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domingo, 21 de fevereiro de 2021

Anúncio não alimenta nem trata

Posted: 20 Feb 2021 03:56 AM PST


 

«As políticas de anúncio, de repetição de promessas que tardam em se concretizar ou se esvaziam pelo caminho, esgotam-se sempre em pouco tempo. Num contexto como aquele que vivemos, carregado de ruturas na vida das pessoas, de desproteções, de sofrimento, de urgências que clamam políticas com rigor e ação, esse esgotamento acelera-se e torna-se perigoso.

São múltiplos os casos, no plano nacional e na União Europeia, em que entre o anúncio e a concretização se verifica um desfasamento abissal. Onde deveria haver agilidade e rapidez há meses a passar. Onde todos deviam estar abrangidos, não faltam exclusões. Onde precisávamos de recursos volumosos, há mãos cheias de muito pouco. Assim, a desconfiança, a incerteza, o desespero e o medo crescem e gera-se um quadro cada vez mais propício ao cinismo político e à manipulação.

A "bazuca" europeia, tão festejada pelo volume e rapidez com que foi anunciada, afinal não começou a chegar em 2020 e já se diz que talvez venham uns "pacotes de vitaminas" lá para o outono. E não nos admiremos se a coisa resvalar para 2022. A receita milagrosa pode, assim, reduzir-se a mezinhas.

É uma tolice política apresentar a "bazuca" como o meio que vem garantir combate eficaz à desproteção e à pobreza, acudir à recomposição da economia, propiciar "reformas estruturais", alavancar um processo de transformação do país. Quanto à exaltação do poder da "bazuca, as posições da Direita até ultrapassam as do Governo. Mesmo que (por milagre) a UE adote uma política financeira adequada à dimensão e caraterísticas desta crise que vivemos - reforçando imenso o apoio a países como Portugal -, nós só sairemos do pântano em que estamos se abandonarmos os austeritarismos tacanhos, se dotarmos o Estado de meios e operacionalidade, se fizermos forte investimento público, se qualificarmos e valorizarmos o emprego, se tratarmos da coesão entre gerações e territórios.

Os problemas também não se resolvem com fugas para a frente ou excesso de expectativa na ciência, como fez, esta semana, a presidente da Comissão Europeia ao transferir a esperança para as vacinas de segunda geração, quando aquilo que podia dar mais confiança, agora, era uma boa gestão do processo de vacinação. Ora, o da União está a ser um relativo fiasco. Os avanços científicos na área da saúde são importantíssimos, mas exige-se convocar muitos outros saberes humanos - científicos e não científicos - com princípios e valores éticos, para se evitar cenários aterradores. Desde logo, deite-se mão da ciência da boa execução das políticas.

O Governo não pode anunciar apoios que depois não aparecem ou se estreitam; não pode anunciar disponibilização de computadores que, entretanto, não compra. O ministro Sisa Vieira ao anunciar que a tarifa social da Internet será disponibilizada até junho, lá longe do reinício das aulas presenciais, abre espaço à ridicularização.

Esta falta de agilidade em tempo real é, em parte, filha de incertezas que hoje pairam sobre quem governa, mas acima de tudo, de uma conceção política que sacraliza o desinvestimento e a ortodoxia orçamental. Umas palavras de anúncio e a desmemória cultivada por certa Comunicação Social e pelo ciclo (e circo) noticioso, não substituem uma governação com ética e rigor, geradora de confiança.»

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Economistas com uma mão, mas autoridades do medicamento com dois olhos

 

por estatuadesal

(Luís Aguiar Conraria, in Expresso, 19/02/2021)

1 Em estatística distinguem-se os erros de tipo I dos de tipo II. Definimos uma hipótese que consideramos mais verosímil — o nosso default — e diz-se que cometemos um erro de tipo I quando erradamente rejeitamos essa hipótese. O erro de tipo II acontece sempre que erradamente aceitamos essa hipótese como verdadeira. (Na verdade, nunca aceitamos uma hipótese, diz-se apenas que não a rejeitamos, mas adiante.)

