Recordações de gente crescida
Posted: 07 Dec 2018 01:45 PM PST
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Cada pessoa que insultava um gilet jaune insultava o meu pai
Posted: 07 Dec 2018 07:58 AM PST
Já ontem fiz referência a este texto do escritor Edouard Louis. Mas foi entretanto traduziado pela Ana Cristina Pereira Leonardo no Facebook, já que é cada vez menor o número de portugueses capazes de ler um texto em francês... Aqui fica a tradução.
«Há já alguns dias que tento escrever um texto sobre e para os gilets jaunes, mas não consigo. Porque, de certo modo, me sinto pessoalmente visado, algo na extrema violência e no desprezo de classe que se abatem sobre esse movimento me paralisa.
Tenho dificuldade em descrever a sensação de choque quando vi aparecerem as primeiras imagens dos gilets jaunes. Nas fotografias que acompanhavam os artigos via corpos que raramente aparecem no espaço público e mediático, corpos em sofrimento, arruinados pelo trabalho, pelo cansaço, pela fome, pela humilhação permanente dos dominadores em relação aos dominados, pela exclusão social e geográfica, via corpos cansados, mãos cansadas, costas alquebradas, olhares exaustos.
A razão porque ficava tão perturbado estava evidentemente na minha aversão à violência do mundo social e das desigualdades, mas também, e talvez antes de mais, porque aqueles corpos que eu via nas fotografias eram semelhantes aos corpos do meu pai, do meu irmão, da minha tia… Assemelhavam-se aos corpos da minha família, dos habitantes da vila onde vivi durante a infância, gente com a saúde corroída pela miséria e pela pobreza e que repetiam sempre, todos os dias da minha infância, “não contamos para ninguém, ninguém fala de nós” – daí que me sentisse pessoalmente visado pelo desprezo e violência da burguesia que logo se abateram sobre o movimento. Porque para mim, em mim, cada pessoa que insultava um gilet jaune insultava o meu pai.
De imediato, desde o nascimento do movimento, vimos nos media “especialistas” e “políticos” a diminuir, condenar, troçar dos gilets jaunes e da revolta que estes encarnam. Via desfilar nas redes sociais as palavras “bárbaros”, “brutamontes”, “labregos”, “irresponsáveis”. Os media falavam do grunhir dos gilets jaunes: as classes populares não se revoltam, não, elas grunhem como as bestas. Ouvia falar da “violência do movimento” quando um carro era incendiado ou uma montra partida, uma estátua danificada. Fenómeno habitual da percepção diferenciada da violência: grande parte do mundo político e mediático queria fazer-nos acreditar que a violência não são milhares de vidas destruídas e reduzidas à miséria pela política, mas algumas viaturas incendiadas. É realmente preciso nunca ter conhecido a miséria para poder pensar que uma tag num monumento histórico é mais grave do que a impossibilidade de sonhar, de viver, de se alimentar ou de alimentar a família.
Os gilets jaunes falam de fome, de precariedade, de vida e de morte. Os “políticos” e uma parte dos jornalistas respondem: “símbolos da nossa República foram aviltados”. Mas de que fala esta gente? Como ousam? De onde vêm? Os media falam também de racismo e de homofobia nos gilets jaunes. Estão a troçar de quem? Não quero falar dos meus livros, mas é interessante assinalar que, sempre que publiquei um romance, fui acusado de estigmatizar a França pobre e rural precisamente porque referia a homofobia e o racismo presentes na vila da minha infância. Jornalistas que nunca haviam feito nada pelas classes populares indignavam-se e punham-se de repente a representar o papel de defensores das classes populares.
Para os dominadores, as classes populares representam a classe-objecto por excelência, para retomar a expressão de Pierre Bourdieu; objecto manipulável do discurso: um dia os bons pobres autênticos, racistas e homofóbicos no dia seguinte. Nos dois casos, a vontade subjacente é a mesma: impedir a emergência da palavra das classes populares, sobre as classes populares. Se temos que nos contradizer de um dia para o outro, que se lixe, desde que eles se calem.
Claro que há expressões e gestos homofóbicos e racistas no seio dos gilets jaunes, mas desde quando esses media e esses “políticos” se preocupam com o racismo e a homofobia? Desde quando? O que é que eles fizeram contra o racismo? Será que utilizam o poder de que dispõem para falar de Adama Traoré ou do Comité Adama? Será que falam da violência policial que se abate todos os dias sobre os negros e os árabes em França? Não deram uma tribuna a Frigide Barjot a ao Monsenhor-não-sei-quantos na altura do casamento para todos, e, ao fazê-lo, não tornaram a homofobia possível e normal nos programas de televisão? Quando as classes dominantes e certos media falam de homofobia e de racismo no movimento dos gilets jaunes, não falam nem de homofobia nem de racismo. Dizem: “Pobres, calados!” Por outro lado, o movimento dos gilets jaunes é ainda um movimento em construção, a sua linguagem não está fixada: se existe homofobia e racismo entre os gilets jaunes, é da nossa responsabilidade transformar essa linguagem.
