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sábado, 19 de janeiro de 2019

Por que razão o conflito interno no PSD é estrutural?

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 19/01/2019)

JPP

Pacheco Pereira

A forma actual deste conflito e a que é estrutural tem que ver com a composição dos quadros dirigentes de um partido, a sua carreira e fonte de poder.


Pesem embora os vaivéns da sorte e azar das direcções do PSD, a actual e as anteriores, há uma razão para que o conflito interno seja endémico e estrutural, ou seja, não acabe. Pode ser mais vocal e aberto, ou mais abafado e de intriga, mas está lá. Mesmo quando há manifestações unanimistas à albanesa — lembro-me de um congresso quando Santana Lopes era primeiro-ministro em 2004, o do “menino guerreiro” — o conflito está lá por baixo; aliás, não demorou muito a vir ao de cima. O poder atenua-o a maioria das vezes, mas é um lugar-comum dizer que isso sempre acontece. E não é apenas uma situação estável e “habitual”, mas tem conhecido um agravamento considerável nos últimos anos.

Por que razão isso acontece? É uma marca própria do PSD ou existe nos outros partidos de dimensão idêntica, em particular no PS? A resposta é sim — é um problema comum ao PS e ao PSD, mas a composição social, história e cultura política marcam diferenças, embora o fundo do conflito seja idêntico. Não tem que ver nem com política nem com ideologia, nenhuma das quais tem papel significativo, e mesmo os alinhamentos de esquerda e direita não são muito relevantes em conflitos que têm uma componente “oportunista”, ou seja, de oportunidade, posição e expectativas. A forma actual deste conflito e a que é estrutural tem que ver com a composição dos quadros dirigentes de um partido, a sua carreira e fonte de poder. A principal distinção tem que ver com carreiras internas, aparelhísticas, e carreiras que dependem do prestígio social externo, seja na economia, na cultura, na sociedade, na academia, seja no âmbito profissional. A mudança que tem ocorrido nos grandes partidos é o peso crescente de quadros com carreiras interiores e o escasso recrutamento e poder partidário dos militantes cujo poder vem do prestígio social e profissional. Os recrutamentos tecnocráticos de “independentes” para os governos são um efeito perverso desta situação.

Um partido como o PSD (e o PS) tem hoje um número significativo de quadros cuja carreira é puramente interior ao partido e às suas estruturas. Mesmo quando exercem cargos exteriores fazem-no na área da confiança política como comissários do partido para as áreas da saúde, educação, segurança social, emprego, juventude, ou no interior de governos e autarquias, na verdade como delegados políticos, os chamados “boys”, ou na administração de empresas municipais. Observam-se os curricula e todos têm um traço comum: quase nenhuma experiência profissional genuína, no Estado ou em empresas, percursos académicos medíocres ou inacabados, na maioria das vezes em escolas privadas cujo grau de exigência é pequeno, contrastando com uma sucessão de cargos políticos.

A fonte do seu poder é interior: é o lugar dentro das estruturas partidárias e os “lugares” que essa estrutura tem dentro e fora do partido. Qualquer perturbação quer nessa fonte de poder interno, quer na fatia de lugares que uma estrutura controla, desde deputados, secretários de Estado, delegados regionais disto ou daquilo, autarcas, gera enormes conflitos, muitos dos quais não chegam sequer ao conhecimento público, porque se passam em áreas remotas da vida partidária sem escrutínio mediático. Mas, dentro, toda a gente sabe que existem.

Seguem-se alguns exemplos de personalidades com uma parte activa nos conflitos partidários, a partir de curricula oficiais, nalguns casos de entradas na Wikipédia de que se percebe serem eles mesmos autores. Vão todos no masculino: A., “percurso associado ao mundo autárquico”, deputado; B., advogado, sem exercício da profissão, cargo autárquico, lugar numa administração de uma empresa municipal, deputado, secretário de Estado adjunto, numa área de controlo político; C., advogado, sem exercício da profissão, dirigente partidário juvenil, deputado; D., frequência universitária, dirigente partidário juvenil, autarca, administrador de várias empresas municipais, deputado; E., advogado, a sua firma de advogados tem uma parte importante de contratos com autarquias dirigidas pelo partido, dirigente partidário juvenil, deputado; F., licenciatura em Direito, “trabalho jurídico”, dirigente desportivo, vereador, deputado, etc., etc.