Imagine uma farmacêutica que alega ter uma determinada vacina. Nada mais natural do que, até prova em contrário, partirmos do princípio de que não presta. Não queremos no mercado uma vacina que não funcione ou que tenha efeitos secundários graves. Com esta atitude, reduzimos os erros de tipo I.

Mas, ao nos focarmos nos perigos de aprovar uma droga errada, exigindo sucessivos testes clínicos, muitas vezes esquecemos as vidas que se perdem por causa dos erros de tipo II: os doentes que podiam ser salvos e não o são, porque a droga não foi aprovada em tempo útil. Uma atitude racional obriga a ponderar ambos os tipos de risco.

É difícil. A visibilidade do erro I é muito maior. Basta ver a atitude de tantos no momento do lançamento das vacinas contra a covid. Todos à espera dos efeitos secundários para acusarem as autoridades responsáveis de terem sido apressadas. Ou ver como reagimos quando soubemos que a Rússia avançou para a vacinação sem ter terminado a terceira fase de testes clínicos. “Que irresponsáveis”, dissemos nós. Mas...

A vacina da Moderna foi concebida a 13 de janeiro de 2020, dois dias depois da sequenciação genética do coronavírus. E, se estávamos todos de pedras na mão para as atirar às autoridades de saúde caso houvesse efeitos secundários, nem nos lembramos de as responsabilizar pelas centenas de milhares de vidas que se perderam porque demoraram a autorizar as vacinas. Entre desemprego, morte, confinamentos forçados, escolas fechadas, quantos milhões viram a sua vida destruída porque não se aprovou a vacina mais cedo?

Condenámos a pressa da Rússia em administrar a sua vacina, acusando-os de puro marketing, mas não perguntámos quantos russos se salvaram graças a essa rapidez. Nem nos lembrámos de que o marketing só funcionaria se a vacina resultasse.

Nesta situação, os custos do atraso são óbvios. Na maioria das vezes, nem damos conta. Se, por acaso, um tratamento eficaz para o tratamento da diabetes não obtiver autorização das autoridades do medicamento ninguém saberá. Olhos que não veem, coração que não sente: como ninguém sabe, ninguém acusará o Infarmed, ou a Agência Europeia do Medicamento (EMA), de negligência criminosa. Já se um mau medicamento, com sérios efeitos secundários, for aprovado, o escândalo será imediato e cabeças rolarão. Assim, as EMA e os Infarmed têm muito mais incentivos a evitar um determinado tipo de erros do que outros.

Na prática, a sociedade decidiu que as vítimas dos erros de tipo I, ou seja, as vítimas de um medicamento errado, valem muito mais do que as vítimas de erros de tipo II, as pessoas que padecem de doenças que seriam curadas se tivessem acesso aos medicamentos uns anos mais cedo.

Ninguém advoga que se aprove facilmente qualquer droga que apareça. Seria cometer o engano oposto. Simplesmente, se fôssemos mais maduros, ponderaríamos ambos os riscos. Foi Harry Truman que pediu um economista maneta. Queixava-se de que todos os economistas lhe respondiam o mesmo: “On the one hand... on the other hand.” Com a aprovação de medicamentos, passa-se o contrário, precisamos de especialistas com os dois olhos, o esquerdo para as vítimas de um tipo de erro e o direito para as vítimas do outro.


2 Circula uma petição a pedir a deportação de Mamadou Ba. Veio na sequência da exigência do CDS para que Mamadou saísse do Grupo de Trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação. Qual o crime que o conhecido ativista português cometeu? Disse que o tenente-coronel Marcelino da Mata era fascista e criminoso de guerra.

Espanto-me sempre com o escarcéu que os paladinos do antipoliticamente correto fazem quando não se usa do politicamente correto para falar dos seus adorados. Que Marcelino da Mata, enquanto voluntaria e fervorosamente combatia por um regime colonialista e opressor, cometeu crimes de guerra não é propriamente segredo. E que era um herói de um regime ditatorial, a que muitos chamam fascista, é um facto. Até foi condecorado por Salazar.

