Translate

sexta-feira, 3 de julho de 2020

A normalidade é uma ilusão: a crise não

Posted: 02 Jul 2020 03:47 AM PDT

«A interrupção da vida quotidiana causa pela pandemia de covid-19 na Índia lembrou-me uma chocante decisão de Narendra Modi em Novembro de 2016: descontinuar 86% da moeda indiana (desmonetização); o desaparecimento abrupto de dinheiro prejudicou a cadeia de fornecimento e fez com que o desemprego sistémico piorasse a vida dos indianos mais pobres – interrompendo as suas vidas – do mesmo modo que a pandemia os afecta agora. Devido à covid, o Estado indiano, como outros, enfrentou uma situação anormal – uma suspensão da normalidade. O que significa a normalidade para a população indiana? A quem serve a normalidade?

Para os milhões de trabalhadores informais a “normalidade” pode ser uma ilusão. Durante o lockdown indiano centenas de trabalhadores migrantes morreram e desapareceram da superfície da sociedade, sem deixar rasto. Trabalhadores informais, vendedores de vegetais, fazendeiros pobres, vendedores de rua, pessoas em situação de rua – todos são partes dessa normalidade da excepção. Eles têm vivido, desde sempre, uma situação dura, uma vida anormal sendo a normalidade para eles. Essas pessoas, pessoas de lugar de abjecção como nos diz Julia Kristeva, sobrevivem com escassos salários diários, enfrentam a violência policial e têm a apatia do resto da sociedade – isto, diariamente; possivelmente, a normalidade é apenas uma ilusão para eles.

O lockdown na Índia forçou a deslocação da população migrante. A pandemia não é uma situação de crise que podemos claramente opor à normalidade; essa é uma crise permanente para milhares de trabalhadores e trabalhadoras migrantes – incapazes de garantir mesmo a própria alimentação – que foram forçadas a regressar a pé às suas cidades, enfrentando descalças centenas de quilómetros, sem comida e sem poderem aceder aos transportes, que pararam. A crise, para eles, não é uma excepção em relação à dita normalidade. Já tantas vezes sentiram a interrupção das suas vidas diárias que a palavra “normalidade” perdeu o sentido para eles.

As suas vidas foram sabotadas pelo “discurso da normalidade”, que faz parecer que as suas vidas são vividas na normalidade, como os restantes compatriotas. Na verdade, foram encurralados num inescapável ciclo de crises pelo Estado, pelas corporações e pela classe média privilegiada. A maioria vive em favelas; sentem a crise através da extrema pobreza, da fome, da doença e da profunda desigualdade salarial. A crise é uma parte essencial das suas vidas, vidas onde a ideia de “vida normal” está ausente.

Eles são o fundamento invisível da sociedade visível, fundamento sobre o qual a nação e o Estado se mantêm. Sem eles, a sociedade indiana não poderia funcionar. Para os 450 milhões de trabalhadores informais indianos, a vida nunca foi normal. Se é que a sua própria existência importa ao Estado indiano – eu tenho sérias dúvidas sobre isso. Sem seguro de saúde, em condições de trabalho precárias, sem segurança social, baixos salários; as suas vidas têm sido um permanente estado de crise, mesmo durante os ditos “tempos normais”.

Durante o infame lockdown indiano, vimos os cadáveres dos pobres, dos famintos, dos pedintes, desempregados, trabalhadores migrantes, mulheres e crianças – desumanamente espalhados ao longo do país. Mesmo nos tempos ditos normais, eles já morriam assim; morriam de fome, de doença, suicidavam-se devido a dívidas, morriam pelas mãos da violência estatal ou da discriminação estatrificada. Não obstante, foi durante os tempos anormais da pandemia que as suas mortes chamaram mais atenção e simpatia. Contudo, aqueles que sobreviveram agora morrem aos poucos com o desemprego, a inflação e a incapacidade para comprarem comida. A transformação necessária na Índia ainda está por acontecer.

