Translate

sábado, 23 de março de 2019

Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 23/03/2019)

Pacheco Pereira

(Este texto do Pacheco podia bem ter sido escrito pelo Louçã ou pelo Jerónimo de Sousa... Pacheco zurze nos partidos do "arco da governação", e com razão. É a veia esquerdista do Pacheco a vir ao de cima, OCMLP revisitada no ano da graça de 2019?

Comentário da Estátua, 23/03/2019)


donativo

AJude a Estátua de Sal. Click aqui

A direita portuguesa anda outra vez em grandes manobras. Não é nada de novo. Por exemplo, Paulo Portas criou o PP na área do CDS, e o projecto político do Observador tinha (e tem) como objectivo dar expressão a uma direita alt-right à portuguesa. Mas hoje essas manobras fazem-se no contexto da revolução política que foi a existência de um governo que, pela primeira vez desde o 25 de Abril, junta o PS com o PCP e o BE e que criou um ponto sem retorno na vida política portuguesa. Se não tivermos ilusões sobre o que significam estas manobras, elas são bem-vindas, têm um efeito clarificador e beneficiam o debate político.

Comecemos pelo princípio: estas manobras têm como origem a “perda” do PSD por esta direita mais radical, uma orfandade de votos que o PSD trazia e que ela nunca conseguiu ter. Daí a forte nostalgia dos tempos da troika-Passos-Portas, cujo projecto e prática política foi o maior atentado ao carácter social-democrata do PSD e destruiu a identidade histórica do partido. Não sei se esta “perda” é consolidada ou temporária, suspeito, aliás, que possa ser conjuntural, mas, como já aconteceu no passado, é o PSD o alvo destas manobras e não o Governo da “geringonça”. Foi assim com o PP de Portas, filho do Independente, cujo objectivo era combater o “cavaquismo”, era esta a intenção do Observador, entre grupo de pressão contra o PSD social-democrata e órgão de defesa do “passismo” e do “ajustamento” da troika. Esta é a primeira ilusão que convém evitar: apesar da aparente fúria com o “socialismo” do Governo Costa, é o PSD de Rio o alvo.

A segunda coisa que convém evitar é aceitar como boa a análise que fazem do actual Governo como sendo uma espécie de governo comunista disfarçado. Um governo “esquerdíssimo” que tem um projecto ditatorial de poder. Isto não tem nenhum sentido, mas está escrito e é repetido em diferentes versões. Só que não é verdade e revela um dos grandes problemas desta direita: é que defronta um governo que em matéria de finanças e de economia mantém uma continuidade com as políticas da troika, em nome das “regras europeias”, com a obsessão do défice e boas notas das mesmas instituições que deram cobertura internacional ao Governo da troika-Passos-Portas. Mais do que um governo “esquerdíssimo”, é um governo do centro-esquerda no máximo. Com dificuldade em demarcar-se do Governo Costa no núcleo duro das finanças e mesmo na performance económica, a direita radical concentra-se nas “reversões”, sem ter a coragem de dizer que se for governo as “reverte” de novo (veja-se o caso dos passes dos transportes), ou numa “guerra cultural” que por si só justifica um tratamento à parte. Quanto à referência a um “projecto de poder” nas margens da ilegalidade é apenas uma constatação da ineficácia da oposição e, para além disso, irónico por parte de quem defendeu um governo que, mais do que nenhum outro nos anos recentes, violou reiteradamente a Constituição e punha em causa o Tribunal Constitucional.

A terceira coisa relevante nestas manobras, e talvez a mais perigosa para a democracia, é o namoro com o populismo. Pode ser instrumental, mas é namoro. O centro desse namoro é o habitual, a corrupção. Só que a análise da corrupção é ideologicamente motivada, ou seja, está cheia de silêncios, uns mais incomodados que outros, e é historicamente deturpada. É verdade que o PS tem uma história negra de corrupção e de uso do Estado para fins ilícitos, mas em muitos dos mecanismos de corrupção ela só foi possível pela participação do PSD e do CDS. Tratar o par Salgado-Sócrates como centro da corrupção nacional esconde demasiadas coisas. Uma delas é reduzir o BES ao banco do “socialismo” no poder, o que não é verdade. O BES foi o banco de toda a oligarquia política, durante muitos anos e não só do PS.

