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quinta-feira, 29 de abril de 2021

Salazar nasceu há 132 anos e Mussolini morreu há 76. Há dias assim…

 

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 28/04/2021)

O céu está agora cinzento, o tempo incerto, alternado o sol e a chuva, numa primavera sob o medo da pandemia, ainda com receio doa recidiva do vírus que nos afastou dos amigos e da família.

A comunicação social, tão dada a evocar mortes, parece ter esquecido o nascimento do abutre de Santa Comba Dão, daquele pérfido seminarista que, segundo a Irmã Lúcia foi enviado pela Providência Divina, o organismo da Segurança Social Celeste que escolhe políticos sem recurso ao incómodo sufrágio popular.

Faz hoje 125 anos que nasceu o sinistro ditador que acreditava na bondade de Cerejeira e na eficácia de uns pontapés dados a tempo como profilaxia dessas ideias nefastas, que a Inglaterra exportava, de um exótico regime conhecido por democracia.

Não há notícia de missas de sufrágio, novenas de ação de graças ou orações por alma do ditador. Vergonha ou amnésia, os próprios herdeiros espirituais renunciaram à herança e envergonham-se de dar testemunho público da saudade pelo torcionário que tinha sobre a mesa de trabalho a fotografia de Mussolini.

E vejam lá, leitores, a ironia do calendário! Benito Mussolini, que assinou os acordos de Latrão, que também foi enviado pela Providência divina, segundo o Papa de turno com quem se obrigou a tornar obrigatório o ensino da religião católica nas escolas públicas italianas e a quem entregou um avantajado óbolo do tesouro italiano, Benito Mussolini – dizia –, foi executado no dia de hoje, há 69 anos, no Lago Como, quando tentava a fuga para a Suíça. Os guerrilheiros italianos travaram-lhe o passo.

A tarde continua cinzenta e incerto o tempo neste dia de pesadas efemérides, um nascimento e um óbito, de dois crápulas que jamais deviam ter nascido

Quando Rio, Santos, Ventura e Figueiredo se encontram num salão

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 27/04/2021)

É uma festa, que promete nada mais e nada menos do que abundar sobre a “reconfiguração social, política e económica para as próximas décadas”, nas vésperas da inauguração do congresso do Chega, que foi apontada para o faustoso dia 28 de maio. A caminho destas décadas tão prometedoras, a convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL) junta os chefes dos quatro partidos da direita, os recentemente chegados encerram as manhãs, os que têm mais pedigree encerram os dias (Rio faltou no ano passado, vai este ano ser a estrela da companhia). Acrescenta-se a aristocracia do Observador, que veio em peso, José Manuel Fernandes, Rui Ramos e Helena Matos, mais alguns cronistas avulsos (e que injustiça esquecerem os do Sol), um painel dos notáveis do PS que são parceiros deste mundo, Luís Amado, Sérgio Sousa Pinto, Álvaro Beleza, mais um ex-governante PS que era do PSD e retornou ao PSD, Nogueira Leite, também Henrique Monteiro, não podia faltar, e mais algumas glórias laranjas, Joaquim Sarmento, Miguel Morgado e Poiares Maduro, desta vez Montenegro foi esquecido, e do CDS, Paulo Portas. Há ainda uma feira de extravagâncias: o representante dos hospitais privados, Óscar Gaspar, ou Camilo Lourenço, que escreve sobre a “deriva bloquista de Vítor Gaspar” e do FMI, lá se irão explicar ao Centro de Congressos. Numa palavra, está toda a gente que devia estar e, em vez de notarem com surpresa esta confraternização, os analistas deviam saudar o acontecimento, do qual resulta um interessante sinal convivial. Quanto mais juntos melhor, quanto mais falarem melhor.

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Tavares, outro dos que vai partilhar “oxigénio e alcatifas” com estas figuras gradas, garante que é tudo só para proteger os direitos oprimidos de alguns coitados que são silenciados pelo manto pesado da censura e lá estará, “de preferência na primeira fila e com a seguinte inscrição" na sua T-shirt: 'André, boa parte das tuas ideias são uma vergonha, mas vergonha maior era não as poderes defender'” (ofereço-me para pagar esta tshirt a Tavares, como incentivo carinhoso à sua coragem democrática, o coitado do “André” está tão impedido de dizer o que pensa). Isto promete, vão discutir o tamanho das vergonhas respetivas.

