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quarta-feira, 24 de julho de 2019

Trump e a estratégia do racismo

Posted: 23 Jul 2019 02:36 AM PDT

«A questão racial nos Estados Unidos tem estado omnipresente no debate político norte-americano, desde a fundação do país até à atualidade.

Na génese dos EUA, a casta dominante dos WASPs (acrónimo que em inglês significa Branco, Anglo-Saxão e Protestante), descendente dos primeiros colonizadores europeus do território, tratou de assegurar os privilégios políticos, económicos e sociais face aos demais grupos étnicos. Numa primeira fase os imigrantes europeus não protestantes (e.g. irlandeses, italianos, polacos), foram-se emancipando e, posteriormente, outros tantos grupos étnicos conquistaram o seu espaço nos EUA. Atualmente encontram-se afro-americanos, latinos, judeus, ou asiáticos em todo o tipo de profissões e cargos públicos.

Contudo, importa não esquecer que os EUA são de facto um país jovem. Ainda estão presentes os ressentimentos decorrentes dos grandes conflitos que marcaram a década de 60 do século XX, com o movimento dos direitos civis, ou mesmo a própria Guerra Civil Americana, que ocorreu cem anos antes, onde a questão racial foi um dos temas centrais.

Recentemente o Presidente Donald Trump reanimou o tema de forma calculista, com o polémico tweet dirigido às congressistas Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Rashida Tlaib e Ayanna Pressley. Mas não foi o primeiro presidente norte-americano a fazê-lo. A história política dos EUA é fértil em exemplos semelhantes não só do lado republicano, mas também do lado democrata com conhecidos líderes como George Wallace, Governador do Alabama, que até ao final dos anos 70 do século anterior defendeu o segregacionismo de forma populista para agradar ao eleitorado do seu estado.

Apesar das alterações políticas e legislativas que decorreram, a questão racial está longe de estar arrumada no sótão da curta história dos EUA e Donald Trump aproveitou-se disso. Ao contrário do que alguns dos seus críticos pensam, Trump não é um político amador e desajeitado que comunica irrefletidamente. O presidente norte-americano é exímio na forma como decide qual deve ser a agenda política e mediática. Ele coloca os americanos e o mundo a discutir aquilo que ele entende que deve ser discutido no momento.

Trump já está em campanha eleitoral. As suas declarações são pensadas com um único objetivo – ganhar as eleições presidenciais do próximo ano. O “convite” de Trump para as congressistas democratas saírem dos EUA teve várias intenções: posicionar o Partido Democrata o mais à esquerda possível, obrigando-o a fazer a defesa das quatro congressistas conectadas com a ala de esquerda mais radical do partido; seduzir o eleitorado supremacista branco tradicional e a geração mais moderna da alt-right; e retirar da agenda temas que prejudicam a sua eleição (nomeadamente a prisão do seu amigo de longa data Jeffrey Epstein e a investigação sobre o seu alegado envolvimento na intervenção russa durante as eleições de 2016).

Após o polémico tweet, uma sondagem realizada pelo USA Today/Ipsos relevou dois dados importantes: a popularidade de Trump junto do eleitorado republicano aumentou 5% e desceu 2% junto dos democratas; e 70% do eleitorado republicano considera existir má-fé por parte de quem acusa alguém de ser racista. Estes resultados permitem concluir que Trump conseguiu polarizar o debate e cerrar fileiras junto do Partido Republicano para o combate que se advinha cada vez mais aceso. Esta é a guerra que Trump quer levar para as próximas eleições presidenciais – “nós” contra “eles”, em que o “nós” é uma personificação do verdadeiro cidadão americano, liderado por Trump.

O alegado racismo de Trump, alimentado por declarações sugestivas, é uma estratégia que serve o propósito de mascarar o seu populismo clássico.

Trump parte na dianteira da corrida eleitoral. O presidente norte-americano lidera as sondagens para as presidenciais, num momento em que o Partido Democrata ainda não escolheu o seu candidato. Subestimar a sua estratégia e comprar a sua guerra resultará numa reeleição fácil em 2020.»