Quanto a Sócrates, estão cheios de razão, mas convém não esquecer que a maioria dos críticos actuais desse homem sinistro são-no depois de ele perder o poder e não antes. Eu sei muito bem o que era atacar a corrupção de Sócrates e dos seus, quando ele tinha poder e contava com a protecção de Passos e de Relvas envolvidos na luta contra Manuela Ferreira Leite, que consideravam “excessiva” contra Sócrates. E sei muito bem como, com raras excepções, a corte de Sócrates contava com muitos ardorosos apoiantes e financiadores das actuais manobras da direita.

Na verdade, a corrupção em Portugal sempre esteve centrada no acesso ao poder do PS e do PSD, com alguns restos vultuosos para o partido do “Jacinto Leite Capelo Rego”, e é um problema estrutural da nossa democracia que tem que ver – pareço concordar com os nossos antiestatistas – com o peso do Estado na economia. É verdade, mas o “pareço” é para acrescentar que uma parte considerável dessa corrupção tem que ver com os privados, a começar pela história ainda não escrita das privatizações e das PPP nos governos Sócrates e da troika-Passos-Portas.

É verdade também que partidos como o PS, o PSD e o CDS têm diferentes modos de lidar com a corrupção. O PS precisa do poder do Estado para fazer negócios e os outros partidos mantêm uma relação mais “orgânica” com os interesses. Daí uma maior exposição pública dos socialistas à corrupção que praticam com muita “fome”, enquanto nos salões da banca europeia, nos offshores e nas grandes sociedades de advogados as coisas se fazem com menos risco e mais protecções.

Estas manobras da direita portuguesa não são alheias às reconfigurações do espaço conservador europeu. A diferença principal destas manobras, com outras ocorridas na Europa, é a posição face à União Europeia, mas será interessante ver como se vão dar as fracturas. Suspeito que será com as questões dos refugiados e imigração. Mas este é um processo em curso e presumo que Steve Bannon estará atento aos críticos virulentos do “único governo comunista” da Europa. De facto, quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

Entre as brumas da memória


Mulheres da Nova Zelândia

Posted: 22 Mar 2019 12:33 PM PDT

.

Mia Couto

Posted: 22 Mar 2019 10:17 AM PDT

.

Jacinda Ardern

Posted: 22 Mar 2019 07:40 AM PDT

«Sexta-feira passada, um terrorista — australiano, supremacista branco, 28 anos — atacou duas mesquitas na Nova Zelândia, durante a oração principal da semana, emitindo em directo para o mundo. Cinquenta pessoas morreram.

Foi o ataque mais brutal alguma vez na Nova Zelândia. O país ficou em choque. Mas a Nova Zelândia tem uma primeira-ministra que fez a diferença no mundo. Jacinda Ardern disse que aquelas pessoas atacadas — os muçulmanos — eram “nós”. Foi abraçá-las. Disse que nunca diria o nome do terrorista, que tanto quis notoriedade que matou em directo. E antes de o ataque fazer uma semana, Jacinda Ardern anunciou que ia banir as armas semi-automáticas.

Jacinda é a mais jovem mulher chefe de governo do mundo, tem 38 anos. Filha de uma família da classe trabalhadora, e politicamente trabalhista, foi levada para a política pela tia. Estudou comunicação, foi voluntária numa sopa de pobres em Nova Iorque, viveu em Londres, fazia parte de um painel de 80 pessoas, espécie de orgão de consulta de Tony Blair. Nunca esteve cara a cara com o então líder britânico em Londres, mas questionou-o depois na Nova Zelândia sobre a invasão do Iraque.

No ano passado, Jacinda foi mãe enquanto primeiro ministro em funções e levou o bebé, com três meses, para a Assembleia Geral da ONU. Inédito, histórico.

Foi esta a mulher a quem, há uma semana, coube responder no momento em que o seu país viveu o mais brutal ataque de sempre. E foi esta a mulher que, na sua resposta, não só emocionou o seu país, e convenceu adversários políticos, mesmo, como emocionou o mundo e deu-lhe um espelho onde ver a diferença. O que a distingue de pesadelos como Trump.

Nos jornais estado unidenses sucedem-se os textos sobre como Jacinda Ardern, a líder daquele remoto país, está a mostrar à maior potência do mundo como lidar com tiroteios em massa, com licença de armas e a sua multiplicação, com ataques terroristas, com os autores dessse ataques e com as suas vítimas.

