobre salários para ver as diferenças; basta atentar ao número de mulheres em cargos de poder e compará-lo com o dos homens; basta ler sobre a violência doméstica e ver os números, basta ter, quando jovem, sentido o desconforto de ouvir bocas sexistas na rua. Enfim, basta olhar e ver. Como gosto muito de cinema, noto particularmente que, mesmo na grande maioria dos filmes verdadeiramente bons, a apresentação do acto sexual transporta sobremaneira os clichés de uma fantasia bem masculina.

Vem isto a propósito do programa Prós e Contras sobre o movimento #MeToo. Só vi a primeira parte, e chegou. Aliás, chegou logo ao ouvir Raquel Varela a desqualificar todo o movimento, porque acha que os homens ficam cheios de medo. Porque acha o verbo “importunar” muito bonito e reivindica o direito de tocar. Afirmando que o movimento mete tudo no mesmo saco, mete ela própria tudo no mesmo saco, ao reduzir o movimento à questão da presunção de inocência. Daí, dá o salto e etiqueta arrogantemente o movimento #MeToo de conservador, anti-democrático. E claro, só as lutas de classes é que são progressistas.

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PROVIDENCIAL

  por estatuadesal

(Virgínia da Silva Veiga, 20/10/2018)

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O Conselho Superior da Magistratura abriu um inquérito a propósito da entrevista de Carlos Alexandre à RTP mas ninguém sabe qual seja o objecto de tal inquérito. Não se sabe se se destina apenas a investigar a legalidade dos sorteios no Tribunal de Instrução Criminal, se as violações deste juiz ao Estatuto a que está obrigado, se as ligações deste a grupos políticos, se, finalmente, a própria RTP para quem, em violação das leis que regem o canal público, o contraditório, não existem.

O caso merecia, de facto, ser investigado de todos os prismas porque há muito se clama por ordem e legalidade.

Comecemos pelo fim, por uma RTP cujo trabalho é uma entrevista laudatória a terminar como começa: com uma ameaça velada, um recado aos magistrados que se atrevam a condenar o envolvido.

Alexandre preparava -se para ir este fim de semana a Portalegre, integrado num comício politico, fazer uma palestra. Era anunciado como cabeça de cartaz do acontecimento. Terá desistido, mas o episódio, real, não pode deixar de se enquadrar no perfil de um homem que admite ter uma página da mesma sensibilidade política, a mesma em que se enquadra o teor de toda a entrevista.

A entrevista não se limita a pôr em causa o sorteio que ditou Ivo Rosa como juiz de instrução. Sugere todos os sorteios do TIC, incluindo a sua própria escolha, serem ilegais, assunto que refere expressamente, bem sabendo estar a contribuir para a nulidade de actos processuais pelo próprio praticados, em instância última a levar ao arquivamento dos autos. É matéria arguida nos requerimentos de Instrução que revela conhecer. Porquê?

O que Alexandre diz é de uma gravidade extrema. Por outras palavras, obscuras mas claras, face a um sistema que entende manipulável, não apresentou nenhum requerimento ao Conselho Superior da Magistratura nem comunicou ao seu colega de trabalho, menos à presidente da comarca a quem soube solicitar folga. Porquê? Se era assim, porque não denunciou pelos meios próprios, isto é, nada fez?

Sob a pior das formas – a suspeição -, lança subrepticiamente a ideia de que os seus colegas e funcionários orquestraram, à distância de meses, um sorteio falso, escolhendo a dedo o dia em que o próprio estaria ausente, como se não legitimasse exactamente ter ele próprio perpetrado a ausência, pormenor que esperamos ver esclarecido.

Acrescenta, o processo ter sido apenas parcialmente distribuído, como se tal existisse, e, depois de afirmar não falar com Ivo Rosa - vangloriando-se de sobrarem dedos das mãos para as vezes em que com ele falou, em três anos de vizinhança de gabinetes -, anuncia-se como pessoa rigorosa e nega, “de facto” – sublinha – alguma vez ter aceitado que lhe tivesse sido distribuído um processo antes entregue a outro, como se não soubesse que Ivo Rosa não pode negar o sorteio que lhe calhou.

Alexandre vai mais longe na teoria da cabala e deixa no ar a hipótese de o “ Dr. António Luís Santos da Costa” - assim se refere ao primeiro-ministro – estar feito com estranhos propósitos do Conselheiro Henriques Gaspar, o ex-presidente do STJ, para lhe tirarem o emprego, acabando com tribunais de competência criminal especializada, não porque seja inconstitucional, mas para o afastar, a ele, para outro qualquer lugar de primeira instância.Não recorda, como devia, ter sido este mesmo conselheiro que desempatou a seu favor o incidente de que foi alvo aquando de outra entrevista de triste memória.