Há diferentes maneiras de dizer: “Sofro”: um movimento social é precisamente esse momento em que se abre a possibilidade de que aqueles que sofrem deixem de dizer: “Sofro por causa da emigração e da minha vizinha que recebe ajudas do Estado” e passem a dizer: “Sofro por causa daquelas e daquelas que governam. Sofro por causa do sistema de classe, por causa de Emmanuel Macron e Edouard Philippe”. O movimento social é um movimento de subversão da linguagem, um momento em que as velhas linguagens podem vacilar. É o que se passa actualmente: assiste-se desde há alguns dias a uma reformulação do vocabulário dos gilets jaunes. No início, ouvia-se apenas falar de gasolina e por vezes de palavras desagradáveis como “os assistidos”. Ouvem-se agora as palavras desigualdade, aumento de salários, injustiça.
Este movimento deve continuar porque ele encarna algo de justo, de urgente, de profundamente radical, porque os rostos e as vozes que estão habitualmente sujeitos à invisibilidade são finalmente visíveis e audíveis. O combate não será fácil: os gilets jaunes representam uma espécie de teste de Rorschach para uma grande parte da burguesia: eles obrigam-na a exprimir o seu desprezo e violência de classe, expresso habitualmente apenas de forma dissimulada, desprezo que destruiu tantas vidas à minha volta, que continua a destruir e cada vez mais, um desprezo que reduz ao silêncio e que me paralisa ao ponto de não conseguir escrever o texto que queria escrever, de exprimir o que queria exprimir.
Mas temos de ganhar: somos muitos, e muitos a dizer que não podemos sofrer mais uma derrota para a esquerda, logo, para aquelas e aqueles que sofrem.»
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França: da humilhação
Posted: 07 Dec 2018 06:34 AM PST
Ontem, em França, mais de 300 liceus juntaram-se à revolta dos «coletes amarelos» e protestaram contra a reforma no secundário e no acesso à universidade.
Foram reprimidos e, em Mantes-la-Jolie, um polícia fez o que se vê no vídeo. Estes adolescentes nunca mais esquecerão a humilhação a que foram submetidos. Depois queixem-se!
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Alterações climáticas chumbadas na rua
Posted: 07 Dec 2018 02:56 AM PST
«França mostra o que se segue: a luta contra as alterações climáticas cai em cima de todos mas é particularmente dura na classe média-baixa, a base do que ainda se pode designar genericamente por trabalhadores mal remunerados, desempregados e o restante conjunto difuso dos excluídos do "sucesso".
Trata-se de um segmento enorme onde há muita ira acumulada e capacidade de atuação social pela violência. Estas pessoas têm de ser tratadas com particular proteção porque merecem essa dignidade. Mas, igualmente, porque serão o primeiro pelotão de combate às políticas de transformação contra as alterações climáticas, questão tão crucial que não pode ser adiada.
Trump e as eleições nos Estados Unidos provam como se pode manipular este eleitorado. O planeta pode vir a ser um lugar inabitável "amanhã" mas, para quem a sobrevivência é já hoje um esforço desmedido, se tudo acabar daqui a uns anos, acabou. Hoje é que já não aguentam mais. Por isso o Presidente dos Estados Unidos não quer saber dessa conversa que custa votos. François Macron quis e quase se afundou.
Parar as emissões de carbono tem um preço social altíssimo. O gasóleo continua socialmente "barato" porque a conta é paga noutros departamentos da sociedade (hospitais sobretudo). Mudar de um automóvel a gasóleo para um elétrico só se faz por fé na humanidade e status social - ainda não há conta que o justifique na maioria dos casos. Além disso, todos os centros de negócio da indústria do petróleo e automóvel ajudam na manutenção do paradigma carbónico - ninguém deixa morrer um negócio desta escala épica sem dar luta.
Ainda por cima, o transporte individual é quase a única opção fora dos grandes centros, tornando a vida dura e cara. Não ter acesso a transportes públicos - numa era de custos crescentes por emissões de carbono - é uma forma importante de pobreza que deve ser reconhecida.
A crise ambiental é transversal a todos os países que acreditem na ciência. Mário Centeno também é dos que acha que as emissões são globais. O que pensou o ministro sobre o tema quando apresentou o orçamento de Estado em Outubro? Propôs baixar o imposto sobre a gasolina, tornando-o mais próximo do gasóleo. É uma medida idêntica à de Macron mas inversa: em vez de querer somar mais impostos, diminuiu receita. Por isso o Presidente francês foi acusado de demagogia - embora todos saibamos que a solução não passa apenas por se ir transferindo o consumo do gasóleo para gasolina por razões ambientais. É preciso diminuí-las a todas. E a única forma é subir o preço. Portanto, Macron está certo no diagnóstico. Mas fazê-lo sem um tecido social que consiga ir trabalhar sem automóvel não é ainda realista.
Como se viu em Paris, as alterações climáticas são já um tema presente em todos os grandes dossiers da política e da economia. Se forem a preocupação de apenas uma certa geração, ou de gente com visão política "verde", então não há dúvida que o planeta vai arder. E por esta altura já não estamos em lume brando - veja-se o caso dos incêndios florestais este ano na Califórnia e no ano passado em Portugal. E a subida do nível do mar. E a perda de biodiversidade. E os prejuízos agrícolas. E as novas doenças do clima. E os oceanos. Etc...
O que vem aí é de uma escala transcendente se comparada aos (duríssimos) acontecimentos de Paris. Citando uma frase que terá sido verdadeira a partir de 2012 e nunca mais mudou: já há mais refugiados climáticos do que de guerra. A questão é que somos todos cada vez mais refugiados de alguma coisa, aqui, em Paris ou em África. E não há recursos para todos se continuarmos como estamos.»
Daniel Deusdado