E agora? É proibido chamar fascista e sanguinário a um herói de guerra do Portugal salazarista? Tenham juízo e respeitem a liberdade de expressão.

Professor de Economia da Universidade do Minho

Extravio de vacinas no país real

Posted: 19 Feb 2021 04:14 AM PST

 


«Assistimos todos ao folhetim da vacinação indevida em horário nobre. Uma autarca descrita como mais avantajada furou a fila em Portimão, logo seguida por outros no Seixal, Arcos de Valdevez e Reguengos de Monsaraz. A Segurança Social de Setúbal atirou vacinas a todos os funcionários que as conseguiram apanhar. Na Associação de Farminhão, a responsável da cozinha ainda aproveitou uns restos. Nem a igreja resistiu à tentação, com relatos de padres inoculados em várias paróquias. Mesmo com os custos da insularidade, o movimento chegou aos Açores, na pessoa da diretora regional para a Promoção da Igualdade e Inclusão Social. No Porto, por aparente falta de comparência dos seus destinatários, 11 doses já preparadas acabaram na pastelaria ao lado das instalações do INEM.

O país, com razão, inquietou-se. Quando a escassez de vacinas é assunto diário, cada picada num braço não prioritário implica a desproteção de uma pessoa de risco. Pelo caminho, as suspeitas atingiram o próprio dirigente da task force, prontamente substituído por um militar que vestiu um camuflado para ir à televisão sinalizar o fim da rebaldaria. A Direção-Geral da Saúde regulou enfim o destino das sobras, determinando o seu aproveitamento segundo as regras da prioridade. Dado a legislação vigente só permitir sancionar funcionários do Estado ou equiparados, o PSD e o Chega apresentaram propostas de lei para a introdução de um crime autónomo com penas que vão, respetivamente, até três e cinco anos. Sem pôr em causa a rigorosa investigação da conduta de quem, em plena pandemia, consegue ficar imunizado antes da sua vez, criar legislação penal deste calibre em pura reação ao alarme social não me parece cumprir os requisitos da boa legística.

Pese embora a descrição do fenómeno como típico do chico-espertismo nacional, há vacinas extraviadas noutros lugares. A clientela abastada de um conhecido hospital privado parisiense está sob suspeita. Depois do anúncio da inoculação da mais famosa instrutora de spinning de Manhattan, o título no “The New York Times” era ‘Don’t hate the soulcycle celeb who got the vaccine. Hate the system’. Lá fora, o problema está no privilégio dos mais ricos; por aqui, no lugar de vacinas VIP, tivemos um retrato do país real do pequeno nepotismo e do compadrio local. Pelos vistos, a recém-adquirida imunidade por um obscuro provedor da Santa Casa da Misericórdia tem mais impacto mediático do que a vacinação da presidente do grupo Luz Saúde, impecavelmente penteada.

Enquanto vociferamos contra o sistema, talvez questionar em que medida contribuímos no passado para a sua instalação. Telefonemas e inscrições em listas andam a desviar vacinas por todo o território continental e ilhas porque, em Portugal, o “contacto certo” funciona rotineiramente como forma de obter um benefício em detrimento dos outros. A memória dos casos começa a esbater-se e o mais provável é acabarem todos algures nos meandros de mais uma série de inquéritos. Não sendo a situação mais censurável, a distribuição de sobras pelo INEM no estabelecimento comercial mais próximo pode bem ser a que vai ficar mais tempo no imaginário popular. Demasiada gente já foi um dia a prima do presidente da junta e ainda tem a esperança de ser a costureira da mãe do senhor prior. Daí a nossa perplexidade perante esta decisão de vacinar aleatoriamente quem está ali mais à mão sem que ninguém se tenha lembrado, antes, de usar o telemóvel para marcar um número — que até podia ser o meu.»

E agora, Marcelo?

