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sábado, 21 de novembro de 2020

Fantasmas de um Natal passado

Mariana Mortágua

Mariana Mortágua

17 Novembro 2020 às 00:04

Opinião

"Mais do que nunca, as novas políticas devem atuar na margem". Esta foi a frase escolhida por Mário Centeno, durante a 10.ª conferência do Banco de Portugal, para defender a limitação dos apoios do Estado à economia, em volume e duração.

O governador admite que a crise terá efeitos estruturais mas recusa qualquer alteração de fundo nos apoios sociais ou um apoio "massivo" à economia. Preocupa-o que o investimento público vá além dos projetos já em curso e que sejam criadas "barreiras à mobilidade do trabalho", ou seja, medidas legais que visem travar os despedimentos.

Com palavras diferentes e de forma mitigada, o argumento de Mário Centeno tem a mesmíssima matriz ideológica que, no passado, sustentou as políticas de austeridade e as "reformas estruturais" que castigaram o país.

Porém, sem medidas orçamentais e legais para manter empregos e penalizar os despedimentos (como o aumento do valor das indemnizações aos trabalhadores despedidos), o resultado será o aumento brutal do desemprego, muito dele de caráter estrutural. Após a pandemia, este desemprego não será absorvido pelos setores que Centeno designa como "mais dinâmicos". Sobretudo, isso não acontecerá sem um investimento público forte e dirigido, combinado com um apoio massivo que sustente rendimentos, pois é da procura interna que depende boa parte das empresas. E, mesmo com a adoção dessas políticas (coisa que o Governo resiste a fazer), o desemprego aumentará. Sem novas regras para os apoios existentes e a criação de outros, este novo desemprego só pode transformar-se em desigualdade e pobreza, agravadas e estruturais.

Mário Centeno conforma-se com o pior cenário. E tudo em nome de uma preocupação - o aumento da dívida pública. Ora, a realidade já provou que a dívida é caprichosa e ingrata, que se alimenta do desemprego e da recessão. Políticas débeis, como aquelas sugeridas por Centeno, não conseguirão evitar essa deriva.

Mais eficaz seria, como referia o presidente do Parlamento Europeu, cancelar a dívida gerada no combate à covid. Fazê-lo é apenas uma decisão política. Mas o que pode esperar-se, quando vemos os partidos socialistas europeus a defenderem condicionalidades para o acesso aos fundos de recuperação, chegando a admitir sanções por incumprimento das orientações da Comissão?

Com a crise regressa, pelas mãos do costume, o discurso das inevitabilidades. Em 2012, os decisores europeus escolheram impor um plano de reengenharia social e económica baseado no empobrecimento da população trabalhadora. Impõe-se um corte definitivo com as ideias que geraram aquelas políticas erradas. E engana-se quem achar que a experiência do passado faz desta uma batalha ganha. Ela está só a começar.

*Deputada do BE

Respostas mínimas, crise máxima

Posted: 20 Nov 2020 03:35 AM PST

«Há duas formas de errar profundamente na resposta a uma crise. A história mostra que a mais habitual é ignorar a origem da crise, o que leva não só a respostas erradas como a na maior parte das vezes ao desastre. A segunda forma, menos banal mas não menos problemática, é a de responder com medidas pequeninas perante uma grande crise - o tamanho importa nas respostas públicas para a economia.

Foi no sossego do seu cargo dourado de governador do Banco de Portugal que Mário Centeno entrou no debate sobre as respostas públicas na presente crise. Estando o país com a segunda vaga da pandemia nas mãos, havendo vários setores económicos que legitimamente contestam a falta de apoios públicos, tendo disparado o desemprego assustadoramente batendo agora à porta de 655 mil pessoas (das quais só 230 mil recebem subsídio), o refastelado governador afirmou doutamente que “mais do que nunca, as novas políticas devem atuar na margem”. De uma penada esclareceu o caminho que defende: limitação dos apoios sociais e à economia, medidas pontuais com duração restrita no tempo e nos montantes. Afinal, tentar tapar com remendos o enorme buraco que a crise económica está a criar - assim não vamos lá.

Centeno até reconhece efeitos estruturais desta crise (pudera!), mas dá um rotundo não a respostas estruturais. Por ele não se mudam apoios sociais durante uma crise, nem se usa o investimento público para dar um empurrão à economia. Porquê? Porque em primeiro lugar está a dívida pública, só depois as pessoas, a economia e o país. Parece que recuamos a outros tempos de má memória.

