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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Um vergonhoso ataque à liberdade de imprensa e o monstro que ela alimentou

 


por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 18/01/2021)

Daniel Oliveira

Num mesmo processo, uma procuradora investiga uma fuga de informação onde ela poderia ser uma das suspeitas e dois jornalistas são vigiados pela PSP, sem a autorização de um juiz, por estarem a cumprir o seu dever deontológico. Pôr em causa a proteção das fontes é pôr em causa o artigo 38º da Constituição. Quem, em troca de cachas, andou a transformar magistrados em heróis justiceiros, aos quais nenhum limite deve ser imposto, teve a oportunidade de conhecer o monstro que ajudou a criar.

Sempre fui e continuarei a ser crítico dos julgamentos mediáticos, que substituem a sentença em tribunal pela sentença nos jornais. E continuarei a criticar a confusão entre investigação e receção de peças processuais, sem qualquer cruzamento de fontes. Recuso-me a chamar a isso jornalismo de investigação. E sou, como saberão, muitíssimo crítico da forma como se faz este tipo de jornalismo no “Correio da Manhã”.

Mas não é isto que está em causa na inacreditável investigação a jornalistas, com recolha de imagens dos seus movimentos por parte da PSP e acesso às suas contas bancárias. O que está em causa, para além do ataque à liberdade de imprensa, protegida constitucionalmente, é o Ministério Público usar os seus poderes para benefício próprio e, mais grave ainda, em descarado conflito de interesses. Vamos por partes, tendo como guião a completa notícia do “Observador” que depois foi completada pela da própria “Sábado”.

Em março de 2018, Henrique Machado, que era editor do “Correio da Manhã” (hoje está na TVI), e Carlos Rodrigues Lima, subdiretor da “Sábado”, foram os primeiros a anunciar a detenção pela PJ de Paulo Gonçalves, o braço direito de Luís Filipe Vieira, no âmbito do caso e-toupeira. Perante esta fuga de informação, relativamente banal quando comparada com o que diariamente chega aos jornais e televisões de investigações em curso, o Ministério Público decidiu abrir uma investigação.

A primeira perplexidade é em relação a quem dirige a investigação: Andrea Marques, uma das magistradas que participou nas diligências no caso e-toupeira. Ou seja, uma das possíveis suspeitas de passar informação. Que teve, para dirigir o caso, de ser automaticamente excluída dessa suspeição. E foi ela que pediu esclarecimentos ao seu colega de investigação, Valter Alves. Quando lhe solicitou a lista dos intervenientes no inquérito, recebeu quatro nomes do Ministério Público. Entre eles, estava o de quem lhe dava a informação e o dela própria. Tudo em casa, portanto. De resto, eram pessoas do TIC, da PJ e do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça. Excluída a sua própria casa, restavam a PJ e os tribunais. Não bastava o Ministério Público investigar-se a si mesmo, dispensando-se automaticamente dessa investigação, escolhia uma magistrada que poderia ser suspeita para tratar do caso.

DCIAP, Direção Nacional da PJ e à Unidade Nacional de Combate à Corrupção foram alvos de diligências da procuradora Andrea Marques. Foram apreendidas caixas de e-mails, discos rígidos e telemóveis de vários elementos da PJ, incluindo do topo de hierarquia, no que tresanda à utilização de meios de investigação para uma guerra corporativa. A investigação acabou por chegar a um coordenador da PJ. O diretor da PJ, Luís Neves, acabou por dar conta de que alguma da informação apreendida podia estar classificada e protegida pelo segredo de Estado.

Temos esperado pacientemente por todos os inquéritos internos sobre a permanente fuga ao segredo de justiça no Ministério Público. Nunca se chega a nada, nunca alguém é realmente responsabilizado. Agora foi. Porque a fuga terá vindo de outro lado e isso o Ministério Público não tolera. E usa os instrumentos que a lei lhe dá para pôr na ordem todos os que, fora da sua corporação, tenham o comportamento que internamente é tolerado (ou mesmo promovido).