David Pimenta

terça-feira, 23 de julho de 2019

As grandes carreiras políticas já não dependem dos eleitores

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/07/2019)

Daniel Oliveira

Christine Lagarde foi nomeada presidente do Banco Central Europeu e é preciso substituí-la no FMI. As transferências de verão estão ao rubro e o nosso Ronaldo das Finanças está na shortlist. Alguém confirmou que é provável que seja escolhido a Marques Mendes. Portugal, que se começa a especializar na exportação de burocratas, antecipa mais um momento de êxtase. Depois de Barroso e Guterres, com os enormes ganhos que todos sabemos terem representado para o país, podemos ter mais um dos nossos a brilhar lá fora. O nosso espírito de emigrante vibra com isto. Por mim, torço por Centeno em Washington. Não me parece que por lá possa fazer grandes cativações. Mas quem ache que ganharemos muito com uma possível nomeação deve fazer um balanço sério da passagem de Centeno pela presidência do Eurogrupo.

Não deixa é de ser curioso que uma organização tão ortodoxa como o Fundo Monetário Internacional pense em escolher Mário Centeno, ministro das Finanças de um Governo supostamente socialista. Ou houve uma revolução no FMI ou isto diz alguma coisa sobre o que tem sido a gestão financeira do nosso ministro.

Longe vão os tempos em que a grande ambição de um ministro das Finanças era chegar a primeiro-ministro e a de um primeiro-ministro era chegar a Presidente da República. Isso é tão século XX. Hoje, uns e outros sonham com cargos internacionais. Daqueles onde realmente se manda, os eleitores não chateiam e ainda por cima se ganha bem. O que quer dizer que as grandes carreiras políticas já não se fazem com os olhos na democracia e no povo, fazem-se com os olhos numa classe global de burocratas sem nação, quase sempre amigos dos únicos poderes globais que sobrevivem: os económicos.

Sobretudo os ministros das Finanças, que concentram um poder absurdo nos governos. Escolhidos entre tecnocratas, estão muitas vezes acima dos primeiros-ministros que os cidadãos conhecem e em quem, de alguma forma, votaram.

Isto é bastante perverso. Porque quer dizer que quem governa já não o faz a pensar nos governados. Se tivessem ambições nacionais era isso mesmo que teriam de fazer. Esta nova estirpe de políticos governa para agradar as organizações internacionais, dominadas pelos Estados mais poderosos. E a lógica é tão perversa que já conseguimos convencer os eleitores de que um bom ministro das Finanças é o que nos trata mal para ter a simpatia externa. E é isso que explica que, em países periféricos como Portugal, os ministros das Finanças se tenham transformado em embaixadores das instituições europeias no Governo e não o oposto. Conhecemos as consequências: um défice muito aquém das metas que nos foram exigidas pela Europa. O país não precisa, mas o currículo técnico de Centeno sim.

É unânime: um pulha é um pulha

por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 22/07/2019)

A grande investigação parlamentar ao plano de Sócrates para controlar a CGD, e a partir da Caixa tomar conta do BCP, e a partir do BCP atravessar os Urais para conquistar a Ásia e estabelecer uma base secreta na face oculta da Lua, acabou com um relatório aprovado por unanimidade – com os pulhas caladinhos e a indústria da calúnia a fingir que nada se descobriu, nada se esclareceu. Porquê?

A II Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à Gestão do Banco foi, na verdade, a terceira comissão de inquérito que nesta legislatura reuniu e avaliou documentos e declarações relativos à administração da CGD ao longo de vários anos – com especial enfoque para o período em que Santos Ferreira e Armando Vara, de um lado, e Vítor Constâncio, de um outro, foram protagonistas à força de uma estrambólica teoria da conspiração que a direita decadente alimentou desde 2008 até ao presente.

