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sábado, 24 de outubro de 2020

BE e PCP são um terço de uma maioria. Não chegam adornos no OE

Posted: 23 Oct 2020 03:44 AM PDT

«Daqui a uns meses, virá uma crise social séria e este Orçamento será uma fisga. Quando esta pandemia passar, a pressão sobre o SNS, com tanta consulta e cirurgia adiada, será brutal. A Escola Pública, se não quiser deixar os mais frágeis para trás, terá de fazer das tripas coração. Serão precisos meios. Apesar disto, o Governo propõe-se manter a despesa quase intacta e baixar o défice no único ano em que a UE, não por acaso, não o exige. A isto, o Governo responde com um investimento público “robusto". Mas o aumento de 20% é ilusão de ótica, porque parte de uma base ridícula.

Daqui a uns anos, o Fundo de Resolução terá de receber centenas de milhões do Estado para pagar o empréstimo dos bancos, com juros mais altos, para satisfazer um truque retórico que nos diz que o Estado não injeta dinheiro no Novo Banco. O empréstimo contraído conta para o défice e acabará por ser mesmo pago pelo Estado.

Perante tudo isto, quem viabilizar este Orçamento será justamente responsabilizado. E os primeiros a apontar o dedo ao BE e ao PCP seriam os que agora exigem que o façam.

Na comunicação social, a proposta do Governo é apresentada como a mais à esquerda de sempre. Bloquista, mesmo. Propor apoios sociais no meio de uma tragédia não é de esquerda. É o óbvio e suponho que consensual. Sobretudo quando, olhando para as letras pequenas do apoio extraordinário, percebemos que, para muitos trabalhadores (sobretudo os independentes com rendimentos médios) ele não passa de uma revisão em baixa do que têm. É aqui que o Governo mostra alguma abertura para negociar, porque é dinheiro europeu.

Nenhum partido, talvez com exceção do Chega e da Iniciativa Liberal, será contra os apoios sociais propostos pelo Governo. São o mínimo dos mínimos. Se é isso que faz a diferença neste OE, Rui Rio não se oporá. Se é o investimento público, o de Passos foi mais alto.

Quando, no inicio desta legislatura, Costa fundou uma versão unilateral da geringonça – sem papéis, objetivos ou linhas vermelhas –, quis fazer do resto da esquerda refém. Só que a geringonça nasceu para reverter as medidas da troika. Era esse o seu objetivo. E dele, sobra pouco. Mas até sobra alguma coisa. Pormenores relevantes da lei laboral e, bastante importante para o tempo que aí vem, o subsídio de férias, que nunca voltou à versão anterior à troika. E é exatamente nestes medidas que Costa se recusa a tocar. Ou seja, a suposta geringonça que Costa diz estar viva fica-se pela maioria que permitiria ao PS governar.

Para a habitual distribuição de lugares, como foi a farsa eleitoral para os presidentes das CCDR, com candidatos combinados entre PS e PSD, há bloco central. Para garantir maioria absoluta ao PS sem que ele tenha de ceder em nada de relevante, outros trouxas que se cheguem à frente. Se os eleitores do BE e do PCP quisessem o PS com maioria absoluta teriam votado no PS. Se o seu voto servir para aprovar o que o PS quer, mais uns troféus simbólicos, terão sido traídos.

A eficácia dos deputados do BE e do PCP, que representam quase metade da votação do PS (16%-36%), não se mede em derrotas ou vitórias na comunicação social. Mede-se em conquistas concretas para a vida das pessoas. Se viabilizarem este Orçamento, não poderão fazer oposição séria. Mesmo que António Costa faça o que fez com o último: não o cumprir. Todos lhes lembrarão que a coisa é deles. Incluindo os seus eleitores. Por isso, é bom que seja mesmo deles, na proporção que lhes cabe. Para quem não saiba fazer contas, essa proporção é quase um terço da maioria de esquerda. Não chegam os adornos que lá conseguiram pôr.»

Daniel Oliveira

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Aceitar viver moderadamente

Posted: 22 Oct 2020 03:56 AM PDT

«Não vale a pena dourar a pílula. Os números são claros e correspondem, aliás, ao que se tinha previsto que aconteceria neste inverno. Uma segunda vaga mais forte do que a primeira sem a possibilidade de confinamento, bala que só podíamos usar uma vez. Com o aumento exponencial e previsível dos infetados, é provável que o Serviço Nacional de Saúde entre em ruptura e mais do que certo que o sector privado tentará ficar com a parte barata – os doentes não-covid –, para compensar as perdas financeiras que teve durante a pandemia. Já se sabe que as crises para muitos são sempre oportunidades para alguns.

