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sábado, 20 de abril de 2019

Entre as brumas da memória


Assim vamos…

Posted: 19 Apr 2019 09:56 AM PDT

Este ser é o responsável geral do Partido Cidadania e Democracia Cristã e dizem-me que integra a lista de candidatos às Europeias pela coligação «Basta» (que queria ser «Chega»).

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Desculpem lá, mas hoje é o dia

Posted: 19 Apr 2019 06:05 AM PDT

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Afinal, onde estava esta extrema-direita de hoje?

Posted: 19 Apr 2019 03:17 AM PDT

«Ainda há poucos anos, sobre o avanço visível da extrema-direita por toda a Europa e as Américas (e Israel, claro), dizia-se que era coisa passageira de que era melhor não falar para não lhes dar importância. Achava-se que eram movimentos muito minoritários, raramente elegiam deputados e, quando o faziam, eram perfeitamente prescindíveis na constituição de maiorias de governo apesar de, já então, irem contaminando o discurso das direitas clássicas e marcando a agenda dos media. Depois de terem aproveitado a onda anticomunista do final do século XX para ocupar um espaço enorme no mapa político da Europa centro-oriental, transformaram o fim dos regimes que se reivindicavam comunistas numa oportunidade histórica para fazer uma crítica demolidora da democracia mais ou menos redistributiva para a qual o Ocidente capitalista fora obrigado a evoluir com o triunfo do antifascismo em 1945 e do movimento descolonizador ao longo dos vinte anos seguintes, ambos abrindo caminho à emancipação (sempre incompleta e ameaçada) das mulheres e das minorias étnicas e de orientação sexual. Os neofascistas do final do séc. XX e os racistas disfarçados de culturalistas (como se o problema para eles não estivesse na “raça” mas na “incompatibilidade cultural”) nunca estiveram sozinhos: a onda neoconservadora de Thatcher, Reagan e Kohl partilhava com eles a mesma leitura horrorizada do avanço das ideias socialistas na universalização da educação, da saúde e da segurança social pública que faziam social o chamado Estado de Bem Estar. Como a extrema-direita, também Thatcher achava que a desigualdade de classes, ou o próprio conceito de sociedade, eram puras mistificações marxistas; para ela, para Reagan e para a extrema-direita, o que havia era a Nação e os seus inimigos internos (nome que Thatcher deu aos mineiros da longa greve de 1984-85), era o Ocidente com o dever histórico de recuperar a sua supremacia. Sobre a Grã-Bretanha desses anos fazia-se a mesma pergunta que recentemente se fazia sobre Portugal e Espanha: porque razão não tinha ela uma forte Frente Nacional como a França? A resposta era simples (e é a mesma que deve ser dada sobre os casos ibéricos): porque ela estava dentro da direita tradicional, era thatcherista. Enquanto a enésima crise financeira do capitalismo internacional não desvertebrou os sistemas de representação do Ocidente, a extrema-direita não achou ser útil autonomizar-se. Quando o fez, de onde saíram todos os seus dirigentes? Dos partidos da direita tradicional – deixando lá dentro, como se vê bem, muitos aliados potenciais com os quais partilham ideias e políticas.

Salvo raras exceções, esta é a origem das direitas radicais dos últimos 25 anos: verificando que o estado de crise e guerra permanente em que o Ocidente passou a viver propicia um regresso a uma cosmovisão de medo do outro e de medo da perda, elas, que se haviam mantido ativas contra todas as mudanças do pós-1945 (direitos cívicos e sociais, descolonização, feminismo), acolhidas sempre no interior dos partidos das direitas de governo em todo o Ocidente, preferiram autonomizar-se e, a partir de fora, marcar o passo dos seus antigos correligionários. Desde Berlusconi, em 1994, até Trump e Bolsonaro, as direitas clássicas não hesitaram nos últimos 25 anos em se coligar com elas. E sempre que disseram que o não queriam fazer, roubaram-lhes o discurso – isto é, radicalizaram-se. Nos anos 30, a isto chamou-se outra coisa: fascizaram-se.