Mais, está a mostrar ao mundo como lidar com o racismo, e como o terrorismo pode vir de qualquer lado, está a vir do supremacismo branco, dos racistas que se sentiram tão encorajados por Trump, e nele votaram.

A Nova Zelândia é o antípoda para quem está na Europa ocidental. Mas Jacinda mostrou que a Nova Zelândia é um eixo do mundo, um centro para onde líderes políticos das ditas potências devem olhar, para aprender. Ela é, na verdade, o antípoda de Trump ou Bolsonaro, dos xenófobos na Hungria ou na Itália. E como precisamos de antípodas assim.»

Alexandra Lucas Coelho

Ouvir AQUI.

.

«Um tipo branco, normal»

Posted: 22 Mar 2019 04:22 AM PDT

«Desta vez, o assassino tem mesmo razão: o australiano que matou a tiro 50 pessoas numa mesquita neozelandesa — eu farei como Jacinda Arden, a PM da Nova Zelândia: se é notoriedade que ele quer, nem o nome dele aqui inscreverei! — apresentou-se como “simplesmente um tipo branco, normal, de uma família normal”, “etnonacionalista” e “fascista”. É o que ele é. Ao dizê-lo, foi muito mais sincero que a generalidade dos racistas e fascistas que por aí pululam mas que negam sê-lo.

Num documento de 74 páginas que publicou na Internet, o assassino desenvolve a velha cantilena racista da “Grande Substituição” e junta-se aos conspiracionistas que vêem “genocídio dos brancos” na imigração chegada ao Ocidente do muito Sul que ele próprio invadiu e colonizou há pelo menos 150 anos, e que explora ainda hoje. Para salvar “a Europa” — a Austrália, diz ele, “não é mais que um ramo da Europa” - é preciso “esmagar a imigração e deportar os invasores que vivem já na nossa terra”.

O pior de mais este massacre racista não é simplesmente, e tragicamente, as vidas que ceifou. O pior é que o caldo de cultura em que o assassino cresceu é o mesmo em que vivemos quase todos no Ocidente. Portugal incluído, não duvidem. Essa cultura não é somente, ou só especificamente, a islamofobia, o preconceito contra os muçulmanos. Ela é o racismo, um dos mais persistentes motores de preconceito da história social. Engana-se quem julga que ao nos concentrarmos no combate antirracista perdemos o norte do combate democrático: o racismo, ainda que sob a roupagem do culturalismo, é hoje o cimento que cola a ampla frente neofascista e antidemocrática que avança de um e outro lado do Atlântico.

Repetem-se os massacres, não cessa a violência praticada contra minorias políticas, étnicas e religiosas, ou de orientação sexual, ou contra as mulheres, contra todos aqueles que séculos de uma cultura racista, patriarcal e autoritária definiram como inimigos e/ou e inferiores. O guião dos dias seguintes é o de sempre: lamento institucional pelas mortes, condenação do perpetrador, insistência em o considerar como caso isolado, recusa de contextualizar o seu ato num caldo de cultura que o explica. O importante é negar que o perpetrador matou em nome de princípios, narrativas e mitos que são partilhados pela maioria.

Mas são. Esta violência é o resultado de uma cultura racista, agora mais islamofóbica do que já era, que segue o processo prototípico da construção social do desprezo, do medo e do ódio que a legitima: normalizar a tese de que o outro é inassimilável e, por isso, não merece viver connosco (presumindo que só podemos viver com quem se nos assemelha); desumanizar os membros das minorias, entendê-los como invasores; o que se descreve ser diferença entendida como uma ofensa ao nosso modo de vida (como se todos nós tivéssemos um modo único de vida); essencializar comportamentos e práticas culturais e sociais, imaginando um mundo em que cada um é portador de uma identidade aquirida e não construída, e a que se deve permanecer fiel (daí antirracistas, comunistas, feministas, homossexuais, entre muitos outros, serem descritos como traidores do Ocidente por negarem características centrais do que se acha ser essa identidade).