Por fim, o mais grave. Para provar a fuga de informação, os dois jornalistas foram vigiados pela PSP, com recolha de imagens suas ao longo de cerca de dois meses – um procedimento que não teve validação de um juiz – e levantado o sigilo bancário de um deles, apesar de não existir qualquer suspeita de corrupção. O DIAP diz que não era necessária autorização de um juiz, a Ordem dos Advogados e os juristas desta área defendem que sim. A desproporção de meios para a natureza do ilícito é evidente. Ordem dos Advogados, Sindicato dos Jornalistas e Entidade Reguladora para a Comunicação Social mostraram o seu repúdio por esta violação do direito de proteção das fontes.

A liberdade de imprensa tem proteção constitucional. E a proteção de fontes é garantida pela Lei de Imprensa e pelo Código Deontológico dos jornalistas. E pôr em causa a proteção das fontes é pôr em causa o artigo 38º da Constituição da República.A quebra deste sigilo não pode acontecer por vigilância policial, sem qualquer intervenção de um juiz. Isso não impede os que têm de defender o segredo de justiça de agir, investigando aqueles a quem esse segredo é confiado. É um atentado à liberdade de imprensa Ministério Público pôr polícias a vigiar jornalistas que fazem o seu trabalho, quando estes cumprem as regras que a lei e o código deontológico lhes impõem. E foi isso que aconteceu.

Como diz João Garcia, o problema está na lei, que impõe aos jornalistas o que a sua profissão e o seu condigo deontológico só podem recusar. Investigar um jornalista para conhecer as suas fontes é o mesmo que investigar um padre, um médico ou um advogado para desvendar um segredo profissional e chegar ao autor de um crime. Sabemos o que vem depois: escutas a jornalistas e, sem qualquer capacidade para proteger fontes, fim da liberdade de imprensa. João Garcia remata com o que defendo há anos: “A verdadeira hipocrisia é haver segredo de Justiça para tudo quanto interessa à sociedade.”

No mesmo processo, uma procuradora investiga uma fuga de informação de que ela poderia ser uma das suspeitas e dois jornalistas são vigiados pela PSP por estarem a cumprir o seu dever deontológico, que a lei protege. Tudo isto é inaceitável. Mas tenho de deixar uma farpa: quem, em troca de cachas, andou a transformar magistrados em heróis justiceiros, aos quais nenhum limite deve ser imposto, teve a oportunidade de conhecer o monstro que ajudou a criar. Estou, aliás, curioso para ler como alguns jornalistas que têm defendido poderes quase ilimitados para o Ministério Público explicarem porque é que os devemos (e devemos) limitar em casos como estes. Como conseguem explicar que, quando chega à liberdade de imprensa, há valores acima da eficácia da investigação.

Se dúvidas houvesse sobre a cumplicidade de alguma comunicação social com aqueles de que inevitavelmente acabaria por ser vítima basta olhar para a capa da “Sábado”, onde esta vergonhosa perseguição é denunciada. Nela, está a atual Procuradora Geral da República. Pode dizer-se que o processo continuou o seu estranho andamento quando Lucília Gago já era PGR. Mas ele iniciou-se com Joana Marques Vidal, como o próprio artigo da revista reconhece. Na capa, lê-se: “Pela primeira vez em democracia, o Ministério Público, liderado por Lucília Gago, mandou seguir e fotografar jornalistas e vasculhou as suas contas bancárias.” Se a segunda parte parece ser verdadeira, a primeira é objetivamente falsa. O Ministério Público que “mandou seguir e fotografar jornalistas” em abril de 2018 (data que a próprio “Sábado” nos dá) era liderado por Joana Marques Vidal. Lucília Gago só tomou posse em outubro.

Que as vítimas desta perseguição queiram, na capa da sua revista, esconder as responsabilidades da anterior procuradora apenas nos recorda até que ponto a comunicação social se deixou envolver nas guerras corporativas da justiça. Faz parte delas, aliás. E isso também ajuda a explicar o monstro. Quem não é escrutinado com independência deixa de conhecer os seus limites.