Isto, e a forma como se refere ao hipotético causador dos incêndios de Mação - “ gostava de saber quem são os ladrões que me tiraram as características da minha terra”, assim profere o magistrado - mostram, não um juiz preocupado com a Justiça, mas um justiceiro no mais inadequado sentido do termo.

É neste quadro, do justicialismo, que não da Justiça sensata e equidistante, que se enquadra ter admitido ir ser orador em eventos de agrupamentos políticos que se dizem apartidários, não o sendo. Iria falar este sábado a Portalegre. Terá desistido. Mas até hoje nunca se opôs a que a mesma sensibilidade política tenha criado uma página com a sua imagem.

Carlos Alexandre veio a público fazer acusações de falta de isenção aos seus colegas, que insinua terem um programa político, onde se enquadra a nebulosa tentativa do seu afastamento. Deu roda de incompetente a Ivo Rosa, deu nota de um Conselho Superior da Magistratura vendido ao poder político, anunciou que a Operação Marquês é caso condenado ao arquivamento. Porquê?

No quadro de suspeições que o próprio alimenta, uma certeza deixou: o processo a que, mais uma vez, alude publicamente, nunca devia ter-lhe sido entregue. Justicialismo é um assunto, a Justiça outro. A última não se compadece com juízes providenciais patologicamente dispostos a contar, “bem contados”, cada dia útil do trabalho que os devia honrar.

Inteligência Artificial: ‘in or out’?


ADVISORY

Nuno da Silva Vieira, Advogado

19 Outubro 2018, 08:15

Porque não trabalhamos juntos e assinalamos no mapa a prestação de serviços jurídicos “made in Portugal”?

Quando António Costa apresentou o programa 20/30, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), muitos incumbentes não viram mais do que uma oportunidade política para embelezar as comemorações do dia de Portugal nos EUA. Outros, menos incumbentes, perceberam que este programa de implementação de inteligência artificial – através de parcerias entre o MIT e as nossas universidades – poderia representar uma oportunidade muito superior ao anunciado investimento de 120 milhões de euros.

Esta luta entre incumbentes e jovens empreendedores assemelha-se àquela travada entre David e Golias. Hoje a Uber é uma realidade e os que não viram o seu surgimento – no silêncio – foram apanhados na rede; ou fazem igual ou morrem. Há que entender que os clientes se habituam a serviços que se centram na sua experiência.

Aquelas empresas bem instaladas, com grandes sistemas de comunicação interna, foram ultrapassadas. Não souberam reagir. Enquanto, de um lado, o CEO de uma incumbente pede à colaboradora para o assistir numa chamada internacional – através de um sistema ultrassofisticado (tão sofisticado que nem ele sabia ligar) e instalado na grande mesa da sala de reuniões –, dois jovens, em lados opostos do mundo, fecham um negócio por Skype cujas regras contratuais seriam sustentadas em Blockchain. E esta é a deixa para o tema da advocacia, não fosse a tecnologia Blockchain o fim de muitos contratos e de faturações preciosas para advogados relaxados.

A indústria legal portuguesa tem uma mão-cheia de incumbentes que ainda não perceberam que existem dezenas de jovens advogados interessados em saber mais acerca do tal acordo com o MIT; a outra mão, por seu turno, está a abarrotar de empreendedores portugueses que nela habitam dentro dos muros das maiores empresas tecnológicas do planeta. Por que razão incomodo os leitores com este tema? Porque para além de demasiado incumbentes, estes personagens são também demasiado distraídos.

A nossa indústria (legal) é tão curta que as oportunidades para os próximos anos são arrepiantes. Ao invés de os incumbentes tentarem derrubar os empreendedores, porque não se apoiam nos seus ombros? Porque não trabalhamos juntos e assinalamos no mapa a prestação de serviços jurídicos made in Portugal?

O mercado dos serviços jurídicos em Inglaterra representa 1,9% do PIB daquele país e vale aproximadamente 25,5 mil milhões de libras. Há quase 100 mil advogados e outros tantos auxiliares. Em Portugal não existem, sequer, dados fiáveis – pois ainda se enquadram os serviços jurídicos com os de arquitetura, contabilidade e outros. Mas a equação é muito simples. Valeremos, todos juntos, 500 milhões? Talvez os gigantes da indústria legal portuguesa venham, a médio prazo, a chamar- se David e não Golias, e possam estar convictos na “Mensagem” de Fernando Pessoa.