 

por estatuadesal

(Ângela Silva, in Expresso, 19/01/2021)

Nunca se saberá se é verdade ou mentira que Marcelo Rebelo de Sousa teve reais dúvidas, angústias, conversas em família e hesitações sobre recandidatar-se ou não a um segundo mandato presidencial. Mas que o fardo, grande e pesado, volta e meia o atormenta confessou o próprio na sua primeira entrevista após ter sido reeleito. “São 10 coisas más e uma boa”, eis como Marcelo pintou o cargo em conversa com Ricardo Araújo Pereira (nada como o humor quando nos sentimos apertados), e até contou a conversa que teve com Cavaco Silva em 2016, três meses após o seu antecessor ter deixado Belém. “Estou ótimo! Nem imagina, sinto-me aliviado, saiu-me de cima dos ombros um peso, está a ver?”, ter-lhe-á dito Cavaco. Ao que Marcelo diz ter respondido: “É o peso que veio para cima dos meus ombros!”

A 7 de dezembro, quando convocou os jornalistas à Pastelaria Versailles de Belém para anunciar que era recandidato, Marcelo disse que avançava por não querer “sair a meio de uma caminhada exigente e penosa” — uma pandemia a enfrentar, uma crise económica a vencer — e por ver “uma oportunidade única para mudar Portugal para melhor”. Estaria a pensar que ajudar o país a recuperar de uma crise avassaladora é sempre uma grande oportunidade para um político ver se passa no teste de estadista, ainda por cima quando se é reeleito com uma invejável percentagem de 60% dos votantes. Mas o Presidente sabe que a empreitada é bicuda, que a famosa ‘bazuca’ de milhões que há de vir de Bruxelas para responder à crise já cheira a pouco — ele próprio disse em campanha que “já era preciso duas bazucas”. E resolveu tornar a coisa ainda mais exigente ao lembrar que em 2024 comemoramos os 50 anos do 25 de Abril e seria “inconcebível não sermos um país além de mais livre, mais desenvolvido e mais justo”.

Mal se viu reeleito com o segundo melhor resultado de que há memória, prova de que os eleitores contam mesmo com ele, Marcelo disse ter percebido o sinal e garantiu que retirará as devidas ilações. A saber, que “os portugueses querem mais e melhor”. O que isto significa é simples: o Presidente prepara-se para ser mais exigente com o Governo neste segundo mandato. Desde logo no que toca à resposta à pandemia — as últimas semanas já o mostraram mais musculado na gestão do estado de emergência e mais em cima do processo de vacinação — e depois disso com aguçado olho vivo a acompanhar o plano de recuperação económica e social do país, que contará com milhões de fundos europeus a circular. Tudo isto num contexto político menos seguro do que parece, com um Governo minoritário e cansado e cujos parceiros à esquerda estão menos fiéis do que já foram, com a direita estilhaçada entre um PSD estagnado, um CDS mirrado e em guerra interna e o radical Chega a crescer, e com um coro de vozes que já pede ao Presidente governos de salvação nacional.

“O Presidente é o mesmo, as circunstâncias é que vão mudando”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa ao Expresso pouco antes de ir a votos, quando influentes socialistas se desdobravam em declarações de apoio à sua recandidatura com base num pressuposto — que faça um segundo mandato “idêntico” ao primeiro. Ele diz que sim, que será “o mesmo”, mas vai avisando que, se o mundo mudou, se houver novas circunstâncias, se o país pedir mais e se pressentir bloqueios, saberá retirar as ilações. E o que quer isto dizer? Que, não sendo por natureza um político de fraturas e preferindo, pelo contrário, ajudar a fazer pontes, o que o impede de vestir a partir de Belém o fato de líder da oposição, estando mais livre, Marcelo subirá a fasquia ao poder socialista e estará muito atento ao desgaste do atual ciclo político junto da opinião pública. Viu-se nas duas vezes em que, já reeleito, falou ao país para renovar o estado de emergência. A primeira, quando dramatizou como nunca antes o estado da pandemia, e a segunda, 15 dias depois, quando pediu ao Governo um plano criterioso e sustentado para desconfinar o país (e ouviu António Costa responder-lhe que é muito cedo para “especular” sobre desconfinamentos). O tom da coabitação já não é exatamente o mesmo. À sua maneira, Marcelo II também vai ser diferente de Marcelo I.

