(Daniel Oliveira in Expresso Diário, 21/07/2017)
O teu texto aponta sintomas mas não vai ás causas do mal. Quanto maior for a concentração da riqueza nas mãos de uma minoria a nível global, fenómeno que é cada mais intenso, menos lugar haverá para a existência de instâncias independentes, sejam partidos ou outras formas de representação política, sejam meios de comunicação social. A razão é simples: numa economia de mercado só há concorrência quando o número de compradores e de vendedores for suficientemente grande (atomicidade) para que nenhum deles possa determinar o funcionamento do mercado, nomeadamente dos preços. Se concentramos o poder de compra, logo de financiamento, nas mãos de uma minoria, qualquer instância de mediação fica subordinada a essa minoria. Só há orgãos de comunicação social com alguma independência quando a sua sustentação depende de um conjunto de leitores tão diverso e alargado que nenhum grupo lhes poderá