Uma mudança civilizacional

Uma mudança civilizacional

Xavier Rodríguez-Martín, Empresário

19 Outubro 2018, 08:35

Toda a economia se baseia na manipulação das pessoas, mas a enorme capacidade da Internet para modelar condutas multiplica os seus riscos.

O consumo é uma atividade basilar do modelo de vida ocidental. As sociedades modernas caracterizam-se por um crescimento aparentemente inesgotável da quantidade de produtos disponíveis e o nosso conceito de liberdade, no mínimo em termos económicos, está intimamente associado à capacidade individual de escolha. A tecnologia permite cada vez mais conjugar a personalização dos produtos com as eficiências da escala industrial, garantindo simultaneamente o crescimento da produção e a manutenção da propensão de cada pessoa para o consumo de produtos do seu interesse.

No olimpo digital ocidental, a Amazon é o paradigma do consumo, da mesma forma que associamos a Google a uma espécie de semideus que tem resposta para todas as nossas dúvidas ou o Facebook ao lugar para a socialização digital.

A Amazon tem-se transformado num mercado de uma dimensão colossal. Em comparação com as 5.000 referências de produtos disponíveis num supermercado urbano ou as 100.000 referências do maior mercado do mundo, a Amazon oferece-nos 500 milhões de produtos. A gestão de uma carteira dessa dimensão impõe enormes desafios operacionais, mas também exige uma abordagem diferente aos consumidores perante uma oferta que deixou de ter escala humana. Por esse motivo, e com base em sofisticados mecanismos de “perfilagem” com base nas sucessivas escolhas de compra, a Amazon consegue propor produtos cada vez mais adaptados aos gostos e às necessidades de cada pessoa.

O resultado desse processo é perturbador. Na atualidade, 37% de todos os produtos vendidos pela Amazon são sugeridos pela própria empresa; e uma em cada 20 propostas de venda que recebemos diariamente transforma-se numa venda efetiva. Perante a dimensão e o crescimento destas percentagens já não é possível falar de “vendas assistidas” e devemos começar a falar de “compras impostas”, embora o eufemismo técnico seja “curated product discovery”.

A Amazon diz-nos hoje o que queremos. Deixamos de ter vontade própria com base na quantidade e qualidade de informação que a empresa acumula sobre nós. Para termos uma ideia do poder dessa informação, o nosso perfil como consumidor é hoje muito melhor apurado com base nas nossas últimas três compras do que a partir da nossa informação demográfica sobre a idade, sexo, etc.

Como resultado desta capacidade, a Amazon multiplicou por 30 o seu valor em bolsa durante a última década, o que lhe permite dispor dos meios necessários não só para aprofundar estas técnicas, mas também para invadir outros âmbitos e conquistar posições de domínio em setores como os serviços cloud ou, mais recentemente, o entretenimento.

As implicações desta mudança são brutais e potencialmente devastadoras para o nosso modelo de vida. Toda a economia se baseia na manipulação das pessoas, mas a enorme capacidade da Internet para modelar condutas multiplica os seus riscos. Será preciso fomentar uma aliança efetiva entre a ciência e as leis para nos proteger destes desenvolvimentos técnicos se quisermos proteger os pilares da nossa civilização.

A democracia é o aqui e o agora

Cátia Miriam Costa,

Centro de Estudos Internacionais (ISCTE-IUL)

19 Outubro 2018, 00:25

A tão propalada pós-verdade não é mais que um sintoma desta vida em formato de corrida, em que se misturam factos reais e simulados, porque o tempo é pouco para aferir da veracidade ou lógica de cada novidade que nos aparece.

Vivemos dias difíceis. Esta parece ser uma afirmação que levanta poucas dúvidas à maior parte de nós. Mas não são todos os tempos difíceis e fruto de uma trabalhosa construção de equilíbrios em cima de profundos desequilíbrios? Os desafios com que hoje nos confrontamos são diferentes dos do passado, mas não podemos considerar que somos os primeiros a enfrentar turbulência e incertezas quanto ao presente e ao futuro.

Estamos confrontados com sociedades cansadas de si próprias e com vontade de se cansar ainda mais, procurando permanentemente a experiência e transformando cada aprendizagem numa prova de aptidão para um ambiente competitivo e em que os recursos são diminutos. E não são apenas os recursos criados humanamente que são escassos. Criámos sociedades que delapidam rapidamente os recursos naturais, sem pensar que a competição por estes recursos lançará a humanidade num estado permanente de violência e disputa pela sobrevivência.