A dívida pública já foi o argumento com que nos chantagearam em crises anteriores. Serviu para legitimar um programa destruidor da troika, implementado por PSD e CDS, que cumpria uma agenda punitiva contra os países do sul. Como hoje sabemos, a austeridade acrescentou crise à crise que já existia. É um dos exemplos em que as medidas económicas implementadas não tinham relação nenhuma com a crise que verdadeiramente existia - seguiam uma agenda ideológica (quer nacional, quer europeia).

A nova cartilha Centeno ressuscita esse papão para pedir contenção. No entanto, sem medidas fortes para enfrentar a crise, será a força da crise que nos dominará. Sabemos o que acontecerá se não protegermos o emprego e o tecido económico: as falências suceder-se-ão e o desemprego será catapultado. Não é teoria, é a certeza de um mau futuro a desenhar-se à nossa frente se seguirmos os mandamentos do governador. E, se ainda estamos a tempo de evitar esse cenário, o momento em que as medidas anti-crise são executadas é uma variável fundamental para o seu sucesso. Chegar tarde pode, muitas vezes, significar chegar tarde de mais. São estes os riscos que corremos.

Depois das palavras do novel governador, foi a vez da Comissão Europeia entrar neste debate. Desta feita, perdeu-se em elogios ao Orçamento do Estado apresentado pelo Governo. Mas há elogios que são venenosos: afirmam existirem “sustentabilidade orçamentais prudentes no médio prazo” e que “as medidas de apoio devem ser temporárias e não comprometer a política orçamental no período pós-crise” - quase parecem repetir Centeno (ou terá sido ao contrário?).

A prudência aqui não é uma virtude, pode ser um grave problema como estamos a ver, deixando pessoas e setores económicos para trás. Soa a desistência. E, se deixarmos a crise avançar, mais difícil e custoso será sair dela. Não por acaso, num comprimento de onda bem diferente, o presidente do Parlamento Europeu, defendeu o cancelamento da dívida gerada no combate à covid.

Não é inevitável sermos vencidos pela crise, deixar cair empresas que eram viáveis antes da pandemia, permitir a destruição de postos de trabalho que serão necessários daqui a meses. Essa é a proteção que precisamos para o país e que é justificada por este momento de emergência. Não queremos recauchutar chantagens nem abrir portas a fantasmas, é uma resposta corajosa que se exige em nome do futuro do país.»

Pedro Filipe Soares

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A queda

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 20/11/2020)

Daniel Oliveira

Em março, a ansiedade coletiva era compensada por uma sensação de partilha. Imagens virais de serenatas para animar os vizinhos em tempo do confinamento davam-nos, no meio do drama, algum autocontentamento com a redescoberta romantizada da ideia de comunidade. Mas, à medida que a crise vai empurrando mais gente para o desespero, essa paz pontuada pela divergência sobre a melhor forma de lidar com a pandemia vai dando lugar à luta pela sobrevivência. Nunca estivemos todos no mesmo barco, esta crise nunca foi simétrica. Essa ilusão acabou e a notícia de que mais de 80% das doses de vacinas estão reservadas para 14% da população mundial mostra que as coisas são como sempre foram. Em Portugal, como noutros países, a política cumprirá a função de traduzir a crise económica e so­cial. E quem siga a via negacionista estará em melhor posição para lucrar com tudo isto. Sei que é um paradoxo que ganhe quem nega a relevância do vírus quando há cada vez mais mortes que a confirmam. Mas as vítimas da crise serão sempre mais do que as vítimas do vírus. E estarão vivas. Quando a pandemia passar e a crise continuar, cada um olhará para a sua tragédia pessoal e procurará culpados. Como sabemos pelas alterações climáticas, os negacionistas não têm de dar respostas a um problema que não reconhecem. E estão dispensados de encontrar o equilíbrio entre saúde e economia, segurança e liberdade. No fim, a culpa será das medidas e de quem as impôs. Os protestos da restauração foram o primeiro petardo. Quando se confirmar que não salvámos o Natal, outros virão. E à medida que a crise e a fadiga forem apertando será cada vez mais fácil espicaçar a irracionalidade.

