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terça-feira, 30 de março de 2021

É tempo de tirar as máscaras

Posted: 28 Mar 2021 03:48 AM PDT

 


«Calma. Não são essas. São aquelas que colocamos todos os dias, agarradas à pele, e que nos permitem retardar ou dissimular o confronto com a realidade, quando sabemos que o barco está em chamas há muito tempo. Nos primeiros meses de cada ano são feitas notícias, baseadas em estudos, que confirmam aquilo que uma fatia significativa da população intui sem precisar de estatísticas: que vivemos num mundo de grandes desigualdades. Talvez o problema maior do nosso tempo.

Há semanas, no relatório anual da ONG britânica Oxfam sobre desigualdade, lá vinha que o aumento da riqueza dos dez multimilionários mais ricos do mundo deste o início da pandemia seria suficiente para que ninguém caísse na pobreza, ou que seria possível comprar vacinas para as pessoas do mundo inteiro, ou ainda que bastaram nove meses para os 1000 mais ricos recuperarem o que tinham perdido, enquanto os mais carenciados poderão levar uma década a chegar ao ponto médio antes da pandemia.

Por incrível que pareça, nada de novo. É verdade que a pandemia expôs e intensificou desigualdades (de rendimentos, raciais, de género, etc.), mas os relatórios dos anos anteriores são igualmente pornográficos. No ano passado, a mesma organização, concluía que dois mil bilionários tinham mais riqueza do que 60% da população mundial. Não espanta que, nos últimos anos, quando se tenta denunciar as desigualdades estes 1% sejam evocados em oposição aos 99% restantes.

Não quero negar o papel que esses 1% terão tido nas decisões económicas no Ocidente nos últimos anos, mas reduzir a questão social a essa oposição não permite perceber o que torna possível as assimetrias. Quando muito a denúncia dos 1% oferece consolo moral, mas a verdade é que o sistema que permite que isso aconteça não poderia funcionar sem a colaboração de parte das classes médias e do grande domínio ideológico e cultural do modelo neoliberal que foi sacrificando os que não se lhe adequaram.

No início da pandemia muitos imaginaram que se poderia abrir um novo ciclo que não acarretasse um regresso ao passado — seja ele personificado por fascismos ou experiências socialistas já ensaiadas — ou continuar um ciclo neoliberal incapaz do progresso social, de cuidar do bem comum, de promover a coesão colectiva, de garantir mais igualdade e de proteger a democracia e o planeta. Um ano depois, há mais exploração, direitos retirados, falta de contacto, isolamento e mais submissão a alguns dos efeitos perversos da digitalização. Continuamos sobre ruínas, sonâmbulos, em direcção ao precipício. Interessa-nos apenas sobreviver. A diferença é que agora estamos mais extenuados, abatidos, deprimidos.

O vírus actuou como amplificador destas crises. Mas o caminho não está escrito de antemão. Há quem resista. Há quem lute e se faça ouvir cada vez mais nos últimos tempos (negros, mulheres, comunidades LGBT+, algumas camadas de trabalhadores, etc.) para lá das vozes dominantes. Há quem esteja a aprender a fazer comunidade com aqueles que nunca tiveram acesso a lugares de privilégio. Há quem aposte no afecto e na empatia. Há quem imagine novas formas de organização social que não sejam apenas baseadas no que cada um possui. Há quem não encolha os ombros, utilizando a imaginação contra medos e regressões. Há quem esteja disposto a aprender a viver na incerteza para enfrentar forças negativas.

Nas crises há pessoas que parecem perder a cabeça e outras que ficam mais lúcidas. As crises promovem os efeitos mais contrários. Esperemos que sejam as forças criativas e lúcidas, que procuram um novo caminho, que venham a impor-se, embora neste momento possam parecer um pouco fechadas na sua indignação e também muito dispersas. Seja como for, estava mais do que na hora de tirarmos a máscara social. Já nos basta aquela que agora somos obrigados a usar.»