É o que está a suceder em Espanha: perdido na miríade de movimentos neofranquistas que sempre existiram desde a morte de Franco, o Vox, criado por dissidentes do PP, com forte presença de militares e de polícias (modelo que o Chega quer imitar em Portugal), passou de coisa pateticamente minúscula (0,2% nas eleições de 2016) a aliado de governo do PP e dos Ciudadanos na maior região de Espanha, a Andaluzia. Com as sondagens a darem-lhe agora mais de 10% dos votos, a direita clássica só com ele regressará ao poder. Para facilitar, fala como eles. Se o Vox quer acabar com as políticas de luta contra a violência de género “porque são discriminatórias”, o PP quer revogar o aborto. Para regressar a 1936 e ouvir a retórica nauseabunda da “Espanha partida” ou da equiparação dos presos políticos catalães a “terroristas”, não é preciso ouvir um neofascista do Vox: basta ouvir o PP ou os Ciudadanos.

A pergunta ingénua de porque não havia uma extrema-direita organizada em Portugal e em Espanha passou a ter a resposta óbvia. E sinistra.»

Manuel Loff

(Sem link, recebido por mail.)

Construir uma catedral

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 19/04/2019)

Notre-Dame

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Em 1985, na Kunsthalle de Basileia, enquanto este santuário da arte contemporânea expunha as obras do artista italiano Enzo Cucchi, teve lugar um encontro entre quatro figuras importantes da história da arte na segunda metade do século XX: Joseph Beuys, Anselm Kiefer, Enzo Cucchi e Jannis Kounellis. A discussão, conduzida pelo director do Kunsthalle, Jean-Christophe Ammann, resultou num livro em edição alemã e italiana (Ein Gespräch/ Una discussione).

A certa altura da discussão, Beuys incita à acção artística contra um inimigo, o materialismo (tanto sob a forma do capitalismo ocidental como sob a forma do capitalismo de Estado e do centralismo comunista do Leste europeu), que “reduziu o tamanho do ser humano em relação às suas possibilidades”.

A sua ideia é que a arte pode “recriar o ser humano na sua totalidade”. E, logo a seguir, prosseguindo a sua ideia da arte como grandioso empreendimento (mesmo quando é feita por todos), capaz de contrariar a redução do mundo e resgatar a consciência humana a essa redução, faz uma intempestiva injunção: “Devemos construir uma catedral”.

A catedral de Colónia tinha sido evocada pouco antes por Kounellis, que tinha dito que ela “remete para uma centralidade, engloba uma cultura e indica o futuro”. Mas não é uma catedral como a de Colónia que Beuys quer construir. Essa, diz ele, “é uma má escultura, daria uma boa estação de comboios. A de Chartres é melhor”.

E mais à frente, depois de ouvir as palavras mais prudentes de Kounellis (“Para construir uma catedral, é necessário um método e um conhecimento do passado”), reafirma a sua disposição: “Nós não estamos aqui reunidos para melhorar as nossa relações. Estamos aqui para construir uma catedral”, isto é, para retirar a arte da periferia e da não existência para onde ela foi empurrada “pelo sistema económico dominante”.

Podemos comentar estas afirmações, lembrando que muitos poetas modernos e romancistas, assim como artistas, embora conscientes, tal como Joseph Beuys, de que a cultura actual não pode ser marcada pelas catedrais góticas, recorreram ao símbolo da catedral e investiram nele uma enorme significação. Generalizando com algum cuidado, digamos que a catedral simboliza as aspirações culturais colectivas da Europa pré-moderna, mas também consagra a esperança de recuperar através da arte uma cultura perdida.

Muito em especial, foi esta a mensagem de Victor Hugo quando, na sua megalomania (Baudelaire disse uma vez que Victor Hugo era aquele que tinha a presunção de se tomar por Victor Hugo), afirmou que a sua obra, Notre Dame de Paris, esse colosso, tinha um poder destrutivo: “O livro vai matar o edifício”. Isto é: a catedral gótica seria reduzida à insignificância pelo monumento literário.