Ao contrário do que o discurso oficial sustenta, uma grande parte dos ocidentais acredita, em maior ou menor medida, em tudo isto. Resignou-se mal ao fim da dominação colonial, mas continua a naturalizar a desigualdade e a achar que a acumulação de riqueza no Norte do mundo é a demonstração da superioridade deste – da mesma forma que aceita ser o nível de riqueza individual, em cada sociedade, um índice de dignidade social e política. Desde 1945, desde Auschwitz, que prefere não assumir-se abertamente como racista ou partidário da supremacia branca, mas há 40 anos que denuncia o antirracismo, o antifascismo, o anticolonialismo, o feminismo e a laicidade como uma “ditadura cultural” da esquerda e do “politicamente correto”. Mais recentemente sentiu-se vingada com homens como Trump ou Bolsonaro – mas há muitos anos que muito do que estes dizem já o diziam Thatcher, Reagan, Berlusconi ou Bush Jr…

Como escreve Nesrine Malik, perante tamanha violência “é hora de chamar as coisas pelos nomes e não pedir desculpa por chamar racistas, oportunistas e pregadores de ódio àqueles que o são, por mais que se os acolham nas nossas publicações mais prestigiadas e que ocupem lugares de governo”.»

Manuel Loff

O grande editor do Mundo

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 23/03/2019)

Daniel Oliveira

donativo

AJude a Estátua de Sal. Click aqui

Delete... ignore... delete... delete... ignore...” Numa sala escura de Manila, dezenas de moderadores decidem que imagens, vídeos e textos denunciados por violarem as regras do Facebook devem ser apagados. Cada um vê 25 mil por dia, a maioria com origem na Europa e nos EUA. Enforcamentos, decapitações, pedofilia, mensagens de terroristas e ciberbullying, mas também cartoons de sátira política ou trabalhos de fotojornalistas.

Contratados pelo Facebook em regime de outsourcing, sem escrutínio público e mal pagos, sem formação e a léguas das referências culturais e políticas que lhes permitem decifrar as milhares de imagens que lhes passam pelos olhos, estes jovens filipinos decidem em segundos se a fotografia de um repórter de guerra ou um cartoon contra Trump cumprem as regras da aplicação. Sabem que um corpo nu é mais grave do que um apelo ao genocídio. O que significa que a foto icónica da guerra do Vietname é censurada, porque aparecem os genitais de uma menina nua a correr na estrada. Assim como um cartoon em que Erdogan está a sodomizar o símbolo do Twitter, porque a bestialidade não é permitida. Mas passam todos os apelos ao ódio, porque são só opiniões. “The Cleaners”, um extraordinário e opressivo documentário da PBS sobre estes censores industriais, é indispensável para perceber a perigosa fragilidade do monstro que deixámos criar.

A opção por deixar publicar primeiro para editar depois, oposta ao que acontece nos órgãos de comunicação social tradicionais, não se fez em nome da liberdade de expressão. Foi uma escolha empresarial a que a dimensão destas aplicações obrigou. Uma escolha que explica como foi possível o assassino de Christchurch transmitir o seu crime em direto, durante 17 minutos. Quem abriu as comportas não pode salvar as vítimas da inundação. Mesmo que o quisesse fazer, não haveria cleaners que chegassem para a lixeira que diariamente se amontoa nas redes. Em Myanmar, onde o Facebook é a única forma de aceder à internet, tem servido para dizimar a minoria rohingya. Mas a empresa de Mark Zuckerberg faz escolhas. Em países livres, o algoritmo do ódio favorece o discurso polarizado, ajudando Trump, Bolsonaro ou Le Pen a rebentarem com os consensos de que depende a democracia. Mas as balelas otimistas sobre a liberdade de expressão evaporam-se quando a Turquia impõe condições para a empresa aceder aos seus milhões de clientes. Aí, o Facebook e a Google bloqueiam, a pedido, mensagens subversivas. Implacável com a democracia, dócil com a tirania.

Ao contrário do que diz Miguel Sousa Tavares no texto da semana passada, a questão não é como a elite sobreviverá ao povo à solta. Isso é como os populistas querem apresentar as coisas. O debate não é sobre o excesso de poder do povo, que nunca foi tão ilusório. É sobre a substituição de estruturas de intermediação minimamente escrutináveis pela empresa com mais poder que a história já conheceu. É sobre outro Murdoch, mas a multiplicar por milhões. É sobre o dilema da modernidade: como sobreviverá a humanidade ao que supera as suas capacidades de controlo? Sejam monstros financeiros demasiado grandes para cair sejam empresas que controlam os principais instrumentos de comunicação. A questão não é como travar a luta de classes, é como compartimentar, reduzir, mediar e até desglobalizar algumas coisas. Soa perigoso para a democracia? Vejam em “The Cleaners” o que é perigoso para a democracia.