É interessante observar nestes curricula o carácter vago da descrição de funções profissionais, e o detalhe, muitas vezes obsessivo, da descrição de funções políticas. É também comum a enumeração de funções irrelevantes ou muito passageiras, dentro de um quadro de autoconsciência de quem os faz de que não tem um curriculum por aí além. É também nestes curricula que têm origem muitos “casos” de falsas declarações, com cursos fictícios, e títulos académicos inexistentes.

Significa isto que os conflitos endémicos dos partidos com acesso ao poder são entre quem “vive de dentro” e quem “vive para fora”? Só numa pequena parte, porque os partidos estão muito desertificados de quadros com prestígio social fora, e aí o PSD está pior do que o PS. O que se passa é que, com este tipo de composição interior, os conflitos tendem a ser entre grupos muito semelhantes nas fontes do seu poder, lutando entre si pelos lugares escassos, ou pelo lugar na hierarquia partidária que permite promover os “seus”. É também por isso que há uma crise na relação entre os partidos e os cidadãos, com a distanciação progressiva dos jogos de poder interno, e a capacidade de mediação e representação dos partidos políticos em democracia.

Este círculo vicioso só se rompe de fora para dentro, e nunca de dentro para fora.

Bolsogate. Flávio Bolsonaro recebeu 48 depósitos de 2000 reais num mês

Transferências foram efetuadas entre junho e julho de 2017 sempre na agência bancária da assembleia legislativa do Rio de Janeiro, onde o hoje senador exercia funções de deputado estadual

© Reuters

João Almeida Moreira

19 Janeiro 2019 — 14:50


  • Entre os dias 9 de junho e 13 de julho de 2017, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro recebeu 48 depósitos de 2000 reais cada um, totalizando 96 mil reais, o equivalente a perto de 24 mil euros, apurou o COAF, órgão de controlo de movimentações financeiras do Brasil. Os depósitos foram todos efetuados na agência bancária da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde o filho mais velho do presidente da República exerceu trabalho parlamentar, antes de ser eleito senador, em Outubro.

Os dados, revelados pelo Jornal Nacional, o principal espaço noticioso da TV Globo, são o último e um dos mais significativos desenvolvimentos do "bolsogate" ou "coafgate", como ficou conhecido o caso envolvendo Flávio e o seu motorista, Fabrício Queiroz, e que atinge até a primeira-dama brasileira, Michelle Bolsonaro, destinatária também de um depósito.

Desde dezembro que o ministério público, após recomendação do COAF, apura movimentações financeiras atípicas no gabinete do então deputado estadual. O seu ex-assessor, motorista e segurança Fabrício Queiroz movimentou 1,2 milhões de reais (um pouco menos de 400 mil euros) de janeiro de 2016 a janeiro de 2017.

O que chamou a atenção das autoridades, além da quantia, foi o facto do motorista ter recebido transferências de oito outros funcionários do gabinete - a suspeita é de "mensalinho" no gabinete de 01, como Flávio é tratado pelo pai. O "mensalinho' consiste na contratação de assessores fantasma, que depois passam a major parte dos seus salários para o parlamentar que os emprega. E no caso do gabinete de Flávio, de facto, estavam familiares de Queiroz, que exerciam outras profissões a tempo inteiro, e funcionários que passaram a maior parte da legislatura a viver em Portugal, por exemplo.

Queiroz, chamado a depor, começou por ser declarado desaparecido. Depois, recusou-se a prestar esclarecimentos e mais tarde alegou tratamento de doença grave para faltar aos encontros com o ministério público. Flávio também não compareceu a audiência no dia 10 e pediu até ao Supremo para, na qualidade de senador eleito, ter direito a foro especial (imunidade). Foram então divulgados pela imprensa vídeos em que Jair e Flávio, em 2017, se mostravam críticos do instituto do "foro privilegiado" considerando-o uma desculpa para a impunidade de parlamentares corruptos.