Balzac, por sua vez, comparou o trabalho de sua vida, a Comédie humaine, à catedral de Bruges. E Julia Kristeva, escrevendo sobre Proust, disse que o autor da Recherche perseguiu incessantemente o mesmo objectivo, de acordo com um programa que pode ser resumido nestes termos: “Se eu estiver à altura de penetrar nas memórias do tempo perdido, irei erigir uma nova catedral “

Voltemos à discussão no Kunsthalle de Basileia, para verificar que há uma diferença entre o projecto artístico de construir uma catedral, tal como Beuys e Kounellis o reivindicam, e o projecto literário de Proust. Afirma Kounellis quase no final de sua discussão com Beuys, Kiefer e Cucchi: “A construção da catedral é a construção de uma linguagem visível”. Nestas palavras, é o mundo “visível” que surge sublinhado.

Quanto a Victor Hugo e Balzac, ambos sentiram que a missão de criar uma comunidade cultural, literária, tinha-se deslocado da função ritual do culto para a leitura do romance de grande circulação. E enquanto Proust acreditava que o poder da memória individual era a base para construir o seu monumento literário, Kounellis pensa — e di-lo explicitamente — que “a construção de uma catedral é a construção da linguagem visível”.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Trabalhar até aos 80 anos, ou o conto do vigário

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 19/04/2019)

Mais uma "cavacada"

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Houve quem notasse que o recente estudo sobre a Segurança Social, patrocinado pela Fundação Manuel dos Santos, tem um mensageiro que é o retrato do problema: a Jerónimo Martins é campeã de salários baixos (exceto ao seu presidente, que em cada mês ganha dez anos de salário médio da empresa), mas o relatório regista o risco de falta de receitas contributivas no futuro. Notar essa contradição não basta, no entanto, para tratar do problema, pois há mesmo um problema. Como todos os estudos verificam, há um risco demográfico: se as migrações não compensarem a redução da natalidade, e era necessário que o fizessem, o aumento da esperança média de vida vai alterando o equilíbrio geracional que ainda permite superavit na Segurança Social portuguesa.

Há um problema, mas as soluções podem ir por caminhos diferentes. Assim, os autores do estudo não podem ficar ofendidos por ser notado que as suas soluções, aumentar a idade da reforma para os 69 anos, baixar o valor das pensões ou entregar parte do pecúlio aos fundos privados, segundo o modelo sueco, seguem a cartilha liberal: ou se trabalha mais, ou se recebe menos, ou se joga a pensão no casino. E isto só tem dado maus resultados. Entretanto, Cavaco Silva veio radicalizar uma destas ideias, sugerindo que se poderia chegar no futuro a trabalhar até aos 80 anos. O curioso é que este gosto pelo abismo está a ser apresentado como uma “reforma da segurança social”, excluindo aliás a alternativa óbvia que seria determinar novas formas de financiamento.

ATÉ AOS 80 ANOS, DISSE?

Depois da revolução industrial do início do século XIX trabalhava-se nos países europeus desde os seis ou oito anos, durante dez a 14 horas por dia e até morrer. Em 1870 continuava-se a trabalhar até morrer mas com limite de horário: em França um trabalhador faria 3430 horas por ano, na Bélgica 3754, em Itália 3290. No início do nosso século, no ano 2000, em França já só se trabalhava 1644 horas, em Itália 1840 e na Bélgica 1770. No nosso tempo o horário de trabalho reduziu-se para metade, não se começa a trabalhar antes dos 16 anos e há direito à pensão de velhice. Ou seja, acompanhamos o aumento da esperança de vida reduzindo o tempo de trabalho, mesmo que haja desigualdades nesse processo: trabalhamos hoje em Portugal em média 1722 horas por ano mas na Alemanha ficam-se pelos 1356. Em todo o caso, por toda a Europa reduzimos o peso do trabalho, entrando mais tarde e reformando-nos antes de morrermos, e diminuindo o horário enquanto somos ativos.