Valem pouco os gestos dramáticos, as medidas radicais, os abanões. Isso serve para acalmar os mais nervosos e proteger os responsáveis políticos do escrutínio público, transferindo para os cidadãos as responsabilidades do que corra mal. São precisas medidas permanentes, fáceis de entrar na rotina e sem mensagens contraditórias. Há as óbvias, como o uso de máscara. Mas a mais relevante é a redução drástica de contactos. Isto não passa por confinamentos, que teriam efeitos sociais, económicos e de saúde pública devastadores. Não passa pelo isolamento de grupos de risco, porque isso teria efeitos terríveis, como já percebemos pelo que aconteceu nos lares.

Este objetivo exige uma postura diferente da que tem sido exibida por António Costa. O desnorte, com o avanço e recuo na proposta da StayAway Covid, gera desconfiança nas autoridades. E a saída também não é instalar o pânico. Para isso já temos os dois bastonários-abutres que regressam de cada vez que sentem que podem tirar algum proveito político (e no caso da Ordem dos Médicos, também uma ajudinha ao sector privado) das dificuldades. O pânico pode provocar reações imediatas, mas leva a uma fadiga emocional que, ao fim de poucas semanas, tem efeitos contrários aos desejados. Não precisamos, quase meio ano depois deste massacre ter começado, de sustos. É precisa a ideia de um rumo partilhado. Isso passa por regras de convivência que entrem na rotina e pela redução de contactos supérfluos, sem excessos asfixiantes e impraticáveis por muito tempo.

O abismo para onde se estão a atirar vários governos europeus rebenta com os consensos indispensáveis para lidar com esta pandemia nos próximos meses. O que defendo vai contra o ar deste tempo, em que nada pode existir entre o “confina tudo” e o “isto é tudo uma grande aldrabice”. É preciso ganhar a esmagadora maioria das pessoas para comportamentos preventivos voluntários que não destruam as suas vidas, o seu estado mental e o que resta da economia. Reduzirmos drasticamente contactos sem deixarmos de viver. Escolher o que achamos fundamental. Vivermos um pouco menos sem deixarmos de viver. E, em vez de nos darem abanões ou de desatarmos aos gritos uns com outros, dividindo o país entre “histéricos” e “irresponsáveis”, aceitarmos viver moderadamente durante uns meses.»

Daniel Oliveira

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sobre a proposta de um não referendo à eutanásia

Posted: 21 Oct 2020 03:45 AM PDT

«No dia 23 de Outubro o Parlamento vai decidir pela não realização do referendo sobre a despenalização da morte antecipada em Portugal. Já todos adivinhamos que vai ser esse o sentido de voto da maioria, a mesma maioria que aprovou o que agora se pretende referendar. Porquê, então, esta questão agora?

Entendo que a resposta deve estar relacionada com a evocação de um último argumento contra a despenalização da morte medicamente antecipada. Propõe-se o referendo, este não é aprovado, e poderá sempre argumentar-se que a maioria dos portugueses seria contra este processo retirando legitimidade à aprovação de uma Lei neste sentido.

Discordo em absoluto desta ideia. Entendo que um referendo sobre um tema tão complexo não legitima, antes dicotomiza ainda mais a sociedade sobre o tema. Na generalidade, as pessoas tomam decisões a partir das suas crenças, desejos e preconceitos, o que normalmente não resulta bem em decisões difíceis com enormes repercussões sociais. Um referendo colocaria as pessoas ainda mais barricadas atrás das suas certezas, num dos lados e, por defensivas, sem capacidade de dialogar com o outro lado. O que creio precisarmos aprender num tema como este é a lidar com as dúvidas que um processo de antecipação da morte de alguém nos tem que colocar, nomeadamente como encontrar soluções que nos ajudem a diminuir as margens de erro das decisões a tomar.

A lógica da democracia representativa, que como sabemos é um sistema com defeitos e limitações, é eleger pessoas com sensibilidades diversas, para pensarem, ouvindo contributos técnicos, e fazerem escolhas responsáveis sobre assuntos complexos a partir dessa diversidade. E a antecipação da morte a pedido do próprio deve ser dos assuntos mais complexos e difíceis de considerar. Há vários anos que me debruço sobre este tema, procurando contribuir com conhecimento científico e fugindo da dimensão opinativa. Tenho medo daqueles que afirmam posições definitivas e “certas”. Essas opiniões apenas servem para polarizar a discussão e reduzir a mesma a uma dicotomização falaciosa de favor ou contra, altamente condicionadora da capacidade de compreender as diversas perspectivas de um problema como este.