Em entrevista à TV Record, principal concorrente da TV Globo e cujo dono, bispo Edir Macedo, apoiou Bolsonaro na corrida eleitoral, Flávio argumentou que "por ser filho do presidente" não deve "ter tratamento diferente".

Fontes do governo citadas anonimamente na imprensa admitem que o caso, mesmo envolvendo dois membros do clá Bolsonaro, Flávio e Michelle, que não fazem parte do executivo, causam desgaste ao presidente da República recentemente empossado.

Entre as brumas da memória


Ary dos Santos morreu num 18 de Janeiro

Posted: 18 Jan 2019 01:00 PM PST

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Marcelo no nosso labirinto

Posted: 18 Jan 2019 10:23 AM PST

Marcelo participa este mês na Jornada Mundial da Juventude com o Papa Francisco.

Baralhada me confesso: o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa vai a este evento religioso como jovem católico ou como presidente de Portugal?
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Em tempos de Gerigonça, também se formam Zingarelhos

Posted: 18 Jan 2019 06:30 AM PST

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Robôs e outras coisas que vale a pena discutir

Posted: 18 Jan 2019 03:08 AM PST

«Absorvido pelas agendas particulares que determinam a discussão pública, o país passa muitas vezes ao lado dos verdadeiros desafios do futuro próximo. Como o que um estudo da CIP põe em questão, ao alertar para a destruição de 1,1 milhões de postos de trabalho no curto prazo de uma década por força das mudanças em curso com a digitalização e robotização da economia.

Não é ficção científica, e mesmo que os mais cépticos tendam a encontrar alguma dose de exagero, os desafios com que a actual geração que trabalha ou a que se prepara para entrar no mercado laboral se confronta ameaça mudar radicalmente o mundo que conhecemos. Discutir as consequências dessa mudança nos empregos, na política, na geografia das cidades ou nas rotinas do quotidiano é uma obrigação.

PUB O impacte da robotização vai causar mudanças em todos os países desenvolvidos e se as perspectivas do estudo dirigido pela consultora McKinsey apontam para a destruição de mais de 20% dos postos de trabalho existentes, é porque Portugal continua sustentado num modelo de desenvolvimento que tolera vastas zonas de arcaísmo em que predominam os salários baixos. Muitos dos seus trabalhadores (uns 700 mil) poderão dispor de alternativas. Outros talvez não – porque o que se augura só em parte poderá ser uma destruição criativa. Muitas empresas e ofícios deixarão de fazer sentido.

É verdade que Portugal está mais bem preparado do que nunca para a quarta revolução industrial, como avisou o primeiro-ministro. Talvez – porque as exigências dessa revolução implicam uma noção de velocidade e de ruptura que tornam a era do vapor um idílico pôr-do-sol.

Mantendo as marcas da sociedade dual que o sociólogo Adérito Sedas Nunes detectou nos anos de 1960, com segmentos de produção científica e de organização empresarial do primeiro mundo com vastas camadas de população sem o ensino secundário a trabalhar em empresas ineficientes, Portugal vai sofrer um choque que ditará o seu próximo ciclo de desenvolvimento.

Entretidos com a próxima greve, o conflito politiqueiro ou com as indignações do dia das redes sociais, os portugueses estão a passar ao lado destas ameaças (e das suas oportunidades). Era bom que, para lá das medidas anunciadas pelo Governo, houvesse novas acções de formação, novos currículos escolares, mais estímulos à reconversão empresarial ou mais aposta na ciência.

Para lá chegarmos, porém, teremos de acreditar que no próximo ciclo político haverá oportunidade para discutir o país e não apenas a agenda da constelação de estrelas e de cometas que gravita em torno do Estado.»