O “mais” tornou-se mais importante que o “melhor” e isso atravessa todas as esferas da vida humana. Mas esse mais determinou que um outro bem que aprendemos a medir se tornasse cada vez mais escasso, pelo que estamos sempre a viver com o menos: menos tempo para atingir o “mais”. Esse tempo que escasseia tem consequências na vida profissional, afetiva e também comunitária e societária. Vamo-nos habituando a aceitar raciocínios alheios e a tornar tudo muito claro entre o branco e o preto, eliminando todas as áreas cinzentas entre um e outro extremo.

A tão propalada pós-verdade não é mais que um sintoma desta vida em formato de corrida, em que se misturam factos reais e simulados, porque o tempo é pouco para aferir da veracidade ou lógica de cada novidade que nos aparece.

Não é nova a aceleração na vida das pessoas. Cada vez que temos uma inovação disruptiva que estreita distâncias e acelera contactos ou processos de produção, esta questão é levantada. Não é por acaso que no seguimento de um grande desenvolvimento científico e tecnológico, as pessoas se sentem desafiadas a novos comportamentos. Profissões antigas desaparecem e novas surgem, os meios de conhecimento parecem transformar-se e substituir cabalmente os pré-existentes, levando a que a vida humana como um todo sofra alterações. É nesses momentos que os equilíbrios são repensados, reavaliados e refeitos.

Estamos num desses momentos, mas com uma grande diferença: percebemos que estamos perante recursos naturais e recursos humanamente produzidos perto da saturação e estamos à procura de caminhos novos. Daí que seja natural extremarem-se os discursos e questionarem-se as soluções políticas pelas quais temos optado.

Quantas vezes amigos nossos nos dizem que temos de tomar uma causa e lutar por esta, como se fosse única, porque o nosso ativismo tem de ser direcionado? É uma opção muito válida, mas levanta um único problema: todos as questões humanas são complexas e todas as esferas da nossa vida se tocam. Assim, áreas da vida que nos parecem afastadas interligam-se e fazem parte de uma mesma realidade humana. Não podemos combater, por exemplo, a desigualdade social sem defender o meio ambiente, não podemos lutar pela igualdade cívica sem ser antirracistas, porque as sociedades em que vivemos são pluriformes e construídas por diversas facetas que nos dizem respeito.

No fundo, é importante sabermos de que lado estamos em cada uma destas questões, embora podendo direcionar naquelas áreas em que mais ativamente queremos participar. Mesmo que nos falte o tempo. Mesmo que os nossos juízos críticos sejam árduos de fazer e nos esgotem o bem mais precioso e de que não se fala, o tempo.

Informação pronta a servir

Mas de que consta essa falta de tempo, esse cansaço permanente? Talvez resulte de um simples facto. A tecnologia tem permitido acelerar as comunicações e a produção de conhecimento, também fruto de políticas públicas de democratização no acesso e à produção de informação e conhecimento. Temos quase tudo à distância de um clique numa tecla (analógica ou virtual) dos nossos computadores, tablets ou smartphones. E ainda podemos optar por um papel passivo e apenas estar ligados a um canal de notícias ou a uma aplicação que nos oferece constantemente factos novos, quase ao segundo.

Nessa voracidade da quantidade do que procuramos e do que nos é oferecido, raras vezes exercemos o nosso direito à dúvida, à discordância ou à crítica. Mesmo sabendo que pode existir manipulação, mesmo estando conscientes que por vezes as fontes são duvidosas, a receção é passiva ou baseada nos cruzamentos desses mesmos dados através das redes sociais, ávidas de orientar a nossa opinião.

Produtores e recetores da informação e do conhecimento perderam o tempo para verificar factos, ouvir as partes envolvidas em cada acontecimento, porque o mais impera. Mais notícias, mais atuais e, se possível, simultâneas ao próprio evento que se relata, levam a menos tempo para a maturação do próprio acontecimento.

Como não só noticiar a cada segundo como reagir a cada minuto é importante, rapidamente surgem tomadas de posição sobre factos não cabalmente esclarecidos, muitas vezes sem que tenham tempo de ser explicados os seus próprios condicionalismos. Nesses momentos, forma-se a turba que gera a opinião. E opina-se muito sobre o que não se sabe. Pior que isso, formam-se grupos de opinião que limitam a que todos os outros tenham de ter a mesma opinião. E nesta voracidade de factos e contra-factos, sempre recheados de opiniões com base em poucos conhecimentos e em receções acríticas, o fenómeno da pós-verdade ganhou força.