#VermelhoemBelém

Posted: 17 Jan 2021 03:58 AM PST



 

«Os símbolos não são coisa pouca para a humanidade: é a capacidade de criá-los, de representar o real através deles, que nos distingue dos outros animais. Num símbolo condensa-se, em determinados momentos, toda uma história, neles se sintetiza um processo, um conflito, com eles se mobiliza uma causa. São usados como arma para ofender, para oprimir, para marcar, para estigmatizar. São reivindicados como expressões de luta, de libertação, de resistência. São disputados nos seus significados. 

Não é de agora que o batom vermelho está nessa liça. No século XVIII, havia ainda quem considerasse que pintar a cara era “obra do diabo” e sinal de “feitiçaria” e, no parlamento britânico, um deputado chegou mesmo a propor uma lei contra as mulheres que usavam batom. O medo masculino de uma feminilidade não tutelada fez com que, nas narrativas conservadoras desses tempos, os lábios coloridos de vermelho fossem codificados (e publicamente censurados) como a manifestação de uma moral duvidosa ou de uma heresia face aos bons costumes. Na realidade, o que assustava os machos da época (e porventura os de hoje) era que ele pudesse ser um sinal de independência e de autonomia das mulheres sobre o seu corpo. 

Não será por isso muito surpreendente que, na passagem do século XIX para o século XX, as sufragistas tenham adotado o batom vermelho como símbolo de rebelião. Elas, que se atreviam a lutar por essa ideia escandalosa de que as mulheres – e não só os homens – deveriam ter o direito ao voto, carregavam também nos lábios o batom vermelho que chocava os homens do poder e desafiavam o monopólio masculino da política. Depois disso, em outras épocas, o mesmo símbolo se fez arma de resistência. Contra o ódio público que Hitler lhe tinha, usar batom vermelho (cuja produção nos países Aliados, ao contrário de outros produtos, não foi interrompida durante a II Guerra Mundial) era também uma afirmação contra o fascismo. 

E aqui chegados, em 2021, de novo o vermelho assusta e perturba os que têm medo das mulheres sem medo. Das que desafiam, pelas causas que defendem, o sistema patriarcal e a sua estrutura de desigualdade. Das que ocupam os lugares da política ao arrepio da lógica dominante da competição, das que não se adaptam nem conformam à substituição do debate por uma espécie de concurso de varonia ou de campeonato de boçalidade, das que são avaliadas (de uma forma que os homens não são) a partir de julgamentos sobre a sua aparência ou frivolidade que dizem sempre muito mais dos avaliadores do que das avaliadas. 

Marisa Matias sabe bem o que é lidar com a cultura do autoritarismo marialva – e fazer-lhe frente. Ela é a criança de Alcouce que, contra todas as probabilidades sociológicas e por conta de um Estado Social de que se orgulha e pelo qual luta, chegou onde muitos gostariam que, ainda hoje, pessoas da sua origem e condição não chegassem. Marisa, a “campeã do clima” no Parlamento Europeu, a deputada reconhecida pelo seu trabalho em defesa da saúde pública ou contra os paraísos fiscais, a pessoa que, há mais de dez anos, se tem empenhado em dar visibilidade ao trabalho invisível das cuidadoras informais, está habituada a lutar contra a indiferença e a enfrentar podres poderes, em Portugal e noutros países. 

A onda de solidariedade com Marisa Matias que se tem levantado desde ontem é, pois, mais do que merecida. Através dela vemos o que temos de melhor em nós próprios. Os lábios pintados, de mulheres e homens solidários de tantas opiniões, são muito mais que lábios pintados. São uma afirmação democrática e uma arma contra o ódio. Que dessa vaga faça parte, entre tantas, Ana Gomes, mulher cuja fibra de combate e a integridade de princípios são indiscutíveis, só admira quem não conheça ambas. Nenhuma delas hesitaria em mostrar que é na cooperação e na solidariedade que se faz a diferença contra todos os autoritarismos. Nessa atitude, há uma lição maior nesta campanha, com um alcance que vai além de aritméticas eleitorais. 