Orient Express

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/03/2019)

donativo

AJude a Estátua de Sal. Click aqui

1 Dubai, 2h30 da manhã, hora local. Acabado de chegar de Lisboa, janto uma club sandwich no terraço do hotel, com uma vista frontal para a Burj’ Khalifa, o tal edifício habitacional mais alto do mundo. É uma notícia falsa, um recorde sem sentido: os últimos vinte ou trinta andares da torre não devem ter mais de 20 metros quadrados, e acima deles, um longo estilete, o suficiente para atingir a altura que satisfaça a ambição guinnessiana do califa. Uma longa, impressionante e lindíssima fileira de arranha-céus ilumina o horizonte em frente ao terraço do hotel, separada deste por um lago artificial, como quase tudo o resto nesta cidade-estado. Um mar de luzes reflectidas na água, Manhattan sobre a areia. O homem delira, um exército de escravos asiáticos, como os que outrora ergueram as pirâmides dos faraós, constrói, a obra nasce. Mas é preciso ver para crer.

Nove da manhã: há qualquer coisa do mundo do Tintim aqui neste país meio delirante. E há sempre qualquer coisa de Oliveira da Figueira em cada português em tais lugares: começando em 250 euros por hora, acabo a contratar por 100 euros um dia inteiro (seis horas, a terminar no aeroporto), o serviço de um táxi para me mostrar o Dubai. Ao pequeno-almoço, empregados filipinos; ao volante do táxi, um paquistanês; nas obras (e há obras por todos os lados) indianos e negros de várias Áfricas. A cidade é um delírio de arquitectura, por vezes irracional, por vezes deslumbrante. Desafiando as leis da física, os edifícios têm formas de aves, de aviões, de naves espaciais, de navios, de arcos torcidos ou retorcidos, de harpas ou violinos. Canteiros de flores enxameiam todos os passeios e todos os cantos das largas avenidas, a sinalização bilingue é impecável, os semáforos são de uma absoluta eficácia, não há um buraco nem o mínimo desnível no alcatrão. E não há um papel no chão. Será a cidade perfeita? Enfim, há um souk, na parte velha da cidade, encostada ao rio, onde desembarcam os turistas nas imitações dos antigos dhows. Numa loja de irmãos afegãos comprei um carregamento de chás, açafrão e caril, cheirando sumptuosamente e que haveriam de durar para um ano inteiro não me viesse a esquecer deles no táxi, no aeroporto. Mas, graças a uma recomendação de um português aqui residente, vou almoçar a um restaurante local, com turistas, é certo, mas verdadeira comida árabe, num pátio sob uma parreira... de falsas videiras (há milagres que nem o dinheiro consegue). Comi um fabuloso arroz com borrego e pimentos, que me fez lembrar o plov, o prato tradicional do Azerbaijão, uma das minhas comidas preferidas entre todas as que já provei por aí. Breve visita ao museu da cidade — que não tem nada para mostrar senão tendas, que era o que aqui havia dantes — e apanho um voo nocturno para Hong Kong.

2 Seis da manhã em Hong Kong. Ainda não há jet-foil para Macau e tenho de apanhar um autocarro atravessando a maior ponte do mundo: Hong Kong-Macau, 46 quilómetros, dos quais 14 em túnel submerso, mas só transitável por transportes públicos ou veículos com autorização especial. Ou seja: vazia. Aqui, o dinheiro, simplesmente, não é problema. O Governo de Macau tem um superavit anual de 60 mil milhões de euros, que, por ora, deixa ficar na chamada Região Administrativa Especial. Cerca de 95% da receita vem do jogo, das quatro majors americanas que vieram de Las Vegas para aqui (onde facturam três vezes mais, explorando até ao tutano o demencial vício de jogo dos chineses). As receitas do jogo são taxadas entre 35 e 45% e, em contrapartida, os residentes de Macau têm uma vida fiscal de sonho: 12% é o máximo de IRC para as empresas e 8% o máximo de IRS para as pessoas singulares; IVA não existe e todos os anos os residentes em Macau recebem, cada um e por igual, um cheque de 1000 euros do Governo — uma espécie de presente de Natal. Além disso (os portugueses que o digam), existe a Fundação Macau — que financia ou comparticipa de todas as actividades das organizações civis, como o Festival Literário de Macau ou o Grande Prémio de Macau, e é responsável por manter activos três jornais diários, uma rádio e uma televisão em língua portuguesa para uma colónia de cinco a seis mil falantes de português. São, no total, cerca de 80 jornalistas portugueses, com uma qualidade verdadeiramente surpreendente, muito acima do que por cá se vê habitualmente, e gozando de uma liberdade para criticar o Governo como, segundo eles, nunca tiveram nos tempos do último governo português, de Rocha Vieira, quando os telefonemas e os recados do “palácio” para as redacções eram prática estabelecida. Estamos sempre a aprender com os chineses, até o que não se esperava...