É uma pandemia num país pobre, com um Estado e uma economia frágeis. O descontentamento é inevitável. E nem preciso de dizer quem, no espectro partidário, mais ganhará com isto. No acordo dos Açores ou na entrevista que a TVI fez a Ventura está toda a displicência de uma elite política e mediática impreparada para lidar com um oportunismo perigoso que nos bateu à porta no pior momento.

Como na anedota do início de “La Haine”, de Mathieu Kassovitz, isto “é a história de um homem que cai do 50º andar e que repete incessantemente para se tranquilizar: ‘Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem.’ Mas o importante não é a queda, é a aterragem.” Tentemos minorar os efeitos das tragédias sanitária e económica. Mas não continuemos a ignorar de forma irresponsável as suas consequências políticas. A aterragem vai ser brutal.


A mesada

Há dois anos que as sanções europeias à Hungria estão a ganhar pó numa gaveta. Há mais do que isso que o PPE anda a fingir que se zanga com Orbán. Se a UE é um espaço para democracias, Hungria e Polónia já deviam ter sido suspensas ou expulsas. Mas o que não fez em anos, a Europa achou que era de fazer agora, no meio de uma pandemia, associando o fundo de resolução ao respeito pelo Estado de Direito. Quem desrespeita a democracia não recebe a mesada. É como punir o homicídio com coima.

Um Estado autoritário pode votar e pagar, mas não pode receber. Imagino que se não precisar do dinheiro até pode ser autoritário. Como Hungria e Polónia mantêm o seu direito de veto, aconteceu o que se imaginava: bloquearam todo o processo. E também se conhece o fim: ou a exigência pelo respeito pelo Estado de Direito se transforma numa proclamação vazia ou a cláusula cai. A Europa, que foi incapaz de castigar estes dois países até agora, não vai querer afundar-se por causa disto. E até posso adivinhar que, no fim, haverá castigo para quem não aplique as “reformas estruturais” holandesas, mas não para quem maltrate a democracia. Ou esta não fosse a “Europa dos valores”.

Porque não podemos desistir de nos indignarmos

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/11/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Uma das muitas coisas que a minha mãe me ensinou em vida foi a olhar bem para a cara das pessoas para adivinhar o que se ocultava atrás delas. Lembrei-me bem disso quando olhava para a cara de Tomás Correia, o ex-presidente do Montepio, quando via as suas estudadas roupas e a sua pose de banqueiro presumido, as suas falinhas mansas de engana-tolos e, no final, o seu desesperado esbracejar para se manter agarrado a um lugar que parecia e imaginava vitalício. Estava ali, à frente daquela espécie de banco mutualista, graças a uma curiosa aliança entre socialistas, maçons e católicos, para além de gente de todas as proveniências e influências — como ficou bem demonstrado na lista de ‘notáveis’ que veio a público apoiar a última recandidatura do Dr. Tomás Correia ao Montepio, decerto retribuindo alguma ‘atenção’ deste recebida a seu tempo.

Porém, já então se adivinhava, mesmo para quem estava de fora, que havia um incêndio a arder em lume brando na casa e que quem de direito uma vez mais fechava os olhos, fingindo não ver nada nem cheirando nada. O Montepio aguentava-se no azul por misericórdia de um crédito fiscal de 800 milhões a favor do Estado, que lá se mantém e que, adivinhem, obviamente nunca será pago. Mas nem seria preciso ser um atento supervisor para, sem sequer cumprir o dever de meter o nariz nas contas da prestimosa agremiação, chamar o Dr. Tomás Correia e, seguindo o ensinamento da minha mãe, dizer-lhe: “O senhor vai-se embora porque a sua cara não me inspira confiança.” Ele acabou por sair, é certo, empurrado por todos os lados, mas com anos de atraso e imagino que bem reformado. E lá deixando homem por si, com o apoio da maioria dos sócios.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Agora, um grupo de associados, valendo-se da sua pretérita condição de minoritária oposição à gestão de Tomás Correia, veio apelar ao Governo para que acorra ao Montepio, onde se verificam, dizem-nos, “dissonâncias financeiras”. Isto, é: está em muito maus lençóis, suponho. Ao que parece, a diferença destas para as “dissonâncias financeiras” que o Novo Banco, sempre escudado nos contribuintes, apresenta invariavelmente todos os anos (acaba de anunciar um novo recorde de 800 milhões, antes mesmo de fechar o ano), são, apesar de tudo, favoráveis à gestão do Montepio: o Montepio perde dinheiro porque não sabe como o há-de evitar; o Novo Banco perde dinheiro vendendo património e, quanto mais vende, mais perde. Se o Novo Banco é um autêntico case study de gestão bancária a nível planetário e um motivo de eterna anedota em matéria de contratos públicos nas Faculdades de Direito, o Montepio era um caso tão previsível como adivinhar a data do Natal todos os anos.