Para mim, a Marisa é também esta lição. É essa força maior que faz diferença na política, agora e depois. Contra a boçalidade, o orgulho no que somos. Contra o extremismo, a radicalidade dos direitos humanos. Contra o marialvismo, a capacidade de atear a força da solidariedade feminista. Contra as desigualdades, o bem comum, a justiça social e a justiça climática. É isso tudo que representam os lábios vermelhos de Marisa. E eu quero #VermelhoemBelém. 

domingo, 17 de janeiro de 2021

As mulheres do PS, a testosterona do Chega e os pobres que sobram ao CDS


(Rafael Barbosa, In Diário de Notícias, 17/01/2021)

Além das projeções de resultados, abunda nos barómetros regulares informação que ajuda a medir a temperatura política. Juntámos as amostras dos barómetros feitas pela Aximage para o DN, o JN e a TSF ao longo dos últimos quatro meses de 2020 e esboçamos um retrato de cada um dos partidos com representação parlamentar.


PS

Socialismo vale quase metade do país grisalho

Não há por agora pontas soltas no apoio aos socialistas. A liderança é total em todos os segmentos da população, sempre com uma vantagem superior a cinco pontos percentuais sobre os rivais sociais-democratas. Mas há franjas do eleitorado em que a vantagem de António Costa é avassaladora.

É o caso dos mais pobres, em que a média dos últimos quatro meses do ano foi superior a 50%. Aliás, quanto maior o rendimento do eleitor, menor a vontade de votar no PS: entre o fundo e o topo da escala social, os socialistas perdem mais de 17 pontos percentuais (nos dois escalões intermédios rondam os 37%, em linha com a média de setembro a dezembro).

Salta também à vista a força socialista entre as mulheres (e a relativa fraqueza entre os homens): em média, o eleitorado feminino valia mais oito pontos do que o masculino. Sendo certo que o fosso entre os dois géneros se acentuou nos dois últimos barómetros do ano, para chegar aos 14 pontos em dezembro.

Mais estável e esmagador é o apoio dos eleitores mais velhos: os que têm 65 ou mais anos valem 46,5%, ou seja quase dez pontos acima da média. Ao contrário, nos outros três escalões etários em que se dividem as amostras, o apoio está alguns pontos abaixo da média.

Quando a análise se centra na geografia, o ponto mais forte é a Área Metropolitana do Porto (42,6%), ainda que se notem grandes oscilações ao longo dos quatro barómetros do final do ano. As regiões menos fiáveis para os socialistas são, por razões diferentes, como veremos a seguir, a Área Metropolitana de Lisboa (34,8%) e a região norte (35,6%).

PSD

Região norte é o pequeno cavaquistão de Rui Rio

A designação ficou dos tempos em que Cavaco Silva conquistou duas maiorias absolutas para o PSD (1987 e 1991): os distritos do interior norte e centro deram-lhe percentagens superiores a 60% e ficaram no léxico político como "o cavaquistão". Rui Rio não pode aspirar a nada de semelhante. O melhor que se pode dizer é que tem na região norte o seu pequeno cavaquistão. Porque é aí que melhor resiste ao sufoco socialista (30,3%). Uma tendência que se acentuou em dezembro.

Ao contrário, o território mais hostil, nos últimos quatro meses do ano, foi Lisboa (20,6%). Uma fraqueza que partilha com os socialistas e que tem uma explicação: a região da capital (que inclui o distrito de Setúbal) é a mais competitiva para o ecossistema partidário e, por isso, a menos generosa para o chamado bloco central, que aqui vale apenas 55% (no resto do país, PS e PSD somam sempre 60 ou mais pontos, com destaque para o Porto).

Quando se avaliam as forças e as fraquezas dos sociais-democratas nos restantes segmentos em que se pode dividir a amostra (género, classes sociais ou faixas etárias), o que mais se destaca é que... nada se destaca. O equilíbrio tem sido a marca de água do partido, seja no género (ainda que com ligeiro pendor feminino), nas classes sociais (mesmo que melhorando a intenção de voto à medida que os rendimentos crescem, o inverso do que acontece aos socialistas) e nas faixas etárias (com um pouco mais de tração nos eleitores mais velhos).