Não, não estamos perante uma escolha simples entre respeitar a vontade da pessoa ou colocar em causa o respeito pela vida humana. Sim, estamos perante uma escolha que implicará compreender o papel do Estado e quais os custos para as pessoas e para a sociedade de, por um lado, prolongar a vida das pessoas e, muitas vezes, o seu sofrimento, ou, por outro, terminar a vida de alguém prematuramente, a seu pedido. Sim, estamos perante uma discussão que pretende ajudar a compreender até que ponto as decisões das pessoas podem estar assentes em medos irrealistas, em convicções mal construídas, ou até em pressões de terceiros. Sim, estamos perante a dificuldade de sabermos até que ponto o desejo de morrer, numa pessoa com doença terminal ou lesão definitiva, se altera ao longo do tempo, e em caso afirmativo, saber como, quando, porquê e qual deve ser o impacto daí resultante. Sim, estamos essencialmente perante um problema complexo de tomada de decisão que queremos que seja o mais representativa possível do melhor interesse do doente. Porque todos já tomamos decisões das quais nos arrependemos depois.

Por isso mesmo me é absolutamente incompreensível como tão pouco se tem estudado sobre o processo de tomada de decisão na eutanásia ou no suicídio assistido. Como também não consigo compreender como podem os psicólogos serem tão pouco parte de um processo como este, quando a maior complexidade não está relacionada com a definição do diagnóstico ou a técnica de antecipação da morte, mas sim com a decisão e as condições de decisão do doente, com o facto de estarmos seguros de que ao acedermos ao pedido do doente estaremos de facto a fazer aquilo que é melhor para ele.

Apelo a que não se tente diluir a responsabilidade de uma decisão destas num referendo. Não se procure politizar ou promover ideologias num tema tão difícil. Vamos procurar, sim, encontrar soluções que limitem e previnam ao máximo potenciais erros de avaliação e que valorizem a relação e a confiança entre profissionais de saúde e doentes. Vamos procurar compreender melhor porque é a evolução do desejo de morrer distinta num doente terminal face a uma pessoa com uma lesão definitiva. Vamos criar condições para que as pessoas possam reflectir, livremente e sem juízos de valor, sobre as suas decisões e receios com alguém capaz de a ouvir e de a compreender, sem com isso (a) julgar. Vamos, portanto, procurar soluções que humanizem os cuidados de saúde e promovam, de facto e deste modo, a dignidade da pessoa.»

Miguel Ricou

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por estatuadesal

(Luís Filipe Castro Mendes, in Diário de Notícias, 17/10/2020)

Il fenómeno è stato fulmineo e folgorante. Dopo pochi anni le lucciole non c"erano piú.
(Pier Paolo Pasolini)


Em criança vivi algum tempo na ilha Terceira. A base aérea americana nas Lajes era todos os fins de semana um lugar de visita em família, onde sons e objetos de um novo mundo, ainda mal conhecido por cá, convidavam ao consumo e acenavam à minha curiosidade.

À data, em 1955, era presidente dos Estados Unidos o republicano Dwight Eisenhower (Ike), o general que comandara as forças que, do lado ocidental, fizeram cair o nazi-fascismo na Europa. Um soldado americano (negro, por sinal) que gostava de brincar comigo, o Jimmy, ofereceu-me então um pin lindíssimo (achei eu na altura) que encerrava o slogan eleitoral de Eisenhower: I LIKE IKE.

Muito mais tarde, quando li Roman Jakobson, descobri que esta sigla lhe serviu para exemplificar aquilo a que o autor chamou "função poética da linguagem", que eu glosarei aqui como a faculdade de as palavras brincarem consigo próprias.

A música das palavras, o jogo das palavras umas com as outras, a chamada função poética, tudo isto é coisa que aprendemos muito pequenos, logo que começamos a falar. No meu caso, a beleza de I LIKE IKE foi seguida de muitos poemas que minha mãe me lia e que eu, mesmo que não atingisse todo o seu sentido, vivia na música, no ritmo e no jogo sem fim que as palavras brincavam no poema.

A poesia não é difícil, ela dá-se a cada um de nós muito cedo na vida e aceitá-la ou recusá-la está desde sempre ao nosso alcance. Mas entre nós (e não só entre nós) a poesia parece estar a viver hoje como a Cinderela da literatura.

Já ninguém sabe já muito bem para que serve a poesia e os que a leem são quase sempre os que também a escrevem ou os que fazem parte de uma tribo silenciosa e secreta, assintomática eu diria, que poucas vezes encontra os seus semelhantes e por isso faz uma festa cada vez que reconhece algum: os leitores de poesia.

O espanto que causou a atribuição do Prémio Nobel a uma criatura que escreve poemas e não aparece na televisão é paralela a uma corrente atitude de maravilhamento bacoco com uma ideia arcaica da poesia como aura sagrada que investe de distinção e doura de vaidade as elucubrações de quem se professe seu seguidor. E é coexistente essa ideia sublimada de poesia, que inventa aprendizes de feiticeiro e promove maldições de ópera bufa, com o real desprezo pela poesia que o dia a dia e a leitura dos jornais nos vai indicando.