Pelo que, e não existindo desta vez algum contrato escondido de sacrifício dos contribuintes no altar da banca, a solução é evidente e nem merece conversa: deixem-no entregue à sua sorte. Lamento muito pelas excelentes entidades cujas poupanças ficarão a arder. Não duvido que elas existam e que o seu dinheiro tenha custado a poupar. Mas, por isso mesmo, deveriam ter-se ocupado em tomar conta dele antes. Mas, se não o fizeram quando o deviam ter feito, agora os 600.000 sócios do Montepio, as dezenas de notáveis que vieram jurar em público que o Dr. Tomás Correia era um banqueiro de primeira água, os seus amigos de avental e de sotaina, tenham a decência mínima de não vir pedir a um país exangue e a um Estado forrado de dívidas que pague a sua irresponsabilidade.

2 No dia 11 de Março passado, o ucraniano Ihor Homeniuk, de 40 anos de idade, casado e pai de uma rapariga de 14 anos e de um rapaz de 9, entrou em Portugal pelo Aeroporto da Portela, com um visto turístico. Quinze horas depois, morria numa sala do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do mesmo Aeroporto, após ter sido espancado até à morte e em termos de uma cobardia e selvajaria inomináveis, às mãos de três agentes do SEF e perante a cumplicidade e a passividade de mais nove outros elementos. O motivo: ser suspeito de um crime cometido por milhões de portugueses ao longo das últimas décadas, qual era o de querer emigrar para onde encontrasse melhores condições de vida. Desde então, a quadrilha de assassinos (surpreendentemente mantida apenas em prisão domiciliária, com a justificação da covid), remeteu-se a um pacto de silêncio e ao mesmo silêncio se remeteu a directora do SEF, Cristina Gatões.

Esta senhora directora do SEF, como é evidente, não tem a mais pequena condição de dignidade para se manter um dia que seja a mais no cargo que ocupa

Durante oito meses, a responsável máxima por um serviço que durante 15 horas se entreteve a matar à pancada um cidadão estrangeiro não achou necessário dar uma palavra ao país. Uma tentativa de explicação, um pedido de desculpas, uma nota de nojo e de estupefacção, uma garantia de que aquilo não era o habitual nos serviços que dirigia. Mais: nem sequer entrou em contacto com a família da vítima, nem, aparentemente, se incomodou a abrir uma investigação, de alto a baixo aos serviços do SEF no Aeroporto de Lisboa. Ou a instaurar um processo disciplinar e expulsar da função pública aqueles senhores. E agora, que finalmente quebrou o silêncio numa entrevista a Cândida Pinto, da RTP, revelou ainda que nunca falou com os implicados no crime pois que “primeiro quero que lhes sejam assegurados tudo o que são direitos enquanto arguidos”. Ou seja, está mais preocupada com os direitos dos criminosos do que com os da vítima, que já cá não está para os reivindicar, e vai esperar anos até ao trânsito em julgado da sentença judicial para tentar saber de viva voz junto deles como é que aquilo foi possível. Para perceber que cultura de bestialidade e de impunidade era essa que se vivia, ou viverá ainda, no aeroporto de Lisboa, que a sua directora desconhecia e que permitia a três polícias dispor a seu bel-prazer da vida de um ser humano e enxovalhar Portugal aos olhos do mundo. “Achei importante — diz ela agora — manter-me prudentemente em silêncio enquanto as investigações se faziam.” Achou importante? Importante para quê? Para nos deixar mais sossegados, para nos tirar da lista negra do Comité da Tortura da União Europeia? Para ensinar aos senhores do SEF que o nível de um Estado de Direito se começa a medir exactamente pela forma como um estrangeiro é recebido nas fronteiras de um país? Ou para que do seu uivante silêncio os restantes elementos do SEF concluíssem que, antes do mais, ela estava solidária com os direitos de defesa dos assassinos, assim evitando a contestação interna? Para quê e para quem era importante o seu prudente silêncio?