Dantes, estes dois mundos seriam conciliáveis, agora já não. Destinados a expandir-se, os chineses vão engolir-nos

Do velho Macau português, passado de mãos há vinte anos, resta tudo o que não foi engolido por uma construção galopante, parte da qual em terrenos arrancados à água, como a nova ilha de Cotai, entre Coloane e Taipa, onde se erguem os monstruosos edifícios dos casinos, como o assustador Galaxy, que parece obra de Donald Trump. Mas também, esmagado entre os demais, o deslumbrante novo hotel Morphews, obra póstuma da iraquiana Zaha Hadid. Dos 12 quilómetros quadrados do tempo dos portugueses, Macau vai hoje em 36 quilómetros quadrados!

No restaurado Clube Militar, os portugueses, em particular os 150 advogados lusos que aqui proliferam, encontram-se todos os dias ao almoço para comer o inevitável bacalhau ou a carne de porco à alentejana, assim como aos domingos vão ao Miramar comer o cosido ou ao Fernando comer sardinhas. Não temos emenda e felizmente: são os sinais do império ou o que lhes queiram chamar. É a nossa maneira de estar e ter estado no mundo: fomos, mas levámos os sinais de casa connosco. E por lá ficaram, mais as igrejas, as casas e os filhos que fizemos. E isso nos distingue dos outros e nos faz lembrados.

3 A fachada de mar podia parecer Manhattan, se Manhattan fosse imitável, que não é. As traseiras podiam parecer as traseiras de Copacabana, se se ouvisse o mar e a alegria, mas não se ouve. Hong Kong talvez seja um misto de Copacabana dos ricos com Manhattan dos pobres, mas o mar não é mar, é um esgoto de rio desaguando num oceano tão poluído que nem as gaivotas aqui se avistam. Entalado entre as montanhas e a água, o arquipélago escala os céus em edifícios literalmente encostados uns aos outros, tentando abrigar os milhões de desaguantes desta florescente praça financeira do Oriente. Mas, mesmo assim, não chega: no mítico “South China Morning Post” (nós deixamos igrejas e comidas, os ingleses deixaram a tradição de um grande jornalismo), leio que o governo desta outra Região Administrativa Especial vai lançar mãos do projecto “Lantau Tomorrow Vision”: “reclamar” ao mar, como eles dizem — isto é, aterrar — mais mil hectares de terra, para erguer do nada uma nova ilha onde construirão 260 mil apartamentos para um milhão de pessoas, na sua maioria funcionários públicos. Custo: 64 mil milhões de euros, cerca de metade das reservas actuais de Hong Kong. Enquanto isso não acontece, Hong Kong, como Macau, mantém-se com a maior densidade populacional do mundo. Vista de cima, de um 17º andar, a cidade é um formigueiro que circula sem parar em todas as direcções, como o inferno deve ser. Vista ao nível da rua, é uma demência que assusta: dez em cada dez chineses, parados ou em andamento, estão agarrados ao telemóvel — é uma extensão do corpo, da cabeça, do espírito deles. Muitos são chineses do continente que vêm ver como vivem os primos ricos de Hong Kong. Distinguem-se destes por evidentes sinais exteriores: elas, sobretudo, porque já não concorrem com a família real inglesa e com a família Aveiro, da Madeira, para o 1º lugar entre as mulheres mais mal vestidas do mundo. Há também muitos ocidentais, leftovers de Sua Majestade Britânica, ou recém-chegados, farejando o big, big money, impecáveis nos seus fatos escuros Armani. Mas a todo o tempo se cruzam dois mundos, que se diria inconciliáveis, mas que, à boa maneira chinesa, não são: acima da Queen’s Road, com as suas luxuosas lojas de marcas da Europa e de Nova Iorque, a estreita Stanley Street desemboca num mercado chinês de frutas e verduras ao ar livre, onde, sentados em toscas mesas, pequenos grupos comem o porco frito, o pato espalmado e assado e as inevitáveis sopas em tigelas. E um velho coolie, dobrado como um arco pelos anos e pelo peso da carroça que empurra ladeira acima, desemboca na esquina de Stanley Street e detém-se para deixar passar um Rolls Royce de vidros fumados com um jovem chinês ao volante: “um país, dois sistemas”.