A introdução da idade da reforma foi também uma das formas de limitar o tempo total de trabalho. É verdade que, quando foi estabelecida a regra dos 65 anos, era na presunção cínica de que pouca gente viveria depois dessa idade. Mas criou-se um direito que foi ampliado pelo sucesso do prolongamento da esperança média de vida.

A ideia espantosa de aumentar a idade da reforma para os 69 ou para os 80 anos procura reverter essa conquista civilizacional e impor o reconhecimento de que devemos trabalhar mais para viver menos tempo com uma pensão menor.

A BOLSA OU A VIDA

Ora, para empreender esta cruzada contra o progresso civilizacional é preciso algo mais do que topete, é necessário um interesse forte. Aumentar o tempo de trabalho e reduzir os salários reais, usando uma mistura de medidas de congelamento salarial (dez anos na função pública em Portugal), de redução do pagamento por horas extraordinárias e férias, de aumento dos ritmos de trabalho e de uberização e precarização, tornaram-se o mantra da gestão moderna. Esse é o interesse das empresas na gestão da produção. Mas há ainda outro interesse nesta luta civilizacional e é maior.

Esqueçam então a idade da reforma, aumentará em doses discretas para não perturbar as eleições, partindo aliás de normas diferenciadas: é de 60 anos na Coreia do Sul, 61 na Suécia, 65 no Reino Unido, 65 anos e 7 meses na Alemanha, 67 anos na Itália, a caminho dos 67 em Portugal. No entanto, nenhum aumento da idade da reforma resolve o que está em causa na Segurança Social.

O facto é que os 69 ou os 80 anos são espantalhos para assustar. Aqui é que bate o ponto: os sistemas serão adaptados a bem (com novos financiamentos) ou a mal (aumento da idade da reforma e redução das pensões). Mas ao sistema financeiro só interessa mesmo o dinheirinho: como a garantia das suas rendas elevadas exige sempre a ampliação da acumulação, precisa de captar os descontos dos trabalhadores, que são o maior ativo financeiro do mundo que ainda lhe escapa parcialmente. Entregar esses valores aos fundos financeiros é um objetivo que fará girar o mundo e, para tanto, é preciso criar o pânico. A única proposta que nos põem em cima da mesa é então esta: a bolsa ou a vida.


A sinistra ideologia de género

Intrigado com essa sinistra conspiração que corre por aí como “ideologia de género” e não tendo à mão os livros de Dan Brown ou outra literatura sobre maçonaria, carbonária, Opus Dei e o Clube de Bilderberg, que certamente me industriariam sobre o caso, não tive outro remédio que não consultar a imprensa acerca do mistério. Ora, a semana passada invadiu-me a pacatez com duas provas fulgurantes sobre o que seria tal conspiração, que não hesito em partilhar com os leitores, que sei que são gente desconfiada e mesmo cética, mas que cederão pela certa perante a força da evidência.

A primeira veio por via de um causídico afamado, Pedro Proença, que já teve lugar de destaque na Ordem e na candidatura autárquica do PSD nas Avenidas Novas, em Lisboa, tendo sido depois alcandorado a comentador num programa desportivo, “Prolongamento”, e a frequentador de uma “A Tarde é Sua”, numa televisão. Pois o dito advogado terá vertido em requerimento a doutrina da tal “ideologia de género”, explicando que se devia evitar juíza mulher dado o seu género ser dado a erros e perturbações. Casos raros, explicou, “muitíssimo” raros e excecionais, mas casos existem em que só homem pode julgar: “Os autos incluem-se na percentagem muitíssimo marginal e excecional dos processos em que é humanamente impossível a uma juíza mulher e mãe ser tão imparcial quanto um juiz homem”. Venha homem, que mulher não serve, peticionou ao digníssimo tribunal. Foi um pandemónio, houve mulheres e até homens que acharam que essa ideia de o sexo poder perturbar a capacidade de aplicar a lei era algo esdrúxula, a TVI acabou com a participação do cavalheiro nos dois programas e ele sentiu-se ofendido. Explicou mesmo que “pautei a minha participação semanal na antena daquela estação pela defesa intransigente dos direitos de cidadania, igualdade de géneros, tendo, com risco próprio e de forma frontal, denunciado centenas de situações em que os direitos dos cidadãos foram colocados em causa, sendo dos comentadores que mais casos de violência doméstica denunciaram”. Ele, “com risco próprio e de forma frontal”, denunciando centenas de casos, mostrou que se preocupava com as mulheres vítimas, mas que há os tais casos em que tem de ser juiz homem, lá isso há. “Ideologia de género” em estado puro, só homem pode ter determinadas responsabilidades, a elas falta-lhes o discernimento para serem “imparciais”.