De facto, a pandemia perturbou profundamente a vida de milhões, a nível global; contudo, foi a incapacidade da liderança de certos países que exacerbou a crise. O caos organizado do governo da Índia levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo desigualdades já existentes e aprofundando a exclusão da população marginalizada. São tempos como estes que atestam a capacidade do Estado para assegurar as necessidades básicas da população vulnerável. Em tais crises, a liderança efectiva poderia evitar o desastre, como aconteceu no caso de Portugal e da Nova Zelândia.

Em Portugal, em contraste com a Índia, foi adoptada uma abordagem humana no combate à pandemia. Foi dado tempo suficiente para que as pessoas se organizassem antes que a emergência nacional passasse a ser efectiva – aos indianos, foram dadas apenas horas antes do lockdown – ninguém foi brutalizado pela polícia e o transporte público passou a ser completamente gratuito para todos. No entanto, entristeceu-me ver, em Lisboa (aonde estive durante o lockdown), como alguns empresários da comunidade asiática, principalmente bengaleses, paquistaneses e chineses exploravam os seus empregados asiáticos. Salários diminuídos, extensão das horas de trabalho, demissões sem direitos, coacção, incumprimento do contrato de trabalho – esses são algumas das violações dos direitos humanos a que me refiro. Durante o lockdown, trabalhadores asiáticos sofreram nas mãos dos patrões asiáticos. Mas, em tempos normais, eles sofrem o mesmo destino, diariamente. A normalidade, provavelmente, é uma ilusão para eles – mas a crise não é. Dor, agonia e frustração que emergem da crise é algo bastante real para eles.

Finalizando, pode-se dizer que a pandemia instaurou uma crise de carácter excepcional para as elites e para a classe média. Contudo, para os milhões de trabalhadores migrantes indianos a crise é a normalidade. A pandemia expôs a fragilidade da sociedade indiana. Mostrou o desprezo da sociedade indiana aos seus trabalhadores migrantes. O quanto as sociedades podem aguentar forças de voláteis disrupções – só o tempo dirá. A pandemia pode até ter redefinido a ideia de normalidade aos privilegiados. Mas para os excluídos, marginalizados e discriminados, o conforto da normalidade foi sempre uma ilusão.»

Amit Singh

quinta-feira, 2 de julho de 2020

A 25ª hora do apartheid

Posted: 01 Jul 2020 03:45 AM PDT

«Calculista, antecipa que terá pela frente não mais do que um protesto fingido dos sauditas, a quem promete uma frente comum contra o inimigo iraniano, um aplauso da Casa Branca, um assentimento compungido de Gantz, com quem formou uma coligação que prometia um caminho distinto desta iniciativa de confiscação territorial, e o entusiasmo da extrema-direita israelita.

Mesmo que nenhum dos seus antecessores tenha tido o atrevimento de proceder a esta anexação, se bem que todos tenham violado as deliberações das Nações Unidas com uma displicência que fez escola, para Netanyahu o jogo é tudo ou nada.

Desde as primeiras vitórias militares contra os palestinianos e os exércitos árabes, e com a ocupação de Jerusalém, Israel tem desprezado a solução dos dois Estados, que aliás se tem revelado um beco sem saída. Impôs assim uma divisão e descontinuidade territorial entre Gaza e a Cisjordânia, operando deste modo uma fragmentação política e impedindo a constituição de uma comunidade nacional da Palestina, e submeteu este povo a uma estratégia que alguns têm comparado, o que é razoável, à da imposição dos bantustões do apartheid.

Ao mesmo tempo, criou uma tecnologia de destruição, de vigilância e de punição coletiva (o assassinato extra-judicial, o derrube das casas das famílias dos acusados) que deixa uma marca irreparável, assente no direito irrestrito de matar e de demolir.

Mas a anexação dá um novo passo nessa escalada, retira território e empurra qualquer reivindicação nacional para a guerra. É mesmo o que Netanyahu pretende, o seu poder interno depende do militarismo, o seu poder externo depende da exibição incontestada do extermínio.