O nascimento desta CPI envolve uma auditoria da consultora EY que começou por ser entregue à CGD, depois esta entregou-a à Procuradoria-Geral da República ficando sujeita a segredo de justiça, depois Joana Amaral Dias e a Cofina violaram o segredo de justiça, depois o Ministério Público declarou nada ter a opor a que a CGD enviasse a auditoria para o Parlamento, depois o CDS anunciou a intenção de constituir nova comissão de inquérito, depois o PS e o BE de imediato se juntaram à direita e a comissão arrancou assim que o Presidente da República promulgou a nova legislação que deu ainda mais poderes ao Parlamento para obter documentos e dados na posse dos bancos. A excitação dos direitolas estava no máximo, iam para o período eleitoral das europeias com a certeza de terem material difamatório e oportunidades caluniosas para dar e vender, de caminho ainda conseguindo conspurcar a imagem da Caixa de forma a boicotar os seus resultados comerciais e pôr em causa a sua permanência como banco do Estado. E se bem o pensaram, melhor o fizeram.

Aposto os dez euros que tenho no bolso em como não chega à centena o total de cidadãos que assistiu, mesmo que só em parte, às gravações de todas as audições desta CPI. Estou disposto a cravar mais dez euros à minha vizinha do 4º andar para apostar em como não chega ao milhar o número de portugueses que terá assistido na integralidade a qualquer uma das audições (a de Vara durou cinco horas e meia, por exemplo, mas também as há com menos de duas horas para os apressados). Incluo nestas apostas por igual os políticos e jornalistas que, por obrigação ou vocação, teriam de gastar dezenas de horas para ver a totalidade das sessões disponibilizadas na ARTV. Onde não é preciso fazer apostas é na questão de se calcular quantos portugueses, no final destes trabalhos parlamentares, acham que Sócrates convidou Campos e Cunha para o usar como capacho, o que ele veio a recusar assim que olhou para o saldo bancário, e depois obrigou Teixeira dos Santos a meter Santos Ferreira e Armando Vara na CGD para que essa dupla dominasse/comprasse/ameaçasse os restantes administradores e directores do banco de forma a que se conseguisse usar o dinheiro da Caixa, através de testas-de-ferro, para roubar o BCP ao santificável Jardim e à oligarquia; entre outras fabulosas malfeitorias devidamente permitidas e/ou abafadas por Vítor Constâncio. O resultado dos meus inquéritos nos táxis e tascas é “bué da muitos acham que sim”, e tal apenas consegue suscitar um bocejo se nos recordarmos das caudalosas peças que os impérios mediáticos da direita andam há anos e anos e despejar no espaço público. Essa calúnia supinamente imbecil está tão entranhada que recebe o apoio, nalguns casos desvairado, de pessoas que se consideram de esquerda e até que são altos responsáveis do PS. É algo que foi carimbado como “evidente” pelo comentariado nos meses em que decorreram as audições e que atingiu o paroxismo com as declarações de Joe Berardo. Seguiu-se uma explosão delirante ocorrida a 7 de Junho, data que ficará como monumento à infâmia deontológica nos anais do jornalismo português, em que vimos o Público e o seu director a garantirem ter provas de que Constâncio era o tal escroque que os pulhas andavam a berrar que era desde 2008. As “provas” do Manuel Carvalho, rapidamente se veio a constatar, apenas provavam que a soberba e o ódio adoram notícias falsas e ataques à honra de terceiros, tudo a ficar impune pois nem sequer uma demissão no jornal justificou.

Há uma razão primeira, fundamental, para a unanimidade com que esta CPI arquivou a papelada: nada de ilícito foi descoberto. Daí a adjectivação pífia com que CDS e PSD embrulharam os meses, as exaustivas audições e a colossal documentação reunida. Partir-se da certeza de conluio criminoso entre ministros socialistas, administradores da Caixa e governadores do Banco de Portugal e chegar-se ao remate de apenas se poder apontar (inventar?) que a “CGD não foi gerida de forma sã e prudente na concessão de vários créditos”, eis a medida da farsa montada e explorada até à última gota. De facto, logo desde 2008 era evidente – e isto, sim, é que é evidente – não haver ponta legal por onde se pegar para fazer uma operação judicial cujo alvo fosse a CGD, Santos Ferreira e Constâncio. Por não haver, apesar de Cavaco estar em Belém e o mano Vidal em Aveiro, não se foi por aí. A golpada que efectivamente foi lançada com a anuência e apoio da oligarquia iria conseguir apanhar Vara e Sócrates mas não os ditos cúmplices sem os quais é apenas uma canalhice espalhar suspeitas desmioladas. Depois do cortejo de responsáveis por todos os órgãos decisores na CGD e no Banco de Portugal a jurar nunca terem sofrido pressões políticas de ministros socialistas, depois de terem explicitado que à época as estratégias comerciais e os procedimentos na concessão de crédito na Caixa foram perfeitamente regulares, inclusive nos casos que correram mal, depois de Teixeira dos Santos ter varrido de cena a colagem de Sócrates a Vara e Santos Ferreira, sobrava apenas a decadência da direita partidária e mediática actual: o indecente desejo de que o Ministério Público decida apanhar algum “socialista” referido no relatório para se voltar a ter carne a esturricar no lumaréu da baixa política por mais uns anos.