Manuel Carvalho

Se todos querem que dê desgraça, assim será

  por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 19/01/2019)

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O desastre do ‘Brexit’ não estava escrito nas estrelas, é antes o resultado de uma meticulosa construção em que nada foi deixado ao acaso. Começou pela intriga partidária, Cameron queria arrumar o Partido Conservador e prometeu o que não tencionava cumprir, até que uma inopinada maioria eleitoral o obrigou ao referendo. Aí chegado, pediu à Comissão Europeia a facilidade de incumprir normas dos tratados para mostrar músculo contra os imigrantes europeus e levou o que queria. Armado de demagogia contra a ameaça da vinda de trabalhadores, chegou à noite da contagem dos votos confortado pelas sondagens, mas amanheceu derrotado. E foi então que a intriga se adensou.

VINGANÇA

Demitido Cameron, chegou May e a sua história conta-se em poucas palavras: foi a eleições para se reforçar e acabou minoritária e pendurada numa aliança com os unionistas irlandeses, e com um Labour renascido com Corbyn, um crítico das políticas liberais europeias que não lhe facilita a vida. A partir daí, foi uma penosa negociação em que a diplomacia britânica, tida como profissional, se afundou e descobriu que ninguém lhe dava a mão. May foi humilhada e despachada para fora da sala, ficando a saber o que é o bullying em versão bruxelense. A lição é esta: com a Suíça, com a Noruega, até com a Irlanda depois do seu referendo, com o Canadá, a negociação é para um acordo, com o Reino Unido é uma punição.

Há duas razões para a violência negocial das autoridades europeias. A mais óbvia é que, sendo o primeiro país a abandonar a União, e logo uma das maiores economias, não pode ficar a menor dúvida de que a penalização é tal que nenhum outro Estado se pode atrever a imitá-lo. Não é um vacina, é uma chacina. Os governos alemão e francês usam as suas listas de empresas que devem ser abordadas para retirar os centros de operações, há pressão sobre a finança porque a City é a presa mais cobiçada, é uma caçada. A segunda razão é de ordem geoestratégica. A Alemanha e a França sabem que o poder militar britânico, ainda hoje o mais importante na Europa, foi o que determinou o desfecho de guerras e arbitrou desse modo a política continental. A sua destituição histórica é uma vingança duradoura. Paris e Berlim entreveem no ‘Brexit’ uma oportunidade de realinhamento político e, a prazo, das capacidades militares, o que evidentemente revaloriza a França e lhe dá algum sentido no preciso momento em que se esvai a presidência Macron.

ALINHAMENTO

Para o Reino Unido, a gestão do caso por May, atarantada pela acidez europeia que não tinha antecipado, criou uma armadilha de que sairá sempre perdedora. Esmagada na votação dos Comuns, ela já não pode conduzir processo algum. Tornou-se especialista em perder tempo, como se o drama do calendário gerasse cedências de um lado e razoabilidade do outro, mas enganou-se em tudo. Chegou-se assim à pior das escolhas, aquela em que todos os caminhos são péssimos: ou uma renúncia à soberania britânica vergando-se à suprema vergonha de repetir um referendo por ordem externa, o que nenhum grande Estado europeu jamais aceitou, a começar pela França quando recusou em voto popular nada menos do que a Constituição Europeia, ou um ‘Brexit’ em modo de pânico.

O meticuloso trabalho de May e de Juncker, ou de Macron e de Merkel, deu portanto frutos. Quiseram o desastre e chegaram ao desastre. E tal desastre tem duas consequências quanto ao alinhamento de forças e de opiniões. A primeira é que nenhum país se atreverá doravante a usar o Artigo 50º. Mas isso levará quem quiser sair a uma única opção, tentar impor uma crise geral da UE. É aliás mais fácil chegar ao objetivo por essa via do que pela negociação ponderada. Não é difícil adivinhar os candidatos a essa operação, sobretudo depois das próximas eleições. A segunda é que para uma crise de dimensão europeia, ou até para alinhavar a resposta a uma recessão, este rolo compressor contra o Reino Unido provocou um confortável alinhamento dos euroentusiastas, mas perdem o distanciamento crítico de que necessitam para perceber a farsa que estão a montar. Ter um inimigo externo é tranquilizante. Mas é facto que o quadro orçamental plurianual devia estar aprovado antes de a extrema-direita marcar o Parlamento Europeu e que a União Bancária ia ser “completada”, que nada disso aconteceu nem vai acontecer. Pois é, um projeto falhado não sai do pântano puxando pelos seus próprios cabelos, ao contrário do barão de Munchausen.