A Cisjordânia é um sexto do Alentejo mas tem mais do quádruplo da população, quase três milhões de pessoas (dos quais só 400 mil são colonos israelitas). É uma gigantesca concentração popular, de gente sofrida e humilhada. A sua terra é o que lhes resta e, por isso, só se pode esperar que esta aventura militar e política acentue a tensão e o conflito. Antes isso do que eleições, pensará o primeiro-ministro: se tivesse que dar direito de voto aos cidadãos da zona anexada (afinal, não se tornam eleitores em Israel se dele fazem parte?), toda a operação ficaria em risco. A guerra permanente é mesmo a política por outros meios.»

Francisco Louçã

A novela da TAP e as tensões que crescem no governo

Curto

Miguel Cadete

Miguel Cadete

Diretor-Adjunto

02 JULHO 2020

Partilhar

Facebook
Twitter
Email
Facebook

Bom dia!
Não deve passar de hoje o impasse em torno da TAP. O mais tardar, no Conselho de Ministros que se realiza esta quinta-feira ficará decidido o futuro da companhia aérea portuguesa. O seu destino ficará ligado às decisões que conduziram à sua privatização, durante o governo de Passos Coelho, à reentrada do Estado no capital, quando António Costa já era primeiro-ministro, e, claro, à crise aberta pela pandemia que transtornou decisivamente a vida das companhias aéreas em todo o mundo devido ao corte abrupto no turismo e demais ligações. O caso português, porém, tem várias particularidades.
Nas últimas horas, ficou claro que dentro do governo existem duas fações: aquela que defende a manutenção de privados, apesar do descalabro económico-financeiro, e que é defendida pelo próprio líder do executivo, e uma outra que aposta na nacionalização e que será representada por Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas, que tem a tutela daquela empresa. N amanhã de ontem, o Expresso noticiou que a TAP seria nacionalizada devido à falta de entendimento entre o Estado e os privados, isto é David Neeleman e Humberto Pedrosa, quanto ao empréstimo de 1,2 mil milhões de euros necessário para salvar a companhia. A ausência de acordo quanto às condições em que seria aprovado esse empréstimo – e quem ficaria realmente com o poder – estiveram na origem de uma notícia que, ao longo do dia foi conhecendo inúmeros desenvolvimentos no sentido de evitar a drástica decisão. No Parlamento, Pedro Nuno Santos confirmou que a proposta do executivo foi chumbada devido à abstenção dos privados, que detêm 45% do capital. “Não vamos ceder nas nossas condições e estamos preparados para intervencionar e salvar empresa”, disse.
Ainda não tinha chegado a hora do almoço e, em Elvas, onde se encontrava para celebrar a reabertura das fronteiras com Espanha, António Costa declarava aos jornalistas que ainda aguardava um acordo com os privados.
A porta mantinha-se aberta e podia depender da venda dos 22,5% da participação de David Neeleman: ou até à meia noite havia acordo para a venda dos 22,5% da TAP detidos por Neeleman ou avançava a nacionalização forçada daquela participação. O último obstáculo a um acordo, noticiou o Expresso, prendia-se com “o empréstimo obrigacionista que a companhia aérea brasileira Azul, da qual Neeleman é acionista, fez à TAP em 2016. São 90 milhões de euros e o Estado queria que este crédito fosse convertido em capital, abatendo assim a dívida da TAP. Este empréstimo dura até 2026 e tem associada uma taxa de juro de 7,5%. A Azul só admitia transformar este empréstimo em capital se tivesse uma garantia pública. Exigência que o Executivo de António Costa rejeitou liminarmente. A Azul, em caso de insolvência da TAP ou nacionalização, perderia esses 90 milhões de euros”.
Esse desentendimento, no entanto, foi sendo alimentado pelas posições muito divergentes que existem para a TAP defendidas tanto pelo ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, como por Lacerda Machado, representante do Estado na empresa e amigo pessoal de António Costa. O primeiro preconiza a nacionalização, o segundo apostava numa reprivatização da TAP, mas o clima entre ambos azedou. Como nota Ângela Silva em artigo publicado nos Exclusivos do Expresso, “desde a polémica dos prémios, em fevereiro, as relações entre os dois homens fortes do Estado na empresa nunca mais foram produtivas, tendo chegado a haver troca de azedas mensagens e mails entre ambos”.
Às primeiras horas desta quinta-feira, a Sic Notícias anunciava porém um recuo na posição de David Neeleman, ou da Azul na qual também tem uma participação quanto ao empréstimo sobre a TAP. “Companhia brasileira Azul prestes a ceder direitos de transformação em ações do empréstimo que fez à TAP em 2016”, lia-se em notícia publicada por Filipa Crespo Ramos à 1h15 da manhã.
No mesmo canal, o diretor do Expresso, João Vieira Pereira, defendeu que “a insolvência da TAP seria o pior cenário, porque Portugal precisa de uma companhia aérea forte”. “Toda a agente preferia uma solução que não fosse a nacionalização”, disse, alertando para o pior cenário, que seria a insolvência da TAP. Na sua coluna de opinião no Expresso, Ricardo Costa, diretor da SIC Notícias, cuidou de avisar que a nacionalização seria um “problema com asas” para o Governo que, ao contrário do que sucede com as sucessivas injeções de capital no Novo Banco, não teria um privado para o salvar das culpas.
Caso não exista acordo nas próximas horas, o veredicto será a nacionalização, decidida no Conselho de Ministros que tem lugar esta quinta-feira. Porém, o acordo parece estar cada vez mais próximo, segundo as notícias publicadas nas últimas horas.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Beatriz, Pedro: o que andamos a fazer?