E no entanto cada vez mais vozes jovens e menos jovens se aventuram por esse caminho, escrita que dificilmente promete publicação ou reconhecimento a quem começa, escrita que exige tudo e nada dá a quem a ela se vota. Só os que escolhem a dificuldade merecem esse rumo, por isso os poetas não começam por ser populares, bonzinhos, jeitosos ou engraçadinhos. Começam por reconhecer que, como avisava Jorge de Sena na sua Carta a Um Jovem Poeta: a poesia é a solidão mesma, não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. E isso é reconhecer que na poesia tudo aprendemos e nada sabemos, nada a não ser a necessidade bruta de seguir essa obstinação sem recurso e sem remédio de continuar a ferirmo-nos contra as palavras.
De Louise Glück, poeta mais que consagrada no cânone da poesia moderna dos Estados Unidos, parecia que nunca aqui ninguém ouvira falar. Tivesse ela escrito um romance saboroso e badalado, fosse ela porta-voz de uma qualquer causa identificada, já os meios de comunicação lhe teriam concedido a mercê de uma referência. Mas não era o caso. Louise Glück só carregava consigo a ferida da poesia, só trazia com ela a sua própria voz sofrida. É uma solidão que assusta e convida a afastar-nos. Só a tribo solitária e assintomática dos leitores de poesia reconheceu nela o odor selvagem de caça por que a poesia se dá a conhecer.

A poesia coexiste mal com o ruído em que estamos a ver desfazer-se a música do mundo. A poesia não é fácil, mesmo quando se dá sem reservas nem disfarces. Por isso ela é relevante e valiosa, mesmo que pouco já esperemos dela. E por isso as palavras de que é feita continuarão a acender luzes por dentro das nossas noites. Teimosamente, como os pirilampos antes de desaparecerem.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Reforçar o SNS para além dos anúncios

Posted: 20 Oct 2020 03:34 AM PDT

«Não foi preciso uma pandemia para compreendermos que o SNS, para se fortalecer como pilar da nossa democracia, precisa de profissionais, de investimento, mas também de uma estratégia. O modelo que vigorava desde os anos 90 enfraquecia o serviço público que se tornava numa plataforma de contratação a privados, sem ganhos, quer na qualidade dos cuidados, quer na poupança de recursos financeiros. Esta foi a debilidade que António Arnaut e João Semedo fizeram questão de expor, quando escreveram um projeto de nova Lei de Bases da Saúde.

A nova Lei de Bases foi um trabalho difícil, exigiu negociações duras com o PS, mas produziu alguns instrumentos para a organização futura do SNS. O passo seguinte seria, tal como previsto em 2019 e inscrito no Orçamento para 2020, um reforço em 8400 profissionais adicionais, o início da definição de um regime de exclusividade no SNS e a aquisição de meios de diagnóstico. São medidas óbvias, se pensarmos que o SNS gasta milhões a contratar fora os profissionais e meios de que não dispõe. Medidas que a pandemia tornou ainda mais urgentes.

Apesar deste compromisso, assente num diagnóstico consensual, em 2020 o SNS está a perder quase mil médicos, nada se avançou no regime de exclusividade e pouco foi feito para internalizar os meios de diagnóstico.

Os concursos abriram já perto do fim do ano e enfrentam duas dificuldades que põem em causa toda a sua eficácia. A primeira é que, face às condições laborais e remuneratórias, o SNS não consegue atrair e fixar os profissionais necessários. Veja-se que ficaram por preencher mais de 100 vagas para médicos de família, apesar de termos mais de um milhão de pessoas sem médico de família. A segunda dificuldade, que se aplica em particular aos médicos especialistas, resulta do poder da Ordem dos Médicos para limitar artificialmente o número de vagas disponíveis para formação, pondo em causa a quantidade de especialistas futuros.

Se queremos reforçar o SNS e garantir que ele enfrenta a pandemia sem descuidar todos os outros serviços, não basta abrir concursos. É preciso defender as condições de trabalho e dedicação dos profissionais ao serviço público de saúde. Por isso, o Bloco quer que o Governo contrate os profissionais com que se comprometeu, detalhando o calendário e localização destas contratações, mas essa medida só será efetiva se for acompanhada de outras, que fixem os profissionais no SNS, como o regime de exclusividade e a criação da carreira de técnico auxiliar de saúde. Estas medidas, que nos separam do Governo no Orçamento, não são detalhes. Não podemos aceitar um compromisso que sabemos que o Governo não tem instrumentos para cumprir. Responsabilidade é olhar para o SNS, compreend.er o que correu mal e propor medidas para que não se repita.»

Mariana Mortágua