4 Esta sexta-feira, estarei a sobrevoar a Ásia toda, o trajecto da Rota da Seda, através do qual Xi Jinping sonha conquistar o mundo. Depois, sobrevoarei a Itália, cujos portos, Génova e Trieste, ele vai comprar ao Governo de extrema-direita italiano, fechando assim o seu projecto e garantindo uma porta de entrada essencial na Europa. A vingança sobre Marco Polo. Vou sentir-me a fugir. A fugir de um sufoco, a fugir para onde está o meu mundo: o da luz, do espaço, do silêncio. Onde está o Mediterrâneo. Sinto-me a fugir, mas sei que é inútil: eles vêm aí.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Um desacordo sobre as reformas

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 22/03/2019)

O recente relatório da OCDE sobre as pensões, amplamente divulgado pela imprensa, tem uma constatação correta e sugestões que, genericamente, confirmam a total falta de imaginação daquela organização.

donativo

AJude a Estátua de Sal. Click aqui

A constatação correta é que, em Portugal, quem se reforma antecipadamente (retirando os regimes específicos entretanto criados, como o que diz respeito às longas carreiras contributivas) tem penalizações excessivas. Um exemplo utilizado pela OCDE é o do trabalhador que, em Portugal, se reforme um ano antes da idade normal de acesso à pensão (66 anos e cinco meses em 2019) e que, não estando naqueles regimes especiais, sofrerá um corte permanente no valor da sua pensão de 36,2%. É o maior corte de todos os países da OCDE. O país que se segue a Portugal é a Alemanha e o corte é de quase umterço: 12,8%.

As recomendações da organização não deixam, contudo, de surpreender. Critica, e bem, o corte de sustentabilidade que retira 14,8% a todas as pensões antecipadas, mas depois propõe, de uma penada: i) que se aumente todos os anos a idade de acesso às pensões antecipadas (60 é demasiado cedo, dizem); ii) que se aumente a penalização mensal (atualmente, 0,5% por cada mês que falta até atingir a idade legal de reforma); iii) que se acabe com os regimes que reconhecem o desgaste rápido (regimes onde estão, por exemplo, os mineiros, os trabalhadores das pedreiras ou os bailarinos), com o argumento, absolutamente cruel e de uma arrogância ilimitada de que estes trabalhadores podem receber formação e arranjar outros empregos; iv) que se elimine a possibilidade de acesso à pensão antecipada por parte dos desempregados de longa duração (sem sequer perceberem que essa medida é uma resposta essencial para quem “é demasiado velho para conseguir encontrar emprego e demasiado novo para poder reformar-se” no regime geral, para usar uma expressão comum que todos já ouvimos. Ou seja, a receita da OCDE é a mesma de sempre: punir quem depende do seu salário e da sua pensão e obrigar as pessoas a trabalharam mais anos, como se estivesse aí o busílis da “sustentabilidade do sistema”.

Não está. E esta visão já a conhecemos. Ao longo de décadas, o pretexto da “sustentabilidade” foi utilizado pela direita política para aplicar cortes nas pensões, simulando que os problemas que se colocaram ao equilíbrio da segurança social se deviam aos valores das pensões (que aliás, em Portugal, continuam a ser, na sua maioria, extremamente baixos) e não a outros fatores com grande impacto nesse equilíbrio, como o desemprego (que significa menos contribuições e mais encargos), a precariedade e a informalização do trabalho (que coloca as pessoas fora do contrato, da proteção social e da contribuição para o sistema) ou a emigração (que levou, no período da austeridade, centenas de milhares de pessoas – e de potencial criativo e de produção de riqueza – para fora do país).