A propósito dos movimentos pela “verdade” que negam a pandemia

 

por estatuadesal

(Carlos Marques, 28/03/2021)

Quem são de facto os negacionistas? Sim, há uns quantos nas manifestações anti-confinamento. Mas esses não aleijam mais ninguém a não ser a si próprios e à sua reputação. A maior parte dos que se manifestam, estão simplesmente fartos e revoltados, e têm muitas razões para tal. Senão vejamos, temos primeiro o “ai ai ai que a pandemia é tão má”:

– mas depois recusam suspender/quebrar patentes das vacinas made in UE/EUA, desperdiçando assim a capacidade de produção instalada. Exemplo disso é que um dos maiores produtores de vacinas, a Índia, só tem 4% da população vacinada;

– recusam também acelerar a burocracia da EMA (Agência Europeia do Medicamento) para termos as vacinas da Rússia e da China, que são tão boas ou melhores que as outras. Exemplo disso é que a Sérvia (fora da UE) já vacinou 34% da população enquanto a média da UE ainda está nos 15%.

– ora das duas uma, ou a pandemia é mesmo má e então as patentes têm de ser suspensas e todas as vacinas aproveitadas, ou então, se se recusam a quebrar patentes e recusam vacinas de fora do lobby farmacêutico EUA/UE, então andam a gozar connosco!

Depois do “ai ai ai”, vem o “ui ui ui que os que protestam são todos negacionistas”:

– mas quem protesta, está a ser abusado por um Estado de Emergência excessivo, que origina multas de 200 € a cidadãos que estão a comer uma sandes no carro, sozinhos, após saírem do trabalho. Isto no mesmo país que permite tudo aos ladrões (capitalistas e políticos por si corrompidos) para fazerem negociatas com barragens e fugirem aos impostos de mil e uma maneiras;

– recusam também um pingo de decência na execução orçamental, cativando tudo o que podem, desde o investimento até à fidelização de médicos no SNS (perderam-se quase 1000 profissionais experientes até Dezembro, e só agora se remenda a coisa com cerca de 2000 inexperientes acabados de formar). Mas fazem um teatro na hora de se despedirem dos médicos que vieram da Alemanha, a dizer “se precisarem nós (médicos portugueses) estamos cá”… é mesmo sem noção, não é?

– já para não falar da bazuca europeia, que nem é bazuca mas sim fisga, e nem é sequer real, pois até agora chegaram ZERO €uros. O Tribunal Constitucional da Alemanha já vetou, e bem (mas isso é outro assunto), a emissão de dívida conjunta, portanto parte da fisga nunca virá. Outra parte teremos de recusar porque seria mais dívida a juntar à que já temos. E a parte que sobra divide-se em impostos cobrados por não eleitos (isto nem na Venezuela…) ou transferências de outras partes do orçamento comunitário que já existia antes da crise. Mais operações plásticas que isto para disfarçar a decadência, só mesmo a Lili Caneças…

– ora das duas uma, ou a crise é real e é preciso todos os esforços para ajudar toda a gente, em vez de andar a ameaçar que se vai ao Constitucional para impedir… APOIOS SOCIAIS a quem está a passar fome, ou então andam a gozar connosco!

Que não fiquem dúvidas, a pandemia é real e a crise económica é real. Se há aqui alguém que é negacionista, são os corrompidos pelo lobby das farmacêuticas (governo Português incluído), as “elites” sem noção sempre alinhadas com Washington até mesmo quando esse alinhamento significa recusar vacinas de comprovada eficácia, e os Europeístas fanáticos (aka Extremo-Centro) que em nome do €uro não se importam de condenar milhões à miséria. Estes sim, são os negacionistas, do pior tipo de negacionismo que existe: apesar de estarem muito bem informados, negam a realidade em nome dos seus próprios interesses, lixe-se quem se lixar!