Há uma outra razão para a unanimidade final. É que esta CPI desfrutou de todas as condições para investigar o que quisesse, a unanimidade selou esse poder que vasculhou em absoluta liberdade. Chegou a Julho sem se poder queixar de ter sido impedida de revelar os podres das organizações, instituições e personalidades visadas. Só que não havia podres concretos, factuais, para além daqueles que alguns deputados já tinham no bestunto a ocupar espaço. Erros e situações questionáveis no plano da gestão bancária, pois sim e como não? Indícios de “assalto à CGD”, “assalto ao BCP”, “Vale do Lobo não sei quê e não sei quantos”, nem um.

Vou repetir: indícios, nem um; lenha para a chicana, camiões cheios. Dava-se era o caso de ser uma chicana que tinha entrado, pelo exercício plenipotenciário mesmo desta CPI, para o grupo onde já estão a patranha relativa ao “plano para afastar Moura Guedes através da compra da TVI pela PT”, uma aldrabice que nem sequer entrou na “Operação Marquês”, e a patranha relativa aos gastos com cartões de crédito dos membros dos Governos de Sócrates, uma chachada que acabou com uma pena suspensa por causa… da compra de uns livros.

Nunca, em toda a História de Portugal, se investigou com tantos recursos e durante tanto tempo um período governativo e um primeiro-ministro. Não se fez sequer remotamente parecido com mais nenhum Executivo e seus responsáveis e prevemos que não se voltará a fazer por ser insano. Agora, compare-se o custo, em horas de trabalho e dinheiro, que essa perseguição na Justiça, nos partidos e na comunicação social tem provocado com os resultados a que vai chegando. Temo que, no final de todos os processos ainda abertos e por abrir pelos implacáveis procuradores que são selectivamente alérgicos à impunidade, seja preciso iniciar mais um processo. Na Santa Sé.

Morrerão de velhos no Restelo

Posted: 22 Jul 2019 11:53 AM PDT

«Todas e todos nós na comunidade política a que pertencemos ou onde vivemos – a República Portuguesa – sabemos da importância simbólica e identitária do longo processo histórico da expansão do Estado português.

Todas e todos sabemos que esse processo incluiu o protagonismo do país numa certa época, o descobrimento de geografias e realidades culturais por parte de quem ainda não as conhecia, a disseminação da língua portuguesa, trânsitos culturais de vários tipos, o surgimento de novas realidades sociais e a transformação de outras.

Mas, quer o nacionalismo do século XIX, quer o regime ditatorial que ocupou grande parte do século XX, fizeram da expansão do Estado português uma narrativa identitária com contornos exclusivamente nacionalistas e encomiásticos, preocupada quer com o reforço da identidade nacional como forma de ilidir as desigualdades e conflitos internos, quer com a legitimação internacional e a compensação pela perda de protagonismo no quadro europeu.

Uma parte fundamental dessa narrativa foi menosprezar o papel português no tráfico de pessoas escravizadas, na desestruturação de sociedades, no colonialismo necessariamente assente no racismo, ou no trabalho forçado após abolição da escravatura, entre outros processos.

Todos foram legitimados por visões do mundo e por discursos que assentaram no seguinte: a noção de hierarquias raciais dentro da espécie humana, sendo as raças dos “descobertos” ou colonizados consideradas inferiores; a noção de hierarquias culturais e de evolução linear humana; a própria invenção da branquitude como marca de superioridade racial e da Europa como marca de superioridade cultural e estágio mais avançado daquela evolução.