Recorde-se que o PSD está em perda relativamente às eleições de 2019. Não porque a direita valha menos votos, mas porque há uma recomposição desse lado do espectro político, com vantagem para os novos partidos. Quando se faz a média dos mapas de transferência de voto dos últimos quatros barómetros, a fuga é evidente: o maior beneficiário é o Chega, mas também a Iniciativa Liberal está a provocar uma erosão social-democrata.

BE

No centro (e em Lisboa) está a virtude bloquista

O Bloco de Esquerda está em perda face às últimas legislativas e vê aproximar-se o Chega. Mas a verdade é que, no final de 2020, permanecia incontestado no terceiro lugar. A principal praça-forte bloquista, em termos percentuais, é a região centro (12,2% na média dos últimos quatro barómetros), ainda que a dimensão de Lisboa garanta mais deputados e votos (10%). O ponto fraco de Catarina Martins é a região norte, o único caso em que perde o terceiro lugar, ultrapassada pelo PAN (8%) e pelo Chega (5,9%).

Com uma notável igualdade de género (ainda que as mulheres estivessem a ganhar preponderância no final do ano), os bloquistas são um partido tendencialmente mais jovem, conseguindo resultados acima da média nos três grupos etários até aos 64 anos, para caírem bastante entre os mais velhos (65 anos ou mais). Foram estes aliás os que mais contribuíram para o castigo sentido no barómetro de novembro, no rescaldo do chumbo ao Orçamento do Estado e do divórcio com o PS.

Igualmente notória, na média geral, como nos resultados de cada um dos quatro barómetros, entre setembro e dezembro, é a predominância dos dois escalões sociais mais altos, face aos dois mais baixos (com uma diferença que ronda os três pontos percentuais, o que é significativo num partido com a dimensão do BE).

Chega

Radicais de classe média-baixa e na meia-idade

O Chega é o partido que mais cresce, quando comparamos os resultados das legislativas de 2019 com a média de resultados dos últimos quatro barómetros de 2020 - são quase seis pontos percentuais a mais nas intenções de voto. Apoios conquistados à direita tradicional (PSD e CDS) e que se concentram sobretudo em três segmentos: homens, de classe média-baixa, entre 50 e 64 anos.

O domínio da testosterona entre a direita radical é particularmente saliente: se votassem apenas homens, André Ventura seria o líder do terceiro maior partido nacional (são quase cinco vezes mais homens do que mulheres). Uma tendência que se acentuou nos últimos dois meses, coincidindo com o crescimento do final do ano.

Noutros tipos de segmentação, o Chega também se destaca em escalões específicos: a classe média-baixa (12,5%) é um desses casos (em todos os restantes está abaixo da média geral), com a tendência a acentuar-se no barómetro mais recente (um em cada cinco portugueses de classe média-baixa daria o seu voto aos radicais em dezembro).

O mesmo acontece nos grupos etários, com o destaque para os que têm 50 a 64 anos (10,4%), mas grande dificuldade em atrair os eleitores mais velhos (cada vez mais relutantes nos últimos dois meses, em clara oposição à subida média das intenções de voto no mesmo período).

Em proporção, foi ao CDS que o Chega roubou mais eleitores ao longo dos últimos quatro meses (quase metade dos centristas em dezembro), mas, em números absolutos, foi ao PSD. Contributos que fazem do partido de direita radical uma força a ter em conta no sul e ilhas, no centro, mas também em Lisboa (ronda os oito pontos percentuais nas três regiões). O território mais agreste para Ventura é a Área Metropolitana do Porto.

CDU

Comunistas envelhecidos em Lisboa e no Alentejo

A CDU pode não viver os seus melhores dias, mas há coisas que não mudam e que os barómetros dos últimos quatro meses confirmam: seja o envelhecimento da sua base de apoio seja um relativo acantonamento em Lisboa e no sul do país (com o peso do Alentejo). É na região da capital (que inclui Setúbal) que os comunistas têm o seu melhor resultado médio (7,8%), verificando-se uma tendência para ganhar peso relativamente ao resto do país nos dois últimos barómetros do ano. Os territórios mais hostis são a região norte e a Área Metropolitana do Porto.