IRONICAMENTE À ESPERA DE PASSOS

Isso ajuda a perceber a frase aparentemente fora do contexto que o Presidente incluiu na sua mais recente comunicação ao país. “Não contem comigo para crises políticas, por muito sedutoras que sejam, ou para governos de salvação nacional”, afirmou. O que levou muita gente a questionar o sentido de um aviso assim quando o tema era a pandemia. Mas Marcelo foi fino na mensagem. Ao falar de “salvação nacional”, fez ecoar que a situação é politicamente delicada e não está para brincadeiras. E, ao dizer que não contem com ele para nomear governos à margem do xadrez parlamentar, deixou claro que é António Costa quem ele quer ver a gerir esta crise até ao fim.

Por um lado porque sempre foi defensor da estabilidade política, e todo o seu primeiro mandato foi prova disso, a começar pela forma como ajudou a normalizar a ‘geringonça’, cá dentro e lá fora. Por outro porque, não se vislumbrando nenhuma alternativa de poder capaz de se afirmar no Parlamento, Marcelo não dará gás a saídas de emergência que permitissem ao PS livrar-se de ter de gerir o atual momento sem garantias de que algo de novo daí resultaria. Com o PSD encalhado nas sondagens, sempre abaixo dos 30%, e o CDS a ver se mantém o atual líder ou se corre com ele, o que faz sentido para o Presidente da República é ajudar a manter o Governo e esperar que a direita se arrume. Com os olhos postos nos congressos que os parceiros da velha AD têm previstos para 2022, logo após as autárquicas, que ajudarão a perceber melhor qual é, afinal, o estado da arte.

O eventual regresso de Pedro Passos Coelho é um fator decisivo para Marcelo saber com o que pode contar neste mandato. Sobretudo porque Passos é visto à direita (e em Belém) como o nome mais capaz para federar PSD, CDS e Iniciativa Liberal e para estancar e recuperar a fuga de eleitores para o Chega. E assim, ironicamente, para o Presidente da República, que anda há cinco anos a pedir uma alternativa “clara e forte” às esquerdas, a solução pode passar pelo homem com quem teve uma má relação antes de chegar a Belém. Passos, recorde-se, não o queria como candidato presidencial, considerava-o um “cata-vento mediático” e nunca lhe perdoou ele ter sido um contribuinte líquido para que António Costa cumprisse a legislatura. Mas a verdade é que, mesmo sem ser um Soares, Marcelo adoraria não sair do palácio sem ver a sua família política chegar ao poder.

Para isso, aconselha a direita a ter calma. Nada de crises políticas, nada de eleições antecipadas, nada de governos de iniciativa presidencial, nada de soluções tipo Bloco Central (que avisa serem “instáveis e pouco duradouros”). E, sobretudo, nada de pressas. É preciso ver o que dão as autárquicas, se Rio resiste e consegue manter-se na liderança do PSD ou se cai e vem outro líder. É preciso ver se no CDS Adolfo Mesquita Nunes consegue apear “Chicão”. É preciso esperar que os dois partidos se realinhem cada um por si e os dois entre si. E é preciso perceber como ficam nesta nova direita os dois novos partidos, Iniciativa Liberal e Chega. A esperança de Marcelo é que desta incerteza nasça uma alternativa. Mas nem aqui a vida que o espera será fácil.