por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 27/06/2020)

Não me lembro de ter trocado sequer um sorriso com o ator Pedro Lima, e decerto nunca conheci a estudante Beatriz Lebre, assassinada aos 22 anos. Existiram, porém, e houve quem os amasse e sofresse o pavor da sua perda. Bastava-me isso para ter receio, caso me calhasse como jornalista pegar no assunto, de fazer mal, errado, de agravar a dor.

Não sei aliás se em casos semelhantes não fui culpada disso - já escrevi sobre crimes, sobre desaparecimentos, sobre mortes inesperadas. Já me sentei na cama de filhos assassinados a falar com as mães, já devassei no quarto dela o diário de uma menina morta pelo rapaz que amava. Já ouvi um pai de lágrimas nos olhos enquanto procuravam no rio próximo o corpo da filha e na casa onde não tive coragem de entrar a mãe esperava a notícia fatal. Já liguei, depois de discutir aos berros com um editor a quem dizia que não fazia sentido - e só acedi porque me declarou que se não fosse eu a fazê-lo pediria a outra pessoa - para a família de um estudante Erasmus que desaparecera num rio numa noite de diversão, começando logo por pedir desculpa e esperando que, muito justamente, me desligassem o telefone na cara.

Mas também já recusei fazer coisas que considerava atentarem de modo intolerável contra a minha consciência e sentido ético por de jornalismo, no meu entender, nada terem. Como quando me pediram para seguir os McCann para o Reino Unido ao finalmente abandonarem Portugal - parecia-me que tal mais não seria que voyeurismo e perseguição, e que os leitores do jornal não tinham qualquer direito de saber "o que é que os pais da Maddie andavam a fazer". Não fui e não tenho dúvidas de que fiz bem.

Não é sempre tão claro, porém. Há um código deontológico e há os preceitos da lei do Estatuto de Jornalista, que o emulam, mas não há lá resposta para cada questão que o real e a prática (e as chefias) nos colocam: temos de avaliar por nós e connosco, de cada vez, o que está certo e errado, o que podemos e não devemos fazer, a que dizer sim ou não. Acresce que, sei bem, nem todos, diria aliás muito poucos jornalistas têm hoje em dia a possibilidade e a capacidade (o poder, demos-lhe o nome certo) de dizer não.