Já em 2011 tinha sido assim, mas nessa altura foi devido a uma pandemia do €urovírus, que provocou uma doença chamada Bancovid11. E também aí se condenou tanta gente à miséria e à fome, alguns mais desesperados até mesmo ao suicídio. E tudo em nome, mais uma vez, do negacionismo que realmente aleija: o das “elites” que ainda não perceberam que Portugal só chamou a troika porque não tem moeda própria, e dos governantes que mais depressa se indignam contra um grevista, do que contra um ladrão que gere um banco (passe a redundância…) ou um vigarista que fez uma negociata aquando da porta-giratória criada com a privatização disto e a concessão daquilo.

Enquanto este país não se vacinar (informar) contra esse vírus (Extremo-Centro) e criar imunidade (sair do €uro) para resistir à doença (governos PS e/ou Direita), este país continuará doente, entrará nos cuidados intensivos, e morrerá. Segundo parece, a data para sermos um Estado falhado é por volta de 2050, quando tivermos 3 milhões de reformados, e só 2,5 milhões a trabalhar para matar a fome, e só meio milhão de jovens (isto na previsão otimista…).

E os outros 4 milhões de habitantes? Perderam-se! Ao longo destas décadas, essas gerações ou emigraram para um país decente com direitos laborais, moeda própria, Estado onde é preciso, e bons salários, ou ficaram presos por cá mas desistiram de ter filhos. Não é uma pandemia, é uma pirâmide etária completamente invertida, à qual também se chama de peste grisalha! Custa a aceitar a definição? Então não matem o mensageiro, “matem” antes quem está a colocar Portugal nesse caminho! Os negacionistas das “elites” que nos DESgovernam desde 1992 (desde a “lógica” NeoLiberal e anti-soberana de Maastricht). A resposta completamente falhada a esta crise é a prova do que digo.

segunda-feira, 29 de março de 2021

O abraço dos anticorpos

 


por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 26/03/2021)

Não te abracei quando nasceste, teria sido pouco prudente. Mas apeteceu-me. Como todos os pais, peguei-te ao colo, confesso que, ao início, com medo de te deixar cair. Ao contrário das mães, que parecem ter uma capacidade inata de segurar os filhos, nós temos de aprender, sob o olhar vigilante delas.

Quando começaste a andar e eu chegava a casa ao fim do dia, vinhas a correr do fundo do corredor, saltavas para o meu colo e davas-me um abraço tão forte que o dia estava ganho. Depois ias à tua vida, que a partir desse momento passava também a ser a minha. Vivíamos no chão. A montar Legos, a fazer corridas de automóveis, que ganhavas sempre, ou quase sempre, porque os psicólogos chateiam os pais se não deixam os filhos viver a frustração. Ao fim de semana íamos aos baloiços e aos escorregas. Passado pouco tempo já te atiravas, para eu te agarrar. Nunca te deixei cair, apesar daquela máxima pessimista, que não se deve confiar em ninguém, nem no pai.

Fizemos algumas coisas loucas, que não posso contar aqui, porque não sei quanto tempo demoram a prescrever as irresponsabilidades dos pais. Podem ser criticáveis, mas ainda hoje te lembras delas e me dizes, o pai era muito maluco… E os abraços continuavam sempre.

Depois, a pouco e pouco, como se quisesses respeitar a minha dependência e fazer uma “desintoxicação” lenta, os abraços foram sendo mais esquivos. Primeiro quando estavas com os teus amigos, depois mesmo sozinhos. Respeitei. Mais uma vez me socorri dos psis, que dizem que na adolescência vai tudo para os de fora, os de dentro têm de esperar que venham melhores dias. Confesso que tive ciúmes quando te via abraçar um amigo ou uma amiga, um avô ou uma avó. Mas tinha algumas migalhas nos dias de aniversário, ou quando trocávamos presentes no Natal.