Só que, em janeiro de 2019, o André escorraçava esta iniciativa para a qual não fora convidado, nos termos que só ele sabe utilizar: “Qualquer líder de direita e centro-direita devia estar envergonhado de participar num movimento como este (…), é um favor que me fazem não me convidarem”. Logo no ano seguinte fizeram o favor de o convidarem e lá esteve. Agora repete cordatamente, desta vez como encerrante de uma manhã de profícuas discussões, acolitado pelo seu vice-presidente, Nuno Afonso, e por Fátima Bonifácio, que há pouco explicou ao povo maravilhado que, como “a direita não se conseguiu impor com boas maneiras e falinhas mansas”, uma vitória do Chega será o início de “uma barrela de alto a baixo” no país.

O problema é que os organizadores parecem discordar destas versões delicodoces, ou até suspeitar da higiénica “barrela de alto a baixo”. Chefiados por Jorge Marrão, partner no “Deloitte Hub” (“o Jorge Marrão lidera o Real Estate em Portugal”, diz a empresa, orgulhosa), garantem que a ambição é “caminhar-se para um compromisso num espaço político alargado dentro do arco constitucional”. Pelos vistos, o partner da Deloitte anuncia que está a servir de consultor para organizar o “compromisso”, “alargado” como não podia deixar de ser, para a direita constitucional. Treta. Como o CDS não está capaz de eleger um deputado e o IL brilha com 1% na última sondagem do Expresso, Santos e Figueiredo só servem para o coro do convívio e sobram unicamente dois protagonistas, o Chega e o PSD. Ora, estes até podem dançar o fox trot, mas não será com a música do arco constitucional.

A operação pode ser ideologicamente ambiciosa. Desde que a direita se começou a trumpizar, mistura alegremente todos os fantasmas do passado, como o renascer da ordem patriarcal (se o Presidente começa um discurso com “minhas senhoras e meus senhores”, é uma miserável cedência ao “politicamente correto”), a mobilização do fanatismo religioso (a exclusão dos infiéis), o maccartismo (o “fundo de verdade” de que “os comunistas comem crianças”), os mais variados discursos de ódio e, sobretudo, a cereja das cerejas, o mercado como definição natural das coisas. Todos esses fantasmas se vão passear no “oxigénio e alcatifas” da bendita convenção. O problema é que isso não serve para nada, por mais que se aplaudam uns aos outros.

Nada pode evitar ao compromissador Jorge Marrão, ou aos dois chefes partidários que ficarão de pé no salão depois das salvas das urnas, Rio e Ventura, uma escolha entre dois caminhos. Para ter votos suficientes para negociar poder, Ventura tem de prometer um regime terrorista de violação constitucional (castração, prisão perpétua, pena de morte, apartheid para ciganos); então, quanto mais ganhar mais perde. Para ter votos suficientes para disputar alguma coisa do centro, Rio não pode propor-se ao país para reduzir o RSI ou os subsídios de desemprego, tem de dizer alguma coisa de aceitável. Pensar que destes caminhos diversos pode resultar um acordo “para as próximas décadas” é uma fantasia. Muito ficará pelo caminho e só assim se poderão entender, traindo-se um e outro ou um ao outro. Mas, como é bem evidente na agenda do tal convívio, não têm ideia alguma sobre qual será o caminho. 

Marcelo e o país mais que imperfeito

Posted: 27 Apr 2021 03:18 AM PDT

 


«Em 2017, oito alunos de história do 12.º ano do Liceu Camões aceitaram falar com o DN sobre a forma como viam o passado imperial e colonial português. Para estranheza da própria professora, a maioria reproduziu o mito de que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761 (altura em que foi abolida a escravatura apenas no território de Portugal "metropolitano" e mesmo assim não completamente). Do mesmo modo, quando questionados sobre o que sucedera aos escravos depois de em 1869 se ter dado a oficial abolição da escravatura em todos os territórios nacionais, muitos ficaram interditos. Um afirmou: "Então, deram-lhes o estatuto igual aos das outras pessoas."

Não é espantoso. A maioria esmagadora dos portugueses, atrevo-me a dizer - eis uma sondagem que gostava de ver - continua a achar que "fomos os primeiros a abolir" e desconhece totalmente o facto de à escravatura dos negros se ter seguido o trabalho forçado, só formalmente abolido em 1962. Essa realidade do trabalho forçado, que em pouco se distinguia da escravatura, atravessou o final do século XIX, a Primeira República e praticamente todo o Estado Novo. Nas leis, os negros classificados como "indígenas", ou seja a maioria da população de Moçambique, Angola e Guiné, eram excluídos da cidadania e tratados como sub-humanos - constatação que o próprio regime salazarista fez através dos seus documentos internos, como demonstra o historiador José Pedro Monteiro em Portugal e a questão do trabalho forçado (Edições 70, 2018).