Com tendência para ter uma representação mais masculina do que feminina (uma diferença de quase três pontos que, tendo em conta os resultados globais, é significativa), a CDU vê o apoio crescer, de forma substancial, à medida que o eleitor envelhece. Feitas as médias às amostras de quatro meses, os apoiantes com 65 ou mais anos valem mais sete pontos percentuais do que os mais jovens (18 a 34 anos), ainda que no final do ano esse cisma geracional desse mostras de estar a atenuar-se.

Os comunistas revelam uma influência relativamente transversal ao posicionamento social, mas com tendência para ter maior aceitação entre os dois escalões do topo, face aos dois do fundo (e com uma fragilidade evidente nos mais pobres). Através do mapa de transferência de votos, percebe-se que é para o PS que a CDU perde alguns dos seus eleitores de 2019 (um em cada dez) e que a capacidade de atrair gente de outros segmentos partidários é reduzida.

PAN

A causa animal (e ambiental) é feminina e jovem

O PAN nasceu como partido animalista (ainda que tenha progressivamente aprofundado a mensagem ecologista) e pode dizer-se que esse é um campo jovem e feminino. O movimento de André Silva é o que tem um maior peso do eleitorado feminino: são mais do que o dobro dos homens (uma diferença de quatro pontos percentuais) e seria o quarto maior partido nacional se votassem apenas as mulheres.

Outra marca de água que se tem mantido ao longo do tempo é a identificação do eleitorado jovem com o PAN: é o partido que mais depende dos escalões mais novos (18 a 49 anos), mantendo alguma dificuldade em convencer os dois escalões mais velhos (50 em diante), sendo mensurável uma diferença média de cerca de seis pontos percentuais entre estas duas metades do eleitorado.

O norte tem-se revelado o bastião mais importante e estável (o PAN consegue o terceiro lugar com uma média de 8%), mas Lisboa (6,7%) vem logo a seguir, ainda que com muitas oscilações ao longo dos quatro meses em análise. O ponto fraco é a Área Metropolitana do Porto.

Quando se observa o posicionamento social dos eleitores, fica claro que é na classe média que o PAN consegue maior suporte, em particular no terceiro dos quatro escalões em que se divide a amostra, ou seja, algures entre a classe média e média-alta. Embora também tenha um razoável cartaz entre o segmento dos mais pobres.

Iniciativa Liberal

Homens portuenses, abastados e liberais

À medida que a percentagem de eleitores de cada partido vai reduzindo, mais escorregadia se torna a leitura dos segmentos, sujeitos a margens de erro mais elevadas. A junção dos quatro barómetros ajuda a atenuar esse problema, mas, no caso da Iniciativa Liberal, talvez nem fosse necessário, uma vez que mantém uma série de características de barómetro para barómetro.

Desde logo, é um novo fenómeno político marcadamente urbano e metropolitano. O seu único deputado foi eleito em Lisboa mas foi no Porto que conseguiu os melhores resultados no final do ano (4,8% na média dos quatro meses), ainda que se revele um território mais instável. Lisboa é um pouco menos generosa (3,4%) mas parece terreno mais sólido.

Os liberais são sobretudo homens (mais do dobro do que as mulheres), com maior preponderância nos escalões até aos 49 anos (em particular nos 18/34 anos) e revelam uma tendência linear no que diz respeito ao posicionamento social: quanto mais alto está o elevador, maior o número de apoiantes (estão completamente ausentes do escalão mais pobre). São eleitores, finalmente, que saíram sobretudo do CDS (em proporção) e do PSD (em número). Mas também há algumas fugas para o Chega

CDS

Quase todos em fuga para concorrentes na direita

O resultado das legislativas de 2019 já tinha sido fraco. Os barómetros que se seguiram foram piores. E o final deste ano foi catastrófico, com os centristas a baterem no fundo, em dezembro, com uma projeção de 0,3%. Mesmo considerando a média de 0,9% ao longo dos últimos quatro meses, a amostra é diminuta e deve ser lida com cautela adicional.