Tudo passou, ficaste um adulto, claro que nunca mais correste para mim de braços abertos, mas os abraços voltaram. Até que veio a malfadada pandemia. No início ainda tentei esquecer-me, mas tu nunca te esquecias. Fugias de mim, no corredor da nossa casa. Quando nos cruzávamos, encostavas-te às paredes. Mas talvez nunca tenhamos falado tanto. De nós, da política, da família.

Aprendi contigo a aceitar decisões de outros que nos afetam profundamente. Devia ser ao contrário, mas usaste um argumento imbatível. Tivemos sorte, ninguém, da nossa família adoeceu. Protestámos juntos, contra os disparates que íamos ouvindo na televisão. Deixámos de ver notícias quando nos fartámos da exploração diária do número de mortos. Expliquei-te, o que já sabias, as desgraças vendem, em nome daquilo a que se chama verdade...

Falámos muito acerca da economia ter de ser para as pessoas e de como sem pessoas não há economia. Da injustiça dos confinamentos para aqueles que não têm ordenado certo ao fim do mês. É verdade que não demos abraços, mesmo com máscara, mas conhecemo-nos melhor. E perdemos as nossas arrogâncias. Eu a de pai e tu a de filho.

Até que chegou a vacina. Eu armado em conhecedor a tentar imaginar hierarquias de vacinação. A cada ideia que tinha, tu replicavas, o pai está a complicar. Isto é muito simples, dizias. Primeiro aqueles que vivem no meio do vírus e depois dos cem anos para baixo... E fazias contas, os avós devem ser vacinados lá para... e os pais lá para...

Até que chegou o meu dia. O primeiro e depois o segundo. Deixaste passar duas semanas, tantas conversas tinhas ouvido que já sabias umas coisas de imunologia. Cheguei a casa ao fim da tarde. Correste para mim como fazias em criança e deste-me um abraço. Nunca mais me irei esquecer do que me disseste: “Finalmente damos um abraço carregado de anticorpos.”

domingo, 28 de março de 2021

O Opus Dei

 


por estatuadesal

(Carlos Esperança, 26/03/2021)

1 - O Opus Dei e São Josemaria

Em 26 de junho de 1975 faleceu monsenhor Josemaria Escrivá, indefetível apoiante do genocida Francisco Franco e fundador do Opus Dei, apoiante dos negócios políticos de João Paulo II, que levaram à falência fraudulenta do banco Ambrosiano e à criação de centenas de santos em Espanha, todos mártires do mesmo lado da guerra civil.

Levou a vida ao serviço de Deus e do fascismo, seguiu as tropas sediciosas a Madrid, e os seus devotos, a quem indicou o caminho, levaram à falência os impérios Matesa e Rumasa, para maior glória da prelatura e benefício dos desígnios do Monsenhor.

Mal refeito da defunção, obrou 3 milagres, mais 1 do que necessário para a santidade. O primeiro foi no ramo da oncologia, a uma freira, prima de um ministro de Franco, que logo morreu curada. Está nos altares e deixou um exército de prosélitos, apto a enfrentar o islamismo e a subsidiar o Vaticano, onde, depois de dois pontífices amigos, o Espírito Santo iluminou mal os cardeais do consistório e lhes negou o terceiro.

Fundador de uma das mais reacionárias seitas católicas, usava o cilício como prova de amor ao deus que defendeu o generalíssimo, a monarquia, o catolicismo e o garrote, em Espanha.

O 25 de Abril, em Portugal, não o abalou na fé, debilitou-o na saúde. As eleições livres de 1975 só o deixaram respirar mais dois meses. Também Franco, ditador até ao último sacramento, finar-se-ia escassos 5 meses após o santo, bem confessado, melhor comungado e excelentemente ungido e cerimoniado, com o povo de rastos, a cumprir de joelhos as suas últimas vontades quanto ao regime de Espanha e ao destino do cadáver.

2 – A santidade do Opus Dei

“O Opus Dei é uma instituição que busca a perfeição espiritual dos seus membros e a satisfação da vontade divina.”