A esmagadora maioria dos portugueses, dizia, desconhece estes factos, e desconhece-os não porque eles não estejam amplamente estudados por gerações de historiadores e investigadores académicos, com vasta obra publicada sobre a matéria, mas porque disso pouco tem passado quer para a discussão pública quer, o que é fundamental, para aquilo que se aprende na escola e se lê nos manuais do ensino básico e secundário. E não passa porque haja uma determinação consciente e malévola de mentir, mas porque coletivamente nos apegámos à mistificação.

O problema não é, ao contrário do que se possa crer, exclusivo de pessoas "pouco cultas". Ainda há poucos meses um reputado constitucionalista português me asseverava que o "nosso" regime colonial não foi racista. Quando lhe retorqui com alguns factos básicos - nomeadamente a instituição do trabalho forçado e a lei do indigenato - respondeu-me "era assim também nos outros países". Só ficou sem argumentos quando lhe lembrei que data de 1930 a convenção da Organização Internacional do Trabalho - só ratificada por Portugal em 1956, com prazo de cinco anos para aplicação - obrigando os signatários a acabar com o trabalho forçado no mais curto prazo possível, e que os próprios relatórios dos funcionários coloniais portugueses comparavam, até ao final dos anos 1950, a realidade do trabalho forçado à da escravatura, descrevendo castigos corporais com chicote e grilhetas e chegando a dizer que o primeiro era pior que a segunda, já que nesta ao menos o dono não estava interessado em matar o escravo já que pagara por ele, enquanto no trabalho forçado tanto lhe fazia: se morria pedia outro.

A ideia de que "não se pode olhar para a realidade do passado com os olhos de hoje", tão usada a propósito da história imperial e colonial portuguesa, soçobra perante a evidência de que estamos também a falar de coisas que se passaram há menos de 100 anos, quando outros países ocidentais já tinham iniciado a descolonização e quando eram muitas as vozes, inclusive em Portugal e nas colónias, a criticar - e a lutar contra - o que se passava. Muitos dos olhos de então já olhavam aquela realidade como a olhamos hoje, como iníqua, ilegítima e brutal.

E sim, vem todo este grande intróito a propósito do discurso de Marcelo neste 25 de abril - um discurso notável, talvez o melhor que já lhe ouvi, e no qual teve a inteligência de sublinhar a sua condição de filho do último ministro das Colónias e de um dos últimos governadores de Moçambique, testemunha privilegiada (em vários sentidos) do ocaso do império e da ditadura colonial.

Esta assunção da sua condição pessoal - que aliás repetiria a seguir num encontro com capitães de Abril e jovens, no qual também fez um discurso muitíssimo interessante - tem um propósito mais ou menos claro: o de demonstrar, e bem, que o 25 de Abril é simultaneamente rutura e continuidade. Como ele, filho de um alto dignitário da ditadura que faria parte da Assembleia Constituinte de 1975 e acabaria duas vezes eleito presidente da democracia, os militares que fizeram o golpe "não vieram de outras galáxias, nem surgiram num ápice daquela madrugada para fazerem história. Traziam já consigo a sua história." E a sua história eram "as suas comissões em África, uma, duas, três, até quatro, (...) tudo em situações em que a linha que separa o viver ou morrer é muito ténue."

Eram pois os soldados do regime colonial, algozes, ocupantes, matadores, até serem os heróis da libertação. Sabemo-lo, ou devemos sabê-lo - mas saberá Marcelo distinguir entre quem retirou dessa experiência a deliberação de acabar com ela e quem, como Marcelino da Mata, a cujo enterro foi há meses como presidente, ou seja em nome de todos nós, se gabava dos seus crimes nessa guerra e louvava a ditadura?

É que esse é o problema: distinguir. E Marcelo, como a maioria esmagadora dos políticos da democracia, sejam como ele filhos de homens da ditadura ou como António Costa de oposicionistas, têm mostrado dificuldade nessa distinção e nesse olhar para trás, na capacidade de traçar a linha entre o que é admissível e até celebrável e o que deve ser censurado - porque é preciso dizer que houve coisas censuráveis e criminosas, por mais que tenham feito parte de um contexto.

Daí que seja tão bem-vinda a exortação do presidente para "que se faça história, história da história, que se tirem lições de uma e de outra, sem temores sem complexos", o reconhecimento de que "é prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. (...) Que saibamos fazer dessa história lição de presente e de futuro. Sem álibis nem omissões (...)."