Uma das leituras possíveis é que o CDS só está no limiar da sobrevivência no que diz respeito ao escalão dos mais pobres (2,9% em média) - e foi assim em três dos últimos quatro meses. Nos mais ricos, pouco passa agora do ponto percentual. No que diz respeito aos grupos etários, se ainda vale alguma coisa é à custa dos que têm memória de outros tempos, ou seja, os que têm 50 ou mais anos, numa tendência que se aprofundou em dezembro, com a deserção total dos dois escalões mais jovens.

Relativamente à geografia é só em Lisboa e no Porto que o partido de Francisco Rodrigues dos Santos ultrapassa um ponto percentual. Insuficiente, em eleições, para conseguir deputados. Os eleitores fugiram, pelo menos por agora, para o Chega, o PSD e a Iniciativa Liberal, por esta ordem (os radicais de direita, em concreto, ficam com três em cada dez antigos eleitores dos centristas).

O confinamento do faz-de-conta

Posted: 16 Jan 2021 03:35 AM PST

 


«O primeiro dia do confinamento geral não foi confinamento nenhum. Ou, para sermos optimistas, foi um “confinamentozinho”. Os relatos dos repórteres do PÚBLICO ou as imagens da televisão mostraram uma ligeira redução da actividade e do movimento nas ruas das principais cidades – mas não percebemos nessa actividade uma reacção aos avisos dos especialistas, nem aos alertas das autoridades. Vimos imagens de lojas a usar todos os tipos de expedientes para manter as portas abertas. Vimos pessoas a acorrerem aos supermercados atraídas por promoções. Em vez do novo normal do primeiro período de confinamento pressentiu-se um novo novo normal – 0 da indiferença e do relativismo. Um esboço de confinamento que não é confinamento nenhum. 

Não vale a pena cair na arrogância e dizer que os lojistas são incumpridores. Nem no moralismo de afirmar que os cidadãos são relapsos e indiferentes ao seu dever cívico. E ainda menos apoiar os que dizem que “isto” só lá vai com coacção. Vale, sim, a pena sublinhar duas reflexões: que o Governo está a falhar na sua missão de mobilizar os portugueses; e que as excepções ao confinamento foram talvez demasiado alargadas para que as pessoas percebam a gravidade da situação. Só passou um dia e é cedo para se questionar tudo – mas a continuação desta atitude colectiva, que levará ao agravamento da pandemia, exigirá provavelmente acertos. 

Não vai ser tarefa fácil. O Governo, acossado pelas dúvidas sobre a sua capacidade de antecipação ou pelo relaxamento do Natal, tem hoje menos credibilidade para mobilizar os portugueses. O Presidente, influenciado pelo contexto da campanha, deixou de ser tão interveniente e assertivo. O medo deixou de ter o seu poder dissuasor, apesar de hoje o número de contágios e de mortos ser dramático. O cansaço e a impaciência relativizam a forma como se encara a ameaça. Os que suspeitavam da eficácia de um confinamento com escolas ou consultórios abertos estão, no final do primeiro dia, a ter mais razão do que os que acreditavam ser possível uma solução de compromisso que evitasse males maiores – caso do autor deste editorial. 

Haverá quem defenda agora uma reacção mais musculada do Governo – já esboçada, aliás, no agravamento das multas. Acrescentar um estado de repressão ao estado de emergência será sempre o pior caminho. Resta a insistência na mensagem – mobilizando médicos e especialistas, que poderão dizer o que se passa nos hospitais ou insistir nas conclusões da ciência sobre as virtudes de um confinamento; e envolvendo o Governo, a Presidência e os partidos para se empenharem em mensagens capazes de comprometer e sensibilizar os cidadãos. Quanto mais tarde se iniciar esta tarefa, pior. A continuar assim, este confinamento do faz-de-conta está condenado a fracassar.» 