Na sequência das lutas das populações escravizadas e colonizadas, na sequência do trabalho dos seus líderes, ativistas e intelectuais, e com o apoio dos aliados europeus mais influenciados pelos ideários dos direitos humanos, desde há aproximadamente um século que vivemos num mundo em que vêm sendo postas em causa as crenças em que assentaram a expansão e o colonialismo europeus. O ponto de viragem mais radical foi o que se deu na sequência do Holocausto – produto extremo e expectável dos ideários racistas produzidos na Europa – e, logo, na sequência dos movimentos de libertação anticoloniais e antirracistas pelo mundo fora. No caso português, a ação dos movimentos de libertação africanos no decurso das guerras coloniais foi absolutamente crucial para o fim da ditadura portuguesa, a abertura à democracia liberal e ao percurso para a adesão europeia.

Na reconstrução da comunidade política – da República Portuguesa – a seguir a 1974, não soubemos, porém, fazer dois conjuntos de coisas. Primeiro, não soubemos reinventar a narrativa da identidade nacional, antes perpetuámos a velha narrativa da expansão e do colonialismo e os seus mitos de não-racismo e de excecionalidade. Quando muito matizámo-la com platitudes sobre “universalismo” e “interculturalidade”, continuando a ideia da bondade da expansão portuguesa; continuando a ideia de que há um “nós” (portugueses brancos e católicos) e uns “outros”; e recauchutando as ligações imperiais como “Lusofonia”, à maneira das continuidades neocoloniais da Commonwealth britânica ou da Francophonie francesa.

Segundo, não soubemos reinventar a comunidade política como cívica e não nacional (ou mesmo etno-racial), face à realidade que a expansão e o colonialismo já haviam criado e que as migrações pós-coloniais acentuaram: uma realidade feita de pluralidades de origens, fenótipos e quadros culturais, mas vividas como desigualdades (e isto sem mencionar as pluralidades eliminadas no passado, como os judeus, ou marginalizadas desde há séculos, como os ciganos). Limitámo-nos a combater o racismo enquanto defeito moral de indivíduos, sem mexer nas causas dos racismos estrutural e institucional.

Na ausência – trágica – de uma reinvenção da comunidade política e da sua identidade, o vazio foi ocupado pelo passado. Vivemos como se numa colónia, apenas sem o respaldo da lei colonial. Vivemos com apartheid geográfico, profissional, educacional, político, até de nacionalidade e cidadania, como já bastamente demonstrado por pesquisas ignoradas das ciências sociais, ou mesmo por reportagens de investigação neste mesmo jornal, mas sobretudo pelas denúncias de quem mais tem a perder nisto tudo e mais direito tem a falar sobre isto tudo: as pessoas afrodescendentes e ciganas da nossa comunidade.

Não nos reinventámos, mas seremos reinventados. O processo começou há muito, com as exigências dos movimentos afrodescendente e antirracista, mas tornou-se mais visível agora. Não há melhor sinal disso mesmo do que a reação a ele, como nas opiniões recentemente publicadas que procedem ao branqueamento de ideias de hierarquia racial e cultural. Casos tristemente patéticos à parte – os que ecoam o racismo dito científico do século XIX, ou o lusotropicalismo do colonialismo português –, muitas opiniões dedicam-se a acusar de racismo quem o combate, dedicam-se ao fetichismo da meritocracia, dedicam-se a promover a confusão entre igualdade na lei e igualdade social de facto, dedicam-se à negação simultânea quer do racismo, quer do privilégio de que usufruem.

Porquê tanta excitação? Porque anos de luta invisibilizada estão a dar frutos sob a forma de propostas concretas para ultrapassar a constituição colonial que ainda nos rege: propostas como a inclusão de categorias etno-raciais nos Censos para conhecer a desigualdade gerada pela longa História da racialização, ou propostas de igualdade de oportunidades ou ação afirmativa contra os efeitos dos racismos estrutural e institucional.