Acontece, às vezes, que a vocação para a política e para o sector financeiro extravase a necessidade de salvação da alma e comprometa a imagem dos seus membros.

Os jejuns, as orações e os cilícios não ocupam todo o tempo destinado à santidade. Foi o que permitiu ao virtuoso Escrivá apoiar o franquismo sem se esquecer, certamente, de rezar por mais de 900 mil espanhóis assassinados ou deportados pela ditadura.

O virtuoso monsenhor, que já em vida revelou odor a santidade, sentido por pituitárias pias, foi rapidamente canonizado por João Paulo II.

Claro que o Opus Dei teve percalços. Os casos Rumasa e Matesa são nódoas que caíram no pano impoluto da Obra, falências dolosas que os inimigos de Deus aproveitaram para denegrir a santa prelatura. Mais tarde a falência fraudulenta do Banco Ambrosiano salpicaria o Opus Dei e as autoridades italianas quiseram julgar o arcebispo Marcinkus, valendo-lhe a bondade de João Paulo II que não consentiu a extradição e impediu a investigação dos crimes.

Era o que faltava, enxovalhar nos tribunais a Obra que subsidiou o Solidariedade e que a única coisa que não consegue do Céu é que lhe mande dinheiro.

O Supremo Tribunal Suíço, localizado em Lausanne, caracterizou, numa sentença, o Opus Dei como «associação secreta» que atua «ocultamente» com um máximo de opacidade nos seus assuntos. (1).

Coisas de juízes terrenos, que ignoram a transparência do Opus Dei em relação a Deus.


(1) O Mundo Secreto do Opus Dei - Robert Hutchison (pg. 450), 29-07-2007

Apostila – Deve dizer «o» Opus Dei e não «a» Opus Dei. Opus é do género neutro em latim o que dá masculino em português, mas está vulgarizado o feminino, referido à Obra pia, associação pouco recomendável.

Os movimentos pela “verdade” que negam a pandemia

 

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 27/03/2021)

Pacheco Pereira

As origens destes movimentos são muito diferentes, têm várias fontes e algumas tradições, mas hoje fazem parte de uma nova extrema-direita que está a emergir em vários países europeus e nos EUA. A classificação de extrema-direita tem sentido, porque a sua génese no populismo actual não é equilibrada no conjunto do espectro político, ou seja, comunica mais com o quadro tradicional dos temas da extrema-direita, de onde vêm muitos dos seus elementos e para onde vão muitos dos seus elementos.

Sublinhe-se desde já que alguns dos movimentos, por exemplo, contra a ciência, existem também na esquerda, mas são mais “calmos” e menos militantes do que os seus congéneres à direita. Há raras excepções, uma das quais é o antiespecismo radical que inclui formas de “guerrilha”, por exemplo, para “libertar” animais que estão a ser usados por laboratórios para testar medicamentos, implantes, cosméticos. Se é por isso possível comparar as teorias das “medicinas alternativas”, “holísticas”, homeopáticas, “orientais”, do veganismo, de formas de “regresso à natureza”, como, por exemplo, a propaganda dos partos em casa, que já causaram mortes, ou movimentos precursores da luta contra as vacinas, elas estão longe da excitação agressiva dos movimentos actuais pela “verdade”.

Outra observação prévia é que as medidas de restrição e confinamento são particularmente danosas para certas áreas económicas, como a restauração, os espectáculos, o turismo, e isso significa um pano de fundo social – com falências, perdas de lucros, despedimentos, encerramento de empresas, quebra de expectativas económicas, pobreza – para a radicalização dos movimentos pela “verdade”. O custo social e económico da pandemia e do combate à pandemia são os factores a que se deve prestar mais atenção, para se diminuir o processo de radicalização em curso.