Manuel Carvalho 

Jornalistas vigiados? Só não se sabia quando iria acontecer

por estatuadesal

(João Garcia, in Expresso Diário, 16/01/2021)

João Garcia

Estava escrito nas estrelas. Mais cedo ou mais tarde, rebentaria um caso em que jornalistas e as suas fontes fossem vasculhados, em que o sigilo profissional – uma obrigação a que os jornalistas se sujeitam para garantirem a liberdade de informação – acabasse quebrado.

A espionagem policial a que foram sujeitos dois jornalistas gerou logo um coro de indignações, dentro e fora da profissão. Valha-nos isso. Mas é pouco.

Estão acusados de um crime que, no entender que o Ministério Público faz da lei, justifica uma devassa das suas vidas e contactos. Para as procuradoras do processo, eles quebraram o segredo de Justiça e, portanto, vá de fotografar encontros, no afã de saber quem fala com quem. Percebo a lógica policial: se são presumíveis criminosos, é preciso investigar. Em frente e a toda a força, que já foram inúmeras as investigações destruídas em julgamento.

Próximo passo, ouvir quem diz o quê a quem. Já há, por aí, quem defenda a necessidade de autorizações dadas por juiz.

O problema, porém não é de forma. Não é processual. A questão é que não se pode proibir o que não pode ser proibido: informar.

Impedir que os jornalistas publiquem o que apuram com interesse público – e que conseguiram respeitando a ética - é mais ou menos o mesmo que meter a raposa no galinheiro e proibi-la de comer as galinhas. Com uma diferença relevante: a raposa ataca por instinto, os jornalistas publicam por contrato com a sociedade. Se alguém não guarda o galinheiro, não culpem a matreira.

O verdadeiramente preocupante neste caso – para lá dos eventuais abusos de poder que as investigadoras tenham cometido – é, fundamentalmente, a legislação sobre o segredo de Justiça. Foi invocando-a que o Ministério Público avançou.

Com força inédita.

Afinal, um jornalista que o viola, é, de acordo com a lei, um criminoso que até pode ser condenado a prisão. Se aceitamos este postulado – que nenhum partido quer rever, que nenhuma corporação da Justiça quer alterar, que nenhum Governo ousa modificar – não se pode estranhar que, ao investigá-lo, possam ser decididos inquéritos que ponham em causa um bem essencial à livre informação: o sigilo das fontes. Entenda-se, de vez, que o sigilo profissional não é um direito dos jornalistas, mas um preceito fundamental à democracia que os jornalistas têm de preservar a todo o custo. Como o dos médicos ou o dos advogados. É assim tão difícil entender?

Como já alguém disse, para quem só tem martelo, tudo são pregos. Para quem só tem normas legais para seguir, que importa tudo o mais? Mais dia menos dia, cumprindo todos os requisitos, algum magistrado acabará mesmo por conseguir quebrar o sigilo das fontes. E pode acontecer por uma coisa tão irrelevante como um qualquer E-toupeira.

A verdadeira hipocrisia é haver segredo de Justiça para tudo quanto interessa à sociedade. Um secretismo que não é chamado nos casos irrelevantes.

Tudo escondidinho, confundindo-se crítica política, ética ou social com julgamentos populares, como convém a quem quer ter a vida facilitada nas investigações, quem quer acautelar interesses pessoais ou de amigos, quem quer manipular a informação com fugas cirúrgicas de peças processuais. É ver como cada partido se abespinha a denunciar violações que afetam os seus e assobia para o lado quando estão causa os interesses da concorrência.

Além do mais, o segredo de Justiça impede que os jornalistas respeitem a obrigação de ouvir todas as partes, o que mais facilita a vida àqueles que não se importam de publicar, sem mais, os recados que recebem.

Adivinho que tudo vá acabar numa cruzada contra as magistradas em causa. Mas bem mais útil seria se a indignação se virasse contra a indignidade de uma lei que tenta impor silêncio a informação relevante. Como diria Tino de Rans, é preferível abrir caminhos a erguer muros.

A bala mata, mas o assassino é quem puxa o gatilho.