É isso mesmo. Ou seria, se a seguir não acrescentasse: "É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas nem autoflagelações globais excessivas (...) nem apoucamentos injustificados." É de novo a preocupação com "a visão auto flageladora da nossa história" que vimos recentemente em António Costa, preocupação extraordinária num país que até hoje se encarniça em negar "o que houve de mau" ou chega mesmo a celebrá-lo; preocupação contraditória num discurso presidencial que nos diz que temos de olhar a história também "pelo olhar dos colonizados".

Olharmo-nos pelo olhar dos "descobertos", dos submetidos, dos colonizados e dos seus descendentes não é só dizer que "nunca houve um Portugal perfeito" - a melhor frase do discurso do presidente. É sobretudo reconhecer o que desse passado mais que imperfeito resta em nós como país, denunciá-lo e combatê-lo. Aquilo, suspeito, a que Marcelo chama "excesso".»

terça-feira, 27 de abril de 2021

Estado da direita: a decência é agora a excepção


por estatuadesal

(Por Valupi, in AspirinaB, 27/04/2021)

discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 47.º aniversário do 25 de Abril foi um eficaz exercício de comunicação. No conteúdo, corresponde a uma aula de História ao nível do ensino secundário onde os objectivos didácticos sejam a ilustração dos conceitos de “relativismo moral” e de “comunidade”. O texto leva a sua audiência a contemplar a complexidade, a mistura, dos tempos dentro do tempo.

A cada tempo, a cada espaço no tempo, os seus valores. Dos valores vem o comportamento, conforme ou opositor. Se nos focarmos no último século (estamos quase a chegar a um data axial da contemporaneidade, o centenário do 28 de Maio de 1926), o discurso lido na Assembleia da República para comemorar uma mudança de regime apela a que se aceite a bondade de todas as partes. Eram bons os que fizeram maldades, pois não sabiam fazer melhor ao tempo. São bons os que querem fazer maldades por causa das maldades dos antigos, pois no seu espaço e no seu tempo sentem a pulsão da vingança e da revolta. Mas todos se devem perdoar e tolerar, sendo a esse desfecho que colhe chamar “comunidade”. Prova de que tal é possível? Aqui o discurso salta para o metadiscurso, num clássico golpe retórico, e o autor faz das suas palavras – e do momento da fala, desse καιρός – a evidência que reclama: ele tinha sido um dos maus e tornou-se bom. Portanto, sejam amigos, vá lá.

Este é um conteúdo simples, que não chega a cair no simplismo só porque a direita portuguesa há muitos anos que se barricou no grau zero da inteligência política. Desistiram de pensar a cidade, de ter projectos que sejam competitivos em eleições, e reduziram-se à chicana, ao golpismo e ao ódio. Nesse nível, a transmissão de mensagens apenas utiliza o berreiro como canal. E que se pode dizer a berrar? Tão-só que os adversários são o inimigo, o Diabo. É esse o papel do editorialismo e da indústria da calúnia, que em Portugal é um monopólio da direita.

Ora, perante esta decadência, um discurso repleto de bem-intencionadas vulgaridades, como o que Marcelo engendrou com arte, está a gerar uma comoção ditirâmbica. Como se fosse espantoso ouvir um tipo de direita a reconhecer um terreno comum, a apelar à união na diversidade, a ser decente. E a promover a empatia, inclusive para seu próprio benefício. Empatia que é antinómica, mesmo cognitivamente paradoxal e insuportável, com a exploração da frustração e do rancor a que a direita se entrega desde 2007.

Há dois subtextos, porém, no espectáculo oferecido por este actor tarimbado. O primeiro é o de na sua tese se sobrevalorizar aqueles com quem mais Marcelo se identifica, a rapaziada do seu tempo, apelando a que os outros, vítimas próximas ou distantes dos seus, acolham essa diferença. A esta pretensão se deve contrapor a daqueles que reclamam por não terem a sua diferença reconhecida de forma plena, ou suficiente, ou mínima. O segundo é o de Marcelo também ter na sua equipa a Cofina, o João Miguel Tavares e o Marques Mendes, para dar três exemplos que dispensam explicações. Esse Portugal onde a política é uma praxis da violência, do poder pelo poder através da tentativa de destruição de quem se lhes oponha, não é aquele nascido do 25 de Abril. Ao contrário, é contra ele que o 25 de Abril doa sentido à História. 

Quando tivermos um dia a mais de liberdade

Posted: 26 Apr 2021 03:57 AM PDT

 


«Tenho passado anos nestas páginas escrevendo sobre a importância do dia em que tivermos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura, mais tempo de liberdade do que de repressão. Para mim, essa data tem uma importância que vai muito para lá de uma mera efeméride: mais do que uma comemoração, ela deve ser uma missão.

Vi por isso com natural contentamento o Governo decidir iniciar as comemorações para os cinquenta anos do 25 de Abril no dia 24 de Março de 2022 — que calcularam como a data em que o tempo da democracia ultrapassará o da ditadura — e nomear como comissário dessas comemorações Pedro Adão e Silva. É, portanto, daqui a apenas onze meses que esse ciclo se inicia. Nos próximos parágrafos quero relembrar os argumentos a favor da sua importância histórica e aqueles que, em meu entender, podem ser os seus objectivos.

Portugal padeceu a mais longa ditadura da Europa ocidental, durante praticamente quarenta e oito anos, e isso deixa marcas. A gerações, a indivíduos, à sociedade como um todo. Hoje dei por mim a pensar que a mim, nascido em Julho de 1972, o tempo em democracia superou o tempo em ditadura muito cedo, antes dos meus quatro anos. Mas ao meu pai, nascido em 1929, a democracia só chegou quase aos quarenta e cinco anos, e ele nunca chegou a ter mais tempo de liberdade do que opressão. A maior dívida de gratidão, é claro, vai para todos aqueles e aquelas que lutaram contra a longuíssima ditadura sem chegarem a ver o fim dela. Vidas que não puderam realizar o seu potencial em democracia, gerações inteiras sujeitas aos horizontes estreitos da ditadura.

O 25 de Abril representou uma atualização de Portugal com a história do mundo tão grande que por vezes ainda não é inteiramente entendida. Não só porque nas meras vinte e quatro horas daquele dia uma série de coisas que eram dadas por adquiridas passaram a ser inconcebíveis — a polícia política, a censura prévia, os presos de opinião — mesmo que nem tudo tenha estado no plano inicial. Mas sobretudo porque em pouco tempo se tornou evidente que “ao fim do ciclo imperial” se iria suceder “um ciclo europeu”, como um ano antes escrevera José Medeiros Ferreira. Essa atualização inevitável significou uma viragem radical da inserção geopolítica e geoeconómica do nosso país depois de 500 anos de história. Ainda muitas vezes acho, nos nossos debates sobre Portugal, a Europa e a globalização, que não se entende verdadeiramente a enormidade desta adaptação em tão pouco tempo, e o seu significado profundo: que basicamente Portugal como era não seria sustentável nesse novo ciclo, com o fim dos mercados cativos e da extração de matéria-prima nas colónias, e com uma força de trabalho com baixos níveis de qualificações a ter de competir num continente onde a maior parte da produção continha níveis de incorporação de conhecimento e tecnologia então inatingíveis para nós.

O manifesto do Movimento das Forças Armadas trazia consigo uma espécie de fórmula-síntese particularmente brilhante no traçar do rumo para os primeiros tempos do novo regime. Eram os “três D” que vinham precisamente do texto de Medeiros Ferreira ao Congresso da Oposição Democrática de 1973, de Democratizar, Desenvolver e Descolonizar (no texto original de 1973 havia também um “S”, de socializar, que não aparece no manifesto do MFA). Nenhum desses “três D” perdeu atualidade — não, nem o de descolonizar. Continuamos a precisar de aperfeiçoar e reforçar a nossa democracia; precisamos absolutamente de encontrar um novo modelo de desenvolvimento para o país; e ainda apenas adentrados no ciclo pós-imperial, continuamos a precisar de definir melhor o nosso lugar na Europa e no mundo, e a encontrar formas de sarar as chagas do colonialismo que ainda sobrevivem em novos preconceitos, discriminações e assimetrias.

Mas agora que nos aproximamos de ter mais tempo de democracia do que de ditadura, é cada vez mais pelo futuro que temos de definir. Isso significa rever metas, mesmo dentro do acervo de abril. Um exemplo que costumo dar: o objetivo da convergência com a média da União Europeia já deveria desde o início deste século ter sido considerado obsoleto; ele serviu bem à geração dos meus pais e dos meus irmãos, mas já não chega para a geração dos meus sobrinhos e filhos. E significa, no fundo, encontrar os novos “três D”, a fórmula-síntese que trace o rumo para uma democracia madura que depende cada vez mais só de si.

Por isso digo que mais do que comemoração, precisamos de uma missão. Uma missão por uma nova relação entre Estado e cidadão, entre o país e o seu território, entre as gerações e o seu futuro, num período que será marcado por enormes transformações tecnológicas, ambientais e sociais mas no qual queremos que a democracia fundada no 25 de Abril não só sobreviva mas floresça. Venham mais cinquenta.»