Isto dito, e ressalvada a zona de cinzentos em que toda a gente se encontra tantas vezes, há o intolerável. Há aquilo que todos - aqueles que de nós se dedicam, sempre sabendo que vamos falhar muitas vezes, a um esforço de ética e verticalidade - sabemos estar muito para lá da fronteira do erro ou do deslize ou da inconsciência ocasional. Há o nojo puro, a total falta de respeito, a ânsia de devassar, a indiferença e mesmo a deliberação de ferir e destruir. Isso está para lá de tudo aquilo a que se possa chamar jornalismo, é coisa outra: comércio puro, venda de produtos roubados - a vida e a dor dos outros.

Vi com estupor como foi nestes dois casos, o de Beatriz e Pedro, possível fazer descrições atrozes e impossivelmente dolorosas, aventar hipóteses sem qualquer sentido e decerto sem qualquer interesse público, publicar imagens privadas sem um módico de sensibilidade e, a seguir, elencar números de contacto para quem esteja em situação de sofrimento, de perigo ou de necessidade de ajuda - estranho sentido de humor têm os responsáveis destas publicações.

Quem publica tais coisas não consegue, nem por um milionésimo de segundo, colocar-se no lugar da mãe, do pai, dos filhos, da mulher, marido, namorados, amigos? Não consegue imaginar o que será ter de se haver com o incomensurável da perda e ainda com a ofensiva infrene das capas, das peças de TV, das descrições malvadas? Não conseguirá pensar o que sentiria ao saber, ao mesmo tempo que o país todo, o que alegadamente diz a autópsia, se o ente querido morreu logo ou agonizou longamente, se tinha estes ou aqueles ferimentos, se estava vestido ou nu, se deixou cartas ou mensagens e o que diziam?

Que direito se arroga quem isto publica de agravar assim, por dinheiro, lucro, domínio de mercado e até vontade de vingança - como frisa João Pedro Vala num artigo noObservador em que acusa o diretor executivo da Cofina, Octávio Ribeiro, de instrumentalizar a morte de Pedro Lima contra a TVI - o sofrimento dos outros, chafurdando sem piedade no sangue de mortos e vivos?

E que direito temos nós, que assistimos a tal degradação, de nada fazer, de deixar passar, de encolher os ombros e até de arranjar justificações ou álibis do tipo "as pessoas querem saber" ou "a culpa é da polícia e dos agentes judiciários, que lhes contam estas coisas, e eles claro está aproveitam porque vende"? Que direito temos de assistir a este massacre e virar a cara? Que direito temos de achar que isto não é connosco porque desta vez (ainda) não foi connosco? Que direito temos, têm, os que de nós são contribuintes líquidos e cúmplices ativos destes crimes, ao consumi-los, ao validar o seu cometimento, ao encorajar e premiar quem os perpetra, ao não votar ao opróbrio os seus fautores, de ignorar que o sangue mancha também as nossas mãos?

Que direito têm os tribunais e os reguladores de caucionar isto com a sua inação?

Se nada mais nos interpela, se nada nos comove, leiamos, oiçamos o "grito sufocado de dor" de Paula Lebre, a mãe de Beatriz, que no Público, num texto admirável de lucidez e cidadania nos adverte para que "o serviço social de informar, a pretexto da liberdade de expressão a qualquer preço, passa a ser, ele próprio, um veículo perverso de disseminação da violência e do crime."

E nos pergunta: "O que andamos a fazer? Queremos ou não um mundo melhor?"

Tão generosa, Paula, a dar-nos assim, no meio do seu impossível desgosto, o crédito de sermos capazes de distinguir bem e mal e de querermos mesmo um mundo melhor para todos e não apenas para cada um nós. Tão alta e grande, Paula, por no meio do seu martírio olhar para nós e acreditar que a vemos, que queremos saber, que Beatriz não é só uma história que nos é vendida hoje e esqueceremos amanhã, que não a deixaremos ser, como Pedro, mais um produto usado e deitado fora por quem fez dela cifrões, cliques, espaços publicitários e "damos primeiro", "veja aqui", "saiba por nós".