Voltemos à “verdade”, nome absurdo mas revelador da pretensão destes movimentos de que são detentores de algum conhecimento especial que está a ser escondido pelo poder político e pelos cientistas, que estão a usar a pandemia como pretexto para terem mais poder e para limitar as liberdades. Estão a tentar criar uma “ditadura” em nome de interesses ocultos para o vulgo, mas bem conhecidos dos “verdadeiros”, seja a conspiração judeo-maçónica, o grupo de Bilderberg, os demónios vivos de George Soros e de Bill Gates, os que estão a encher os ares de sinais 5G, ou alienígenas maléficos. Como diz um cartaz empunhado por um senhor “verdadeiro”: “Os mafiosos da farsa covid grupo Bilderberg com a loucura da nova ordem mundial seguidos pelos lacaios políticos mundiais da maçonaria e do Opus Dei. Acordem.

Todas estas teorias da conspiração estão aí e circulam em Portugal, e têm um único motivo: não há pandemia, há uma “gripezinha”, os mortos não morreram de covid, mas de outras enfermidades, devem tomar uma série de remédios ou mezinhas – o mais célebre, pela propaganda fantasiosa de Trump-Bolsonaro, foi a hidroxicloroquina –, o uso de máscaras destina-se a tapar os “sorrisos”, porque, como diz um cartaz, as “máscaras geram desconfiança”.

A segunda palavra mais usada é “liberdade”, hoje uma palavra que também está doente de tanto abuso. Uma mãe e uma filha ainda criança posam numa destas manifestações com uma dupla de cartazes que são todo um programa. “Não ao uso de máscaras nas escolas/ não ao novo normal/ temos o direito de respirar ar puro”, diz o cartaz da pobre da criança. E o da mãe diz: “Não ao uso obrigatório de máscaras na rua/ não DGS controlo a mais! Poder a mais!/ não aos controlos DGS/ não ao novo normal/ não consentimos!” Ou seja, querem tirar-lhes a liberdade para terem um “novo normal”. Um outro cartaz explica que esse “novo normal” é uma “ditadura”, resultado destas “medidas perversas”.

O que exigem é liberdade para não usar máscara, liberdade para se fazer festas seja com que número de pessoas for, liberdade para andar aos beijos e abraços, liberdade para ir aos restaurantes, visitar os lares, etc. Podiam lembrar-se de acrescentar outras liberdades, como seja não usar capacete nas motas ou cinto de segurança, andar nas estradas a 200 à hora, entrar livremente na casa das pessoas, porque o direito de propriedade é uma usurpação (isto não dizem, claro, para não parafrasearem Proudhon e a sua “propriedade é um roubo”…), e por aí adiante. Na verdade, em nenhum destes casos está em causa a liberdade, que é de outra natureza e que nada tem que ver com o uso de máscaras.

A maioria destas irresponsáveis patetices não se ficam pelos cartazes “verdadeiros”, encontram-se também em artigos de opinião no Observador, que podiam ser citados como versões dos cartazes acima – e, se não fossem pagos, já de há muito mereceriam outra exposição –,​ ou nas manifestações do Chega e proliferam como vírus nas redes sociais. Estão lá exactamente os mesmos temas, a “ditadura” de Costa e do “bloco central”, o abuso das medidas de confinamento contra as “liberdades”, a inutilidade das máscaras, a “invenção” da pandemia.

Se nós fôssemos, mais do que já somos, uma sociedade má, tomávamos à letra estas reivindicações. Muito bem, querem ter estas “liberdades”, façam uma declaração de que se responsabilizam pelos custos do tratamento da covid, caso fiquem infectados. E se fôssemos uma sociedade ainda pior, não os deixávamos entrar no SNS, onde os tratamentos são gratuitos, porque os pagamos todos nós. E depois exigir uma segunda declaração sobre a responsabilidade de indemnizar todos os que se provem que foram infectados por um dos “verdadeiros” e, no caso de essa infecção resultar numa morte, condenação por homicídio. E depois dar-lhes um autocolante a dizer: “Já sou livre, venha a covid que eu não tenho medo.” Tenho quase a certeza de que não ia ser preciso distanciação social, as pessoas fugiam todas…