Acabar com as propinas é para os ricos?

Foi muito desagradável e isto não se faz. Gente de boas famílias ficou chocada e não estava preparada para a ofensa. Por isso, como compreendo a indignação de tantas plumas que se atiraram ao atrevimento, até ao topete do Presidente e do Governo, quando estes, que deviam ter juízo, admitiram que, havendo défice de qualificações na pátria amada, até seria boa ideia acabar com as propinas no ensino superior para tentar não perder aquele terço dos estudantes que, concluindo o secundário, arruma os livros.

A surpresa foi de tal ordem que o PSD, magoado, mandou um vice conferenciar com a imprensa para desmascarar Marcelo, pecador que mudou de opinião em décadas, como é que um dos nossos, esperava-se melhor, ele até é professor e tal. É claro que nem toda a gente se ficou pelo espanto e houve quem exibisse o seu sentido de Estado resolvendo o problema de vez. Os mais serenos vieram lembrar os seus pergaminhos caritativos e insistir na esmola para as famílias coitadinhas, que os meninos prometedores sempre podem ter uma bolsa, há mesmo um em cada vinte que recebe um apoiozinho. Se lhes lembrar que uma família em que os pais têm o salário médio fica de fora dessa misericórdia universitária e pagará meses de ordenado pelas propinas dos filhos, os prudentes reformadores logo enfunarão pelas residências, a questão está nas residências, quartinhos é do que a mocidade precisa. É claro que nem lhes ocorre mexer um só dedo, muito menos um euro, pelas ditas cujas residências. Se não for residências seja um crédito, olhem que nos Estados Unidos é um mercado interessante para os bancos, os jovens a pagarem aos cinquenta anos a sua dívida universitária.

Mas o argumento mais saboroso é a pulsação de justiça social dos nossos propinistas. Eles querem que os ricos não levem o ensino de borla. Baixar as propinas é dar dinheiro aos ricos, dizem-nos, zangados. Claro que a conta é mais complicada e se, com a democracia, o ensino superior passou de 40 mil estudantes para quase 400 mil, a descrição desta multidão como “ricos” é estranha.

É ainda bizarra, porque sugere um critério que ninguém leva a sério: um custo (como as taxas “moderadoras” na saúde, ou as propinas) é imposto por forma a restringir a procura, e será que se pretende que haja menos ou mais estudantes no superior? Ou, se os estudantes devem financiar o ensino pós-obrigatório, porque é que não propuseram o secundário pago quando só a quarta classe era de lei? Nada no argumento dos propinistas faz sentido.

Por isso, foi preciso mobilizar algum diretor de jornal com pedigree e os comentadores de grande gabarito para a missa por alma das propinas, o que diz algo sobre a delicadeza da questão. Numa distinta coleção, os ex-ministros foram também convocados para explicar que, tendo aumentado as propinas de 6 euros para mais de mil, se indignam se alguém as quer reduzir, uma opinião que só pode ser reverenciada. Um deles, Crato, escreve seraficamente que a propina, que dispensa os pobres, mantém a qualidade do ensino.

O certo é que, até agora, tudo estava a correr bem. A Constituição fixara-se, depois de alguns ajustes, na garantia de que o ensino superior público é “tendencialmente gratuito”, o que é interpretado como a seta de Zenão, avançando sem nunca chegar ao alvo, ou, com alguma ginástica imaginativa neste imbróglio constitucional, até voltando para trás. Isto convinha a todos: aos reitores, que ficavam com carta branca para tropelias nas propinas de mestrados e doutoramentos, e ao ensino privado, que assim não era tão mais caro do que o público e manteria o seu mercado. Só não convém às famílias e a quem estuda. E, já agora, ao atraso português.

Por tudo isto, os propinistas fazem um serviço à ditosa pátria. Mostram a cor da política liberalizadora: os estudantes que paguem o ensino, pois é um mercado e não uma necessidade básica, e no meu tempo é que era bom, conhecíamo-nos pelo apelido.