Esta senhora, como é evidente, não tem a mais pequena condição de dignidade para se manter um dia que seja a mais no cargo que ocupa. Quanto mais não seja, pela resposta que deu a essa mesma pergunta: “Nunca poderia demitir-me porque era uma responsabilidade à qual não poderia fugir. Abandonar não adiantaria nada.” Adiantaria, sim, minha senhora. Lisboa ficaria prudentemente mais limpa.

3 Ainda a tempo, porque, de facto, há coisas que não podem passar em vão. A propósito dos atentados de Nice, em que um muçulmano tunisino, recém-desembarcado na Europa via Lampedusa, matou, degolando, três mulheres que rezavam na catedral, twitou D. Manuel Linda, bispo do Porto (sim, os bispos também já pregam no Twitter): “O atentado não é a luta do Islão contra o Cristianismo, é o resultado dos preconceitos daqueles europeus que não só não fomentam o diálogo intercultural e inter-religioso como estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões.” Esta afirmação é infame, não há outra palavra para a definir. Não só o bispo não tem uma palavra de horror e de compaixão para com três fiéis que foram degoladas porque rezavam a Deus (tanto que, depois teve de acrescentar novo tweet a dizer que condenava os ataques), como inocentou o assassino que matou por ódio religioso e acusou da barbárie aqueles que, não tendo religião, jamais alguém poderá acusar de matar por tal motivo. E esquece ou ignora que em França existem mais de mil mesquitas ou madraças onde os muçulmanos ensinam e exercem livremente a sua fé, muitas vezes, porém, fazendo delas escolas de incitamento ao ódio e ao terrorismo. O mundo pode estar de pernas para o ar, mas ainda é suposto um bispo ter a cabeça na terra e a palavra no Evangelho. Eis um bom exemplo que ele dá do tal fanatismo religioso que quer que não se acuse.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

A democracia não pode ser refém de quem não a quer

Posted: 19 Nov 2020 04:12 AM PST

«A União Europeia (UE) adiou a adesão da Turquia para as calendas gregas, com o receio não assumido da integração de um país muçulmano, baseando-se no argumento sensível e sensato do incumprimento do Estado de direito. Erdogan encontrou nessa recusa dissimulada os argumentos para diminuir ainda mais as liberdades e garantias num país historicamente hesitante entre o Ocidente e o Oriente.

A ameaça a esse denominador comum europeu da democracia e do Estado de direito não veio de Ankara, mas sim do cavalo de Troia do populismo nacionalista que tomou conta de Varsóvia e de Budapeste. Polónia e Hungria, ao bloquearem a aprovação do orçamento plurianual, não estão apenas a paralisar as economias dos restantes Estados da União num cenário de crise geral. Estão a sabotar as regras e valores básicos de uma comunidade assente em princípios democráticos e a fazer a defesa da sua autocracia.

A retaliação dos dois países, por causa do mecanismo que faz depender o acesso a fundos extraordinários do respeito pelo Estado de direito, que prejudica todos os cidadãos europeus e a própria UE, expondo a sua inércia e inaptidão num momento tão crucial, é a confissão de quem não nutre pela democracia qualquer empenho ou respeito e que faz da discriminação e da perseguição a minorias uma política desumana e nada cristã. Só Angela Merkel pode conseguir uma decisão por unanimidade.

Merkel, a defensora do alargamento a leste, é o espelho da moderação na Europa, e não hesitou em se afastar higienicamente desse populismo autocrático no momento certo, quando se torna cada vez mais atraente transformar esse capital eleitoral em algo palpável e açoriano. Rui Rio pode falar alemão, mas não é Merkel.

Donald Trump inspirou autocratas por todo o lado e alguns deles têm assento no Conselho Europeu. A eleição de Joe Biden não terá reflexos apenas nos EUA. A vitória da moderação, nestes tempos de radicalização e polarização, pode representar um novo período de valorização da democracia e de rejeição da demagogia mentirosa de políticos sem escrúpulos. A boa notícia é esta: Trump vai deixar de ser a caução destes autocratas. A má notícia é que estes poderão não ter assento em Washington, mas continuarão a ter o seu lugar à mesa em Bruxelas. A democracia europeia não pode ser refém de quem a recusa.»

Amílcar Correia