Na noite eleitoral, antes de entrar na Faculdade de Direito onde discursou ao país, o Presidente andou às voltas de carro, sozinho ao volante, à espera de ouvir na rádio o que diriam Ana Gomes e André Ventura. E o grito de guerra lançado pelo líder da nova direita radical, após superar os 10% nas presidenciais — “o PSD não voltará a ser Governo sem o Chega” —, levou-o a enxertar no seu próprio discurso a seguinte frase: “Temos de fazer esquecer exclusões e xenofobias”. Marcelo sabe que o Chega lhe complica a vida e que, se só for possível uma maioria de direita com a ajuda de Ventura, ele próprio arrisca-se a ficar associado à chegada ao poder dos populistas radicais, que, antes de todos, alertou serem um perigo também em Portugal. Para se prevenir, avisou na campanha que, se um dia for chamado a dar posse a um Governo apoiado pelo Chega, exigirá garantias escritas. E lembrou que um Presidente da República pode sempre recusar ministros. Mas o que Marcelo também disse foi que a legitimidade dos novos partidos não está em causa uma vez legalizados e menos ainda pode estar em causa a legitimidade dos seus eleitores. A sua esperança é que, se a alternativa tiver de passar por aí, as novas lideranças à direita saibam tratar do assunto. Mas a deambulação solitária de Marcelo a ouvir Ventura via rádio é todo um programa.

E O PAÍS GOVERNA-SE?

O grande desafio deste segundo mandato passa, no entanto, por saber como Marcelo Rebelo de Sousa deixará o país depois de estar 10 anos no topo do Estado. Desde que lá chegou, em 2016, o Presidente matraqueou vezes sem conta que basta de vistas curtas e falta governar com um rumo reformista de médio prazo. E há um ano, dias antes de o país se confinar, convidado pelo “Público” para presidir a uma conferência sobre “Portugal, e agora?”, Marcelo foi claro: “Ou se faz um esforço em todos os azimutes, num quadro parlamentar mais fragmentado e com menos pontes, para que a governação seja mais estável nas opções e na base de sustentação, e também mais virada para mais do que a mera gestão diária, ou teremos a aventura, Orçamento a Orçamento e lei a lei, de coexistir em geometria variável. E o caminho não é esse.”

Um ano depois, a mensagem está mais atual do que nunca. A situação é muito pior, politicamente tudo está mais partido e instável, e o Presidente teme continuar a ver um Portugal bloqueado. Sobretudo se de futuras legislativas não sair uma maioria absoluta nem de esquerda nem de direita, capaz de criar condições para levar por diante o objetivo que ele próprio traçou em campanha: “Recriar o país de forma estrutural.”

No discurso da vitória, Marcelo disse ter percebido o que os portugueses não querem — “uma crise infindável, um empobrecimento agravado, um sistema político lento a responder a novos desafios” — e também o que os portugueses querem — “uma reconstrução que vá para além da mera recuperação”. E apontou como meta pós-pandemia virarmo-nos para “tudo o resto, que queremos tanto”. O resto não é coisa pouca. É “mais crescimento, menos desemprego, menos pobreza, mais justiça social, menos corrupção, mais reforma do Estado”. Uma revolução digna dos 50 anos de Abril, que coloca ao Presidente da República uma enorme dúvida existencial. Saber se, estando Portugal a viver um dos momentos mais dramáticos da sua história recente, ele próprio conseguirá, quando sair de Belém, deixar um país diferente para melhor.

Paulo Portas, que na noite das presidenciais esteve no papel de comentador televisivo, tratou de puxar por Marcelo e declarou que, sendo o segundo Presidente reeleito com mais força, ele ganhou óbvio “espaço de manobra”. Mas, se não tiver direita, se a esquerda, mais partida e confusa, também mirrar, e sem querer blocos centrais, Marcelo Rebelo de Sousa sabe que se arrisca a ver esse espaço de manobra esfumar-se sem que Portugal desencalhe e sem chegar a ver a sua família política no poder. É verdade que, como ele próprio lembrou por estes dias, o seu mandato são cinco anos e ao Governo já sobram menos de três. Mas nada garante que depois deste ciclo venham tempos mais promissores no que toca a dar um salto da governação à bolina para voos mais arrojados.

O Chega é um berbicacho neste mandato do PR. Sem ele, pode não haver alternativa. Com ele, Marcelo seria o primeiro a levá-lo ao poder.