A melhor maneira de nos reinventarmos como comunidade politica é criar condições para contarmos uma estória nova sobre nós próprios, todos e todas nós (e fazendo uma História nova, mais complexa, plural e fiel aos factos), incluindo o que queremos ser no futuro como contraponto aos horrores do passado. E aquelas condições asseguram-se implementando políticas concretas de transformação como as que são propostas e defendidas por quem sofre a discriminação e exige a cidadania plena.

Lembram-se do velho do Restelo, pessimista quanto aos descobrimentos? Pois no dia em que aquelas políticas forem implementadas, certos textos de opinião recentes morrerão de velhos, no Restelo, azedos face ao futuro que se aproxima.»

Miguel Vale de Almeida

segunda-feira, 22 de julho de 2019

O dilema democrático de Von der Leyen

por estatuadesal

(Jan Zielonka, in Diário de Notícias, 22/07/2019)

Ursula Von der Leyen

A legitimidade democrática é um precioso tesouro político e a Europa está desesperadamente a tentar obtê-la. No entanto, o processo de seleção para o novo chefe da Comissão Europeia deixará muitos cidadãos confundidos. Desapareceu a única, e menor, reforma democrática dos últimos anos, que previa que o Spitzenkandidat do maior partido europeu fosse escolhido como presidente da Comissão. De regresso está o poder dos Estados membros de nomear o seu próprio candidato em negociações privadas. O Parlamento Europeu pode mostrar o seu descontentamento mas, no final, não tem alternativa viável senão concordar, como aconteceu ontem, por mais estreita que seja a margem.

O poder do Conselho costumava ser justificado em termos democráticos, porque os seus membros representam democracias vibrantes. No entanto, esta asserção torna-se duvidosa se olharmos para alguns países da Europa Central e de Leste. Mesmo os líderes de países ocidentais como a Itália, o Reino Unido ou a França estão agora confrontados com uma grave crise de legitimidade.

O sistema de representação parlamentar na Europa foi sempre opaco porque não existe aquilo a que possamos chamar um demos europeu; em vez disso, temos uma coleção solta de numerososdemos nacionais, manifestando pouca coerência e solidariedade. Além disso, o Parlamento Europeu nunca foi autorizado a controlar o governo europeu. Paradoxalmente, isso pode ser uma bênção para uma Europa integrada. O PE alberga cada vez mais políticos determinados a retirar o poder de Bruxelas e levá-lo de volta para os seus próprios parlamentos nacionais. Talvez não tenham conseguido conquistar o PE nas eleições de maio, mas têm agora a capacidade de bloquear decisões importantes no seio do Parlamento e do Conselho, como Frans Timmermans tomou consciência recentemente.

As experiências da Europa com a democracia direta mostraram-se ainda mais imperfeitas. A maioria dos referendos europeus assemelhou-se a um festival de populismo com um amplo espaço para demagogia e pouco para deliberação. Outras formas de participação direta, tais como inquéritos e petições online, diálogos cívicos ou redes pessoais, podem funcionar bem em comunidades locais ou municipais, mas são menos adequadas para um vasto espaço europeu com diferentes idiomas e preocupações.

Ursula von der Leyen não é obviamente responsável por essas deficiências democráticas da União Europeia, mas é muito aconselhável que ponha a democracia no topo da sua agenda. Von der Leyen prevaleceu sobre Frans Timmermans graças ao apoio recebido de políticos soberanistas (populistas). Eles esperam que Von der Leyen seja tão amigável com eles quanto o seu colega de partido, Manfred Weber, o Spitzenkandidat fracassado.

A posição de Von der Leyen sobre a violação do Estado de direito nos Estados membros será, portanto, o primeiro teste da sua presidência. No entanto, é difícil para a UE dar lições de democracia aos seus Estados membros se ela própria não é vista como muito democrática. O que pode fazer dadas as complicações acima mencionadas?