O segundo acesso de “ideologite de género” veio de esfera mais elevada. Foi pela mão de Ratzinger, ou Bento XVI, Papa-emérito, que foi publicado um artigo sobre “A Igreja e os abusos sexuais”. Diz o prelado que nos anos 1960, e no tempo do Concílio do Vaticano II, os “padrões vinculados à sexualidade colapsaram completamente” na sociedade, tendo como consequência que “grupos homossexuais” se instalaram em “vários seminários”. A tese é que a pedofilia estaria a ser incentivada por este caos sexual, vá-se lá saber porquê, dado que a Igreja Católica impõe o celibato e a assexualidade aos seus dignitários. Mas há aqui uma conspirativa “ideologia de género”, bem se nota, pois estes insinuantes “grupos de homossexuais” estavam destinados a trazer o mal-estar à sua instituição. Ratzinger, que raramente tem quebrado o silêncio, achou que a causa merecia lembrar que a sua Congregação para a Doutrina da Fé, que um dia foi pelo nome de Inquisição, é que devia julgar estes casos, sempre no recato da Igreja.

Aqui têm. Como se vê, a “ideologia de género” instalou-se, seja para explicar que há solenidades que só cabem aos homens seja para lembrar que o pecado está por todo o lado.

A lei do mais forte

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 19/04/2019)

Daniel Oliveira

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É natural e positiva a multiplicação de greves. É quando se destapa a panela que a paciência transborda. As pessoas sentem que os tempos estão melhores e querem parte da bonança para si. Só assim desequilibrarão uma balança que, em crise ou fora dela, cai sempre para o lado de lá. Só que nem todos os trabalhadores têm o mesmo poder. Por isso tenho escrito sobre o cuidado que o movimento sindical deve ter perante o crescente desnível de capacidade reivindicativa entre trabalhadores do público e do privado. Nem dentro do mesmo sector o poder é partilhado por igual. Os maquinistas da CP ou os pilotos da TAP sempre conseguiram mais do que os seus colegas. Porque param o país. E isso até criou, dentro destas empresas, situações de intolerável injustiça. Só sindicalistas politicamente conscientes conseguem evitar que prevaleça a lei do mais forte. E, com todas as críticas justas que se fazem ao sindicalismo marcado pela cultura do PCP, ele sempre teve a vantagem de se basear numa solidariedade de classe entre trabalhadores e não numa pertença a um grupo profissional. Historicamente, essa foi a grande fronteira entre os sindicatos socialistas e fascistas. Pelo contrário, a fragmentação do sindicalismo em minúsculos sindicatos de nicho sem relações de solidariedade entre si alimenta a intransigência egoísta de grupo. E isto será cada vez mais difícil de gerir.