Marques Mendes, cúmplice de Marcelo noutras eras do PSD e atual conselheiro de Estado, tem chamado a atenção de que “o país pode caminhar a passos largos para a tempestade perfeita: não haver condições para governar à esquerda e à direita, regressando o espectro dos Governos de curta duração”. E, num artigo que publicou recentemente, não encontrou título mais sugestivo do que “Boa sorte, Presidente”. Por estas e por outras, o coro dos que pedem a Marcelo Rebelo de Sousa que encare a hipótese de um Governo de salvação nacional não para de crescer, e o recente exemplo de Itália, onde Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, aceitou o convite do Presidente Sergio Mattarella para liderar um Governo de emergência nacional, leva à pergunta: porque não pensar em algo semelhante para Portugal? Marcelo nem quer ouvir falar nisso. Pelo contrário, espera que sejam os partidos a encontrar soluções mais robustas para o país. E José Miguel Júdice, outro ex-cúmplice de Marcelo nos velhos tempos do PPD, aponta à sua reeleição um dilema difícil de resolver: “Como é que ele vai harmonizar quem votou nele para que ele mudasse [o centro direita] com quem votou nele para que ele não mudasse [os socialistas]?”

Marcelo não garante nada, nem a uns nem a outros. Apenas promete ser fiel aos seus princípios e causas de sempre. Mas foi sibilino na conversa com Ricardo Araújo Pereira ao explicar o segredo do seu ‘casamento’ com António Costa: “É uma relação institucional que pode ter momentos afetivos. Não é uma relação afetiva que pode ter momentos institucionais”, afirmou.

E é com este pragmatismo que aguardará expectante o eventual regresso de Pedro Passos Coelho, com quem se deu mal mas que nem por isso exclui das suas apostas para um mais promissor xadrez político. Se Passos não vier e Rio e Costa continuarem a ser os protagonistas dos dois lados da barricada, Marcelo nem deseja nem acredita em entendimentos ao centro. E, se Costa não for a futuras legislativas e Pedro Nuno Santos lhe suceder, puxando o PS para a esquerda, talvez uma maior polarização ajude a encontrar soluções maioritárias. Se acontecerem à direita, Marcelo aplaudirá, ainda que com o olho no Chega. E, se forem à esquerda, poderá sempre repetir a velha frase do seu amigo Guterres: “É a vida.”

Num caso ou noutro, se há coisa de que Marcelo Rebelo de Sousa não prescindirá é da sua invulgar relação com o povo. E do desprendimento pelo poder, que garante genuíno. Perguntado em campanha sobre de que é que sentirá falta quando deixar Belém, respondeu: “Não sentirei falta de nada de especial.” E, quando ainda andava às voltas com o tabu da recandidatura, chegou a dizer: “Aos 10 anos [de mandato], temo já estar um bocado gasto.” É verdade que corrigiu num ápice que isso “não aconteceu com os demais PR, que saíram jovens”. Mas o seu grande desafio não é nem manter a juventude nem continuar popular. Com o país a viver a segunda crise da década e com o xadrez partidário em mudança, o desafio de Marcelo é, para memória futura, ir muito além do Presidente selfie. Conseguirá?

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Do inferno salvam-nos os políticos que nos fazem puros

Posted: 18 Feb 2021 03:55 AM PST

 


«Não faço ideia se o vice-almirante Gouveia e Melo é uma pessoa competente. Quem o conhece tem vindo a público dizer que sim e por agora isso chega-me. Apesar de, ao contrário do seu antecessor, não ter qualquer relação com o Serviço Nacional de Saúde, com qualquer questão relacionada com saúde pública e com a rede que será fundamental na segunda e terceira fases de vacinação, estou certo que as suas capacidades de comando, de gestão logística e de reação em ambiente de pressão lhe garantirão um bom desempenho das funções. Não farei com Gouveia e Melo o que foi feito com Francisco Ramos. Porque acredito que não podemos continuar a bombardear aqueles de quem dependemos para que isto corra bem.