A UE deve começar com a questão da transparência, sem a qual as pessoas dificilmente podem controlar qualquer governo. A UE tem relações mais próximas com os lobistas do que com os cidadãos, demonstra maior determinação em reduzir os gastos sociais "excessivos" do que a fuga aos impostos, e a sua estratégia de comunicação é altamente seletiva. Soubemos recentemente que o PE desprezou uma proposta para tornar os contactos com os representantes dos grupos de interesses mais transparente, enquanto a Comissão se recusou durante meses a divulgar os resultados dos testes de emissões de veículos a gasóleo produzidos pela Porsche. Detalhes dos paraísos fiscais usados ​​pelas empresas europeias foram revelados pelo portal WikiLeaks e não pelos senhores Juncker ou Tajani. Estas são provavelmente apenas as pontas simbólicas dos icebergues, e Von der Leyen deve começar a limpar essa confusão rapidamente, tranquilizando o público europeu em relação à sua conduta imparcial e transparente.

Ela também deve identificar maneiras práticas de envolver os cidadãos no processo de tomadas de decisão. Isto não significa mais referendos, mas um sólido sistema institucional de consulta dos demos da Europa sobre os assuntos mais importantes abordados pela UE. Estas consultas devem ser genuínas e não devem ser realizadas em Bruxelas, mas em todo o continente.

A criação de uma segunda câmara do Parlamento Europeu com representantes de cidades, regiões, ONG e associações empresariais poderia também aproximar os cidadãos da UE. Esta câmara apresentaria principalmente ativistas locais e representantes sectoriais que estão mais próximos dos cidadãos comuns do que os políticos profissionais atualmente com assento no PE. Naturalmente, Von der Leyen não está em condições de criar uma segunda câmara, mas pode abraçar empenhadamente a ideia. E também pode propor dar aos cidadãos da Europa maneiras significativas de contestar as decisões que os afetam diretamente. As prerrogativas e o orçamento do Provedor de Justiça Europeu poderiam aumentar e o âmbito do contencioso privado no Tribunal de Justiça da União Europeia poderia ser alargado.

A questão mais delicada diz respeito aos poderes da Comissão Europeia em si, que muitos críticos consideram demasiado vastos e com um nível insuficiente de responsabilização. A supervisão parlamentar da Comissão é importante, mas provavelmente inadequada, dada a escala do empreendimento. Portanto, é importante pensar noutro modelo democrático-padrão, que equivale a conter e dispersar o poder centralizado. A descentralização aproxima o poder dos cidadãos e facilita a responsabilização. A UE tem mais de quarenta agências reguladoras localizadas em diferentes países e que lidam com questões tão diversas como os direitos humanos, o tráfego marítimo ou a segurança alimentar. Elas poderiam receber mais poder e recursos à custa da Comissão Europeia. Tal passo não enfraquecerá necessariamente a Comissão, mas libertá-la-á de alguns encargos atuais e reforçará a sua legitimidade.

Com a UE a ver-lhe outorgados cada vez mais poderes, há pressão para legitimar as suas decisões. No passado, o projeto europeu dependia principalmente da legitimidade da produção - o principal objetivo era tornar a Europa mais eficiente e próspera. No entanto, o crescimento económico dececionante a partir da década de 1970 e, depois, uma série de crises económicas e migratórias tornaram pertinente que a UE aumentasse a confiança na legitimidade baseada em algum tipo de democracia.

Além disso, as ondas sucessivas de alargamento da UE tornaram cada vez mais difícil chegar a decisões por consenso, pelo que as decisões maioritárias no seio do Conselho Europeu foram sendo progressivamente introduzidas. Como os Estados membros já não podem vetar certas decisões da UE, há a necessidade de legitimar as decisões maioritárias num quadro pan-europeu.

A democracia tem que ver com participação, contestação, responsabilização e representação. Eleições e parlamentos são apenas alguns dos inúmeros dispositivos institucionais possíveis para garantir a democracia. A UE não é um Estado, por isso precisamos de ser inovadores e forjar algumas experiências. A presidente da Comissão Europeia não pode, sozinha, alterar os tratados existentes, mas pode falar com convicção sobre a democracia e propor formas de a fortalecer. Os antecessores de Von der Leyen não o fizeram com convicção suficiente, e daí a atual crise de todo o projeto europeu. Esperemos que a primeira mulher chefe da Comissão não passe à história apenas como uma burocrata habilidosa, mas também como uma voz ou uma defensora do povo da Europa. Ou será muito ingénuo ter esperança em tal coisa?