Veremos até que ponto serão atendidas as reivindicações dos motoristas de matérias perigosas, que até podem ser justas. Mas os ganhos não podem ser apenas para eles, só porque transportam a gasolina que faz andar o país. Foi a consciência do seu poder que levou à fundação de um sindicato de nicho um mês depois de um acordo histórico entre sindicatos e patrões pelo qual todos os camionistas esperaram 21 anos. E que lhes permitiu ignorar serviços mínimos e da requisição civil. Além impor a lei, o Governo pouco podia fazer num confronto entre privados. Podia, como acabou por conseguir, obrigar as partes a sentarem-se à mesa. Mas um acordo com este sindicato, meses depois de outro ter sido fechado com todos, tem vários riscos. Os trabalhadores concluirão que o sindicalismo eficaz é o que isola pequenos grupos para cada um tratar de si, deixando para trás os que não conseguem paralisar o país. Criará insegurança em todos os processos negociais. Depois de um acordo ser assinado pode nascer um sindicato de nicho que faça tudo voltar ao princípio. Sindicatos que acreditam na solidariedade entre trabalhadores e patrões que acreditam na negociação ficarão mais frágeis perante pequenos grupos de interesse.

A justeza de uma greve depende sempre do princípio da proporcionalidade. 800 pessoas não podem ter 10 milhões como reféns. Um processo negocial que durou meses e que resultou num acordo histórico não pode ser destruído por uma pequena parte de uma classe sem que todos os que nele foram abrangidos sejam incluídos em novas negociações.

Qualquer greve que ignore a solidariedade de classe e faça mal ao sindicalismo é uma greve injusta. Ao travar a greve, o Governo teve uma vitória circunstancial e Assunção Cristas fez uma triste figura. Mas um novo acordo não pode criar uma situação injusta, que beneficie 800 pessoas que nos têm como reféns em relação a todos os seus colegas. Realmente urgente: mudar a distribuição de combustível para que um país inteiro não volte a depender de umas poucas centenas de pessoas.

“Petróleo, não!” Nesta semana já estivemos perto

por estatuadesal

(Daniel Deusdado, in Diário de Notícias, 19/04/2019

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1 Uma coisa é termos uma vaga ideia de quão estupidamente dependemos dos combustíveis fósseis. Outra, vivê-la em concreto. Obrigado aos grevistas. A memória perdida sobre o "petróleo" voltou. Ficou a nu que temos de fugir dos senhores feudais do Médio Oriente, das oligopolísticas, campanhas energéticas com preços afinados ao milésimo de euro e, finalmente, deste tipo de sindicatos e associações patronais com um poder absolutamente desproporcionado.

Estamos naquele momento de adesão aos transportes públicos e à mobilidade elétrica. Não podia ser melhor para mudarmos de vida.

O caso dos "oleodutos imaginários" é o expoente máximo das decisões político-carbónicas. Como explicar esta displicência de décadas na não construção dos gasodutos Sines-Aveiras e Estarreja-Leixões? O statu quo era bom para o setor dos camiões-cisternas de materiais perigosos. Portanto, mais de duas centenas de camiões-cisternas atravessam diariamente as duas principais áreas metropolitanas do país como bombas ambulantes - numa contagem decrescente até que um dia algo de absolutamente catastrófico aconteça, como estabelece a lógica das probabilidades. Vai ser agora que acabamos com este escândalo de segurança nacional?

2 Olhe-se para o que está a acontecer já em muitas cidades da Alemanha e da Escandinávia - mas também Madrid - nas limitações ao uso gasóleo no centro das cidades. Fica claro como a crise das alterações climáticas se está a impor na opinião pública. Não por masoquismo (as alternativas de mobilidade elétrica ainda são caras e de baixa autonomia) mas as pessoas já perceberam que as consequências interferem diariamente com a saúde e o bem-estar.

Do ponto de vista ético, sabemos também, sem margem para dúvidas, que estamos a comprometer de forma irreversível o futuro das próximas gerações.

A propósito disso, o The New York Times de ontem incluía um artigo de Anna Sauerbrey - "Como o clima se tornou na nova contenda alemã" - em que assinalava que o tema "imigrantes" está a ser substituído pela "discussão climática" e será o tema número um das eleições no outono que substituirão Angela Merkel.

A questão será ferozmente disputada entre os que consideram um exagero as limitações ao gasóleo e os que sentem já não haver mais tempo para concessões.