Como se provou nos últimos três anos, o que inverteu esse caminho de desequilíbrio e tem vindo a assegurar a sustentabilidade da segurança social (com um aumento, nos últimos dois anos, de cerca de 800 milhões por ano na receita contributiva da segurança social e o fim da necessidade de transferir qualquer dinheiro do Orçamento de Estado para o sistema previdencial) foi a recuperação de rendimentos (na qual se inclui o aumento as pensões), a criação de emprego e o tímido aumento de salários (maior no salário mínimo, muitíssimo tímido nos outros salários, mas ainda assim aumento).

Os partidos da “geringonça”, que têm perspetivas tão diferentes sobre a segurança social e as pensões, conseguiram acordo para dar alguns passos positivos e importantes: aumento anual do valor das pensões, aumento extraordinário de 10 euros, um novo regime para permitir que os trabalhadores com muito longas carreiras tenham acesso à reforma sem qualquer penalização (desde que tenham 46 anos de descontos e tenham começado a descontar antes dos 16), o reconhecimento do desgaste rápido para os trabalhadores das lavarias das minas e das pedreiras, ou o fim do fator de sustentabilidade para os trabalhadores que, aos 60 anos de idade, tenham pelo menos 40 de descontos. Tudo, felizmente, ao contrário do que propõe a OCDE.

Mas continuamos a ter pensões maioritariamente baixas, horários de trabalho excessivamente longos, salários que não permitem viver com qualidade de vida e penalizações injustificadas nas pensões, como o corte do fator de sustentabilidade, que é uma dupla penalização injustificada, na medida em que, ao contrário do momento em que foi criado, hoje a idade de reforma não é fixa, e por isso essa penalização soma-se a outras duas – o aumento anual da idade da reforma e o corte de 0,5% ao mês para as pensões antecipadas – e não tem qualquer fundamento nem sentido de justiça

Existem para além destas questões, outros grandes debates que é preciso fazer – e eles têm oposto a Esquerda e o Partido Socialista.

Um deles, fundamental, é o de saber o que fazemos com o aumento da produtividade, da capacidade de produzir riqueza, com a mais valia trazida pela inovação tecnológica, com o aumento da esperança média de vida. Faz sentido, mais de um século depois da luta pelas 40 horas de trabalho, termos ainda tanta gente a trabalhar muito mais do que 40 horas por semana, e durante cada vez mais anos? As inovações tecnológicas das últimas décadas e a capacidade de produzir mais riqueza com menos trabalho humano deveriam ter como consequência a redução do horário de trabalho e a distribuição do emprego, e não pôr-nos a trabalhar mais. Ora, a redução do tempo de trabalho faz-se por três vias – e todas elas têm sido recusadas pelo PS. Faz-se pela redução semanal do tempo de trabalho – é a luta concreta pelas 35 horas, também no privado. Faz-se pela redução anual do tempo de trabalho – é a luta, por exemplo, pela devolução dos 3 dias de férias que o PSD e o CDS suprimiram da lei laboral, e que o PS se recusa a repor. Faz-se pela redução do tempo de trabalho no tempo da vida – ou seja, por um debate sobre a idade da reforma, que não deve aumentar contínua e indefinidamente como tem acontecido.

De facto, aumentar todos os anos a idade da reforma, e fazer associar pesadas penalizações a quem se queira reformar depois de décadas de trabalho, é uma forma de prolongar o tempo de trabalho, transformando o aumento da esperança média de vida numa condenação e não numa boa notícia, que nos permitira ter mais tempo para viver – e de preferência com qualidade de vida.

Para termos um caminho alternativo, é certo, há que pensar se as fontes de financiamento da Segurança Social não deveriam ser diversificadas e se, por exemplo, empresas com poucos trabalhadores mas elevados lucros (entre outras razões, fruto da robotização do trabalho) não deveriam contribuir mais para a segurança social, em função precisamente do valor acrescentado líquido que têm. Mas infelizmente, no que a estes debates diz respeito, os contributos da OCDE são nulos e o Governo tem primado pela falta de disponibilidade e de coragem.

Em suma: temos muito caminho para trilhar. Mas o que precisamos de fazer está nos antípodas do inferno que nos propõe a OCDE. Agora como antes, não é boa ideia traçar como futuro um passado que já conhecemos demasiado bem.