Perdoe-me Paula por não acreditar. Perdoe-me por pensar que a maioria nem sabe do que está a falar e continuará a sintonizar alegremente o canal da Cofina, a comprar as revistas que se deleitam com as desgraças e as devassas, e a fazer campeão de vendas do diário que faz do nojo a sua vitória. Mas muito obrigada por tentar.

A urgência de um estatuto do SNS

Posted: 30 Jun 2020 03:23 AM PDT

«Sem a existência do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (ESNS) a Lei de Bases da Saúde (LBS) é um conjunto de artigos que pouco contribui para a causa da saúde dos portugueses. Porque, e bem, aquela lei tem em vista melhorar a organização e funcionamento do SNS. Assim sendo, na ausência do coração que lhe dá vida e justifica a sua existência, a LBS está a tornar-se numa espécie de bugiganga que se compra nas feiras a um preço bastante convidativo. Tinham sido escusadas tanta discussão, tantas versões, tantas opiniões, tanta disputa, para tudo acabar em meia dúzia de páginas do Diário da República e por lá ficarem a azedarem.

O ESNS é o conjunto articulado de disposições que organiza, ordena e dá sentido ao SNS. Sem ele, tudo quanto agora se faz, faz-se à luz da experiência dos mais de quarenta anos que já leva o SNS. Faz-se com uma mão aqui e outra mão acolá, às apalpadelas, na expectativa de acertar à primeira. Mas o que se tem visto é que a mão aqui tem servido os interesses estranhos ao bem público, e nisso a mão aqui acerta quase sempre à primeira, ao contrário da mão acolá que farta-se de errar para encontrar o que é preciso. Com o vazio criado pela ausência do ESNS, cada um procura fazer à sua maneira, o melhor que pode e sabe, mas o resultado não deixa de ser uma manta de retalhos, sem que os retalhos tenham já qualquer nexo entre eles, sem que exista já qualquer coerência entre as suas peças. Se quiséssemos encontrar um caso em que o todo é menor do que a soma das partes, o SNS seria o melhor exemplo que poderíamos encontrar.

Estando assente que através do MEE, Portugal tem acesso a 500 milhões de euros para ajudar a financiar algumas despesas da luta contra o coronavírus e sendo o SNS o principal actor dessa luta, o risco de a aplicação desse financiamento não obter os resultados desejáveis é grande se o SNS não dispuser de um guião que oriente a melhor utilização desse dinheiro. É que no actual estado das coisas, lançar dinheiro para cima de uma estrutura que se vai aguentando mas que já não consegue ter a agilidade que se exige no seu funcionamento, que é à custa de um esforço exagerado dos seus profissionais que ainda se consegue responder às necessidades da população, é correr o risco de não se ter em conta a melhor e mais útil aplicação desse dinheiro. E bem pode vir a acontecer que uma fracção importante desses 500 milhões de euros vá parar aos bolsos do sector privado, que não deixará agora de estar disponível para ajudar no apoio à pandemia.

Ao considerarmos que é urgente meter mãos à obra e elaborar tão depressa quanto possível o ESNS é também porque não se deve desperdiçar a ocasião para incluir nele as lições retiradas do que correu bem e do que falhou na concepção da resposta à pandemia. Se em muitos aspectos, sobretudo na sua fase de instalação e desenvolvimento, as soluções se mostraram ajustadas ao risco, já na fase de desconfinamento não aconteceu a mesma coisa. O seu planeamento tinha de ter começado muito antes, o envolvimento das comunidades locais tinha sido indispensável e era obrigatória a participação das lideranças informais. É também por isso que é urgente que o SNS seja dotado de um Estatuto que inclua a resposta a todos estes aspectos. Desde a pandemia à dor de dentes.»

Cipriano Justo