Apesar de não duvidar da competência do novo responsável e de Gouveia e Melo ter ocupado o segundo lugar na task-force, estou inclinado para acreditar que a escolha foi essencialmente política. António Costa sabe que um militar não é um alvo da oposição, sobretudo da oposição de direita. Porque um militar não tem ambições políticas. Porque não está ligado a uma fação política a ser atacada. E porque a direita tem um fetiche com a competência das Forças Armadas, único serviço do Estado, para além das forças de segurança, a quem reconhece uma competência inata. Desmente-o Tancos e, mesmo que fiquemos só pelos últimos anos, não foi o único caso. As Forças Armadas sofrem de todos os problemas que sofre o Estado português, com a agravante da opacidade, que as tornam menos fáceis de escrutinar. É interessante verificar como, mesmo no caso do roubo das armas e do subsequente comportamento da PJ Militar, o principal alvo mediático (e da oposição) foram políticos, deixando praticamente de fora os primeiros responsáveis por tudo o que ali aconteceu.

Se tenho razão e a escolha do novo coordenador da task-force também teve como objetivo retirar pressão política e mediática sobre o grupo de trabalho, está a correr muito bem. “O vice-almirante discreto que vem meter em sentido o plano de vacinação”, titulou a revista “Visão”, num perfil do militar logo depois da sua nomeação. O título revela um toque latino-americano que põe os jornalistas, eles sim, em sentido quando em vez de um político têm um oficial superior pela frente.

Instalou-se uma ideia na comunicação social: que o seu papel se resume a fiscalizar o poder político. Há pouco interesse em relação o que se passa em todas as estruturas que não envolvam, de alguma forma, políticos. Seja no setor social (a não ser que haja um autarca envolvido), nas ordens profissionais ou nas empresas (a não ser que haja suspeitas de corrupção que envolvam políticos). Isto acontece por facilitismo, porque o conflito interno inerente à atividade política torna mais fácil chegar à informação. Por medo, porque incomodar o poder económico e corporativo acarreta muito maiores riscos. E pelo populismo convicto que se apoderou de alguns jornalistas.

Seguindo a mesma lógica, instalou-se uma narrativa sobre os casos de vacinação indevida que tenta resumir as fraudes à clientela partidárias. Não a nego e continuo a achar assombroso que tanta gente sem escrúpulos ainda não tenha percebido o que mudou no escrutínio público. Mas não preciso de me afastar da demissão de Francisco Ramos para mostrar como isto é falso: a gota de água que levou à sua saída terá sido a descoberta, pelo próprio, de que médicos usavam o Hospital da Cruz Vermelha para passar à frente. Basta recordar este caso ou o do Hospital da Luz, logo depois, para desmentir a ideia que resume a chico-espertice a uma casta política. A ideia dos políticos corruptos que passam à frente dos heróis da saúde é confortável, mas ignora uma cultura de favor e cunha que é transversal à sociedade portuguesa. Ela também é visível no meio hospitalar, seja público ou privado.

Vivemos num país desigual e é nas estruturas intermédias, sejam lares, hospitais, autarquias ou IPSS, que isso é mais evidente. Porque a proximidade é maior, o poder é mais direto e o controlo menos intenso. Este país desigual precisa de expiar os seus pecados e atrasos e reserva à classe política, que é apenas igual ao lugar de onde vem, o papel de repositório de todos os males. Os políticos personificam todos os nossos problemas e nós, pobres vítimas puras em atos e motivações, sofremos às suas mãos.

Em Portugal, sofre o pobre que não conhece um médico, um advogado, um funcionário da autarquia, um diretor de uma escola lotada, alguém num lar sem vagas. E há uma minoria, muito mais alargada do que gostamos de admitir, que responsabiliza os políticos por tudo o que conhece ou pratica no seu quotidiano. Não se muda durante uma pandemia o que não se resolveu durante séculos.

O que aconteceu nos casos de vacinas indevidas resolve-se com a lei e a fiscalização possível num momento de emergência. Mas é um excelente espelho de tudo o que somos. E, ao contrário do que temos o hábito de pensar, não estamos sós no mundo. Só lá pomos quem nos dá jeito. Felizmente para o novo responsável pela task-force, os militares não cumprem essa função social de serem portadores da culpa coletiva. Os escândalos deixarão de ter a mesma centralidade. Já começaram a deixar. Porque se não tem político não tem interesse.»