Não é algo menor: estamos a falar do país da Volkswagen, da Mercedes, da BMW, da Audi e da Porsche. Estamos a falar do país que cometeu a maior fraude alguma vez feita para omitir emissões - e com isso potenciando a liderança mundial da Volkswagen.

Em simultâneo, a Alemanha parece ter perdido a dianteira da indústria automóvel na transição para a mobilidade elétrica. Sacrificou o pioneirismo pelas economias de escala para maximizar os lucros até ao limite absoluto. Como foi possível?

Sabe-se que a situação vai ser difícil nos próximos anos para as marcas automóveis. O modelo de negócio atual chegou ao fim. Ou as fábricas deixam de produzir tantos carros movidos a petróleo ou vão ter de começar a oferecê-los... Já vemos isso: há cada vez mais promoções extraordinárias para se comprar carros a gasóleo que não vão sobreviver à dinâmica das cidades, dos países e das opiniões públicas. Querem enganar quem?

3 Os factos têm de nos fazer pensar e mudar. Comecemos pelo ciclone Idai que arrasou o centro de Moçambique. Raramente estas regiões de África são sujeitas a choques meteorológicos deste cariz. Mas a "tempestade perfeita" é mesmo isso: água cada vez mais quente nos oceanos, levando a maior evaporação, aumentando a velocidade dos ventos nos fenómenos meteorológicos extremos, caindo chuva a uma quantidade impressionante por minuto - o que impede as estruturas de escoamento (quando as há) de atuarem. O que é isto? Alterações climáticas. Ponto.

Como se chega aqui? A concentração de dióxido carbono na atmosfera está já nesse número abstrato de "410 partes por milhão" e ultrapassou a barreira de segurança de que anda a falar Al Gore há mais de dez anos. Repare-se que em registos de mais de 800 mil anos de vida na Terra, nada de igual aconteceu.

Mais um exemplo: dados registados pelas seguradoras a nível mundial revelam que nos últimos três anos houve perto de 700 sinistros de elevado impacto causados por alterações climatéricas. Valor recorde.

Entretanto, o Acordo de Paris tenta obter uma neutralidade carbónica de 2050 em diante, apesar de os Estados Unidos liderarem uma corrente negacionista. Ora, como chegaremos a um resultado concreto sem o maior poluidor do mundo per capita?

4É aqui que entramos nós, todos. A economia não pode continuar assim. Se não há sustentabilidade, não há futuro. Num mundo de economia circular, tudo acaba por gerar um efeito boomerang.

No site da NASA - ainda não proibido pelo presidente dos Estados Unidos... - está reunido um conjunto de informação que deveria fazer-nos pensar todos os dias. Um dos mais impressionantes é o gráfico sobre alterações climáticas (eventos de temperatura fora dos padrões médios) entre 1880 e 2018. A imagem de um planeta a tornar-se incandescente é impressionante.

Noutro vídeo do mesmo site, há uma análise à subida recorde de temperatura da primeira metade do ano de 2016 e de como isso teve um tremendo impacto no degelo do Ártico.

Factos como estes geram não só a subida do nível do mar como agudizam o aumento de temperatura do solo na Sibéria, região onde se concentra o permafrost, uma camada de subsolo repleta de dióxido de carbono e metano cuja extensão agudizaria ainda mais o efeito estufa que estamos a sentir.

E se for pouco, outro vídeo sobre a imparável subida do nível do mar nos últimos 22 anos ou o degelo da Gronelândia.

As pequenas tragédias já nos tocam por cá, como se viu em 2017 nos dramáticos incêndios ou em 2018 na destruição de Monchique. Mas seja cá ou lá, não há mais tempo.

É certo que as pessoas não mudam os hábitos, exceto quando são obrigadas. Mas o que não mudar a bem vai infelizmente surgir pelos acontecimentos. Portanto, podemos pôr em prática uma ideia que ocorreu certamente a muitos nesta semana: diminuir os abastecimentos até nunca mais precisarmos de meter combustível fóssil numa bomba de gasolina. Aqui está um objetivo a ser perseguido pelas melhores razões do mundo.