E ganha uma força que quase censura a livre opinião, pois se é tudo tão claro, como poderá alguém duvidar? Mas a vida não é clara e os argumentos nem sempre são seguros. Saberemos nós das circunstâncias de determinado acontecimento? Provavelmente nem nós nem sequer os envolvidos. Esta informação pronta a servir, imediata e que rapidamente se esgota, é apenas perigosa se enquanto recetores deixarmos o nosso espírito crítico de lado e continuarmos a exigir que a cada segundo haja uma qualquer novidade.

A nossa vida enquanto indivíduos está agora centrada nos ecrãs e monitores que nos rodeiam e não queremos que estes sejam estáticos. A sua permanente dinâmica acaba por nos dar a ideia que também nós os acompanhamos e também nós somos dinâmicos. Que estamos de alguma forma a participar na turbulência que nos rodeia. Cansados da monotonia, mas também esgotados para pensar por nós próprios e para interpretar o que nos rodeia, sem pressas nem constrangimentos opinativos, aceitamos como verdade o que pode não o ser.

Esta exigência de mais e mais informação e da constante atualização do que se passa em nosso redor resulta nesta pressão para que se criem factos, tantos quantos possíveis. E neste ciclo entre produção e receção, acabamos por estar enleados, porque de um lado se pretende dar resposta à procura e do outro lado apenas se pretende mais e mais para saciar a nossa curiosidade e justificar o nosso cansaço.

Como em todas as situações, existe quem esteja alerta e disponível para se aproveitar dos anseios e medos alheios. Os discursos extremistas encaixam bem nesta dificuldade em acompanhar a realidade ou em vê-la ampliada a tal ponto que tudo parece uma ameaça. As redes sociais permitem um acesso ao grande público não mediado que, sedento de mais e mais informação e factos, acaba por seguir quem sacia de alguma maneira as suas necessidades. E neste ponto, qual o papel da democracia, o regime que defende o livre debate?

Democracia, sinónimo de dignidade

Como Churchill disse e Sérgio Godinho eternizou em língua portuguesa na sua música “a Democracia é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros”, ainda que desafiada por tonalidades de pós-verdade ou pela voracidade do imediato. E, como também diz o cantautor, a democracia é “uma mãe mais doce que o mel”, por isso ela tem de educar para aquilo que é ser democrata. O debate livre é democracia, mas o tratamento indigno para as pessoas ou a exploração intensiva e irracional da natureza não o é. A democracia baseia-se exatamente no respeito pelos equilíbrios e, embora refletindo a vontade do povo, não dá o direito a ninguém que vença através de escrutínio a eliminação do adversário ou o seu tratamento indigno.

Por isso não podemos aceitar que na concorrência democrática e escudando-se nas redes sociais, candidatos ao poder político se escusem a debates públicos ou os enfrentem como ativos participantes no regime democrático. Quem defende a desigualdade e violência de género, o ódio racial, a exploração massiva dos recursos naturais, a violência e o armamento de cada cidadão viola os princípios do regime pelo qual se candidata.

Tem objetivamente de dizer publicamente que é antidemocrático na forma em que hoje entendemos a democracia. Não pode escudar-se na liberdade de opinião para defender tratamento indigno para os seus concidadãos. Não pode escudar-se na liberdade de debate para ofender os seus opositores. Não pode escudar-se na mentira para enganar o eleitorado. Porque quem joga o jogo da democracia tem de aceitá-lo. Caso contrário não poderá ser eleito e fazer o compromisso de honra de defendê-lo.

Porque a democracia não é um legado do passado, apesar das lutas esforçadas de muitos que deram a sua vida pela nossa liberdade. Também não é algo que queremos para o futuro “das nossas crianças”. A democracia é o aqui e o agora. Tolera a diferença, encoraja o debate, mas é intransigente para quem não a respeita.

A democracia somos nós que a fazemos e não o fruto dos políticos que temos.  Para a defendermos é preciso termos tempo. E dar do nosso tempo a essa construção multifacetada que é um regime político que defende a liberdade e a igualdade de oportunidades perante a justiça e o poder político. E até almejar em querer mais e combater as outras desigualdades que por aí andam, consoante a consciência e ideologia de cada um. A história não teve um fim e as ideologias também não, mas cabe-nos a nós mantê-las vivas e subordinadas aos valores democráticos.