The Old England e a Casa Africana

  por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/01/2019)

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Miguel Sousa Tavares

1 Quando eu era miúdo e precisava de roupa para o Natal ou festas de família, a minha mãe levava-me à Rua Augusta, em Lisboa. Ali, numa esquina, ficava o The Old England e, noutra esquina em frente, a Casa Africana: os dois únicos estabelecimentos que vendiam roupa feita para miúdos e adequada para tais circunstâncias. A saber: o primeiro vendia calças cinzento-claras e cinzento-escuras e blazers pretos e azuis-escuros e o segundo vendia calças cinzento-escuras e cinzento-claras e blazers azuis-escuros e pretos. É o que me faz lembrar o estado de absoluto impasse e de triste ridículo a que chegou o ‘Brexit’ inglês: The Old England, a imaginada velha Inglaterra Imperial, quis desafiar a Europa, que vê como uma Casa Africana, invadida de imigrantes por todos os lados, e o resultado é que descobriu que não tem nada de diferente nem de melhor para propor aos seus súbditos numa vida fora da Europa. Na melhor das hipóteses, venderá blazers pretos e azuis-escuros contra blazers azuis-escuros e pretos. Só que mais caros e provavelmente piores. Mas não é só a roupa que será pior e mais cara, obrigando os pobres ingleses a continuarem a fazer jus à sua fama de povo mais mal vestido do planeta. São os carros, também; e os electrodomésticos, os vinhos, a comida, tudo o que é importado. E os médicos, os enfermeiros, os engenheiros, os futebolistas, tudo o que é imigrante qualificado e não o canalizador polaco das anedotas. E, em contrapartida, perde um mercado comum de 600 milhões de consumidores para onde as suas empresas podem exportar sem pagar direitos alfandegários. Onde estás tu agora, Boris Johnson, onde estás tu agora, Nigel Farage?

Não sejamos ingratos nem esquecidos, porém. Essa velha Inglaterra que despreza a Europa é herdeira da mesma Inglaterra que por duas vezes no século XX veio em auxílio da Europa, garantindo-lhe o bem mais precioso: a liberdade e as soberanias nacionais contra as ditaduras expansionistas. E se é verdade que no pós-guerra a velha Inglaterra continuou a querer alimentar o sonho impossível do império onde o sol nunca se punha — (e que a perda do Raj indiano logo começou a desvanecer) — também é verdade que antes que a Europa lhe pudesse ocorrer como alternativa, o francês De Gaulle logo tratou de querer a Inglaterra fora da Comunidade Económica Europeia. Mas se alguma vez a Europa fosse subjugada por um povo, eu sentir-me-ia bem mais tranquilo se ele fosse inglês do que francês, alemão ou holandês ou os “bárbaros” do leste ou da Turquia. Até podemos achar ridículas algumas das sagradas tradições inglesas — medirem o comprimento em jardas, pés e polegadas, conduzirem à esquerda como se fossem todos canhotos, sentarem-se num Parlamento que parece uma paragem de autocarro atulhada, que nem sequer tem lugar para todos os deputados e onde a ema e o corvo (May e Corbyn) chispam diariamente e há meses um educado ódio frente a frente, com uma mesa a separá-los — mas, tudo visto e revisto, ainda não se inventou uma democracia mais sólida do que aquela.

E daí, precisamente, o impasse em que eles estão. Uma maioria de deputados que é contra o ‘Brexit’ está amarrada à vontade de uma maioria de votantes a favor do ‘Brexit’. E tenta cumprir essa vontade, buscando a quadratura do círculo, saindo sem sair, evitando o desastre que a vontade popular atiçada pelos demagogos desencadeou e a humilhação que, apesar de tudo, nunca imaginaram que a Europa lhes viesse a infligir. Pessoalmente, acredito que é mesmo uma questão de orgulho que trava o que seria a solução lógica de efectuar novo referendo. Trava todos menos Jeremy Corbyn, que é um trabalhista do tempo das minas de carvão e cuja exasperante estratégia de nunca dizer o que quer esconde uma profunda aversão à Europa, que vê como um entrave ao socialismo. Mas tirando Corbyn, todos os outros, Theresa May incluída, não se atrevem — por enquanto, pelo menos — a propor novo referendo porque isso seria reconhecer que se enganaram. Teriam de ir agora dizer aos eleitores que o melhor afinal é ficar na UE e, em caso de vitória do sim, regressariam a Bruxelas com a maior humilhação de toda a história do Reino Unido. Mas não deixa de ser impressionante pensar que foram sobretudo os velhos que votaram pelo “leave” e os novos que votaram pelo “remain” e que foi entre estes que a abstenção foi maior. E que, segundo as estatísticas, terão morrido entretanto 500 mil votantes do “leave” e terão acedido à idade de voto uns potenciais 300 mil apoiantes a mais do “remain”. Ou seja: é a geração mais velha, parte da qual já morreu, que condiciona o futuro da geração seguinte, contra a vontade desta.psd2



2 O problema do PSD é muito simples: não pode viver longe do poder. Tem uma imensa clientela, local e nacional, para quem a ideia de ficar oito anos afastado dos lugares de nomeação ou eleição política é simplesmente intolerável. E grande parte dela acha, como facilmente se compreende, que não será Rui Rio a levá-los de volta ao poder em Outubro próximo. Têm razão, na medida em que Rio tem o carisma de uma anémona, a clareza de um labirinto e o apelo de um andor.

Some-se a isso uma natureza autoritária e casmurra e é-lhes difícil ver como é que alguém incapaz de entusiasmar o partido poderá algum dia entusiasmar o país. Não têm razão, porque seja Rio, Montenegro ou qualquer outro, nenhum estará em condições de vencer António Costa em Outubro e o mais que conseguirá é evitar uma maioria absoluta do PS. Aliás, se a diferença se deveria fazer não pela forma mas pelo conteúdo, é forçoso reconhecer que Luís Montenegro nada acrescentou que se visse: limitar-se a recusar todo e qualquer pacto de regime com o PS não me parece que seja um programa de oposição muito popular para um eleitorado de centro. Mas a forma como Rui Rio enfrentou o desafio lançado por Luís Montenegro foi feia e característica: não às directas, não ao voto secreto, não à presença do desafiante no Conselho Nacional, não à marcação de uma hora que garantisse a presença de todos os conselheiros. E a forma como a discussão do voto se colocou é reveladora da coragem que abunda entre aquela gente: os que queriam votar a favor de Rio queriam a votação de braço no ar para desmascarar os outros e poderem vingar-se deles; estes, queriam a votação por voto secreto para poderem votar contra Rio sem sofrerem represálias, nomeadamente serem excluídos das próximas listas de deputados. É tudo gente de que o país precisa! Espingardas contadas e com a vitória garantida, Rio aceitou magnanimamente o voto secreto. Há quem se contente com vitórias assim...


3 Acusar três deputados de crime por terem aceitado um convite da Olivedesportos para irem a França ver um jogo da Selecção no Europeu de Futebol é ridículo. Acusá-los de um novo crime de falsificação de documento por alegadamente terem forjado a data do cheque com que demonstraram ter pago do seu bolso a viagem é uma insistência suspeita. Revelá-lo publicamente em relação a um deles, Luís Montenegro, no próprio dia em que este disputa a presidência do PSD, é descarado demais. E fazê-lo através da revista “Sábado” e de mais uma violação do anedótico segredo de justiça da investigação é absoluta falta de vergonha. Gostaria de ouvir o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público dizer o que pensa sobre este escandaloso conúbio entre alguns magistrados do MP e os órgãos de informação da Cofina, assente na continuada violação do segredo de justiça às claras. E gostaria que a senhora procuradora-geral da República, antes de anunciar mais um “rigoroso inquérito”, cujas conclusões jamais verão a luz do dia, extraísse já as conclusões que se impõem por si, perante um caso manifesto de abuso de poder e crime de violação de segredo de justiça. Eu sei que é esperar de mais, mas seria o mínimo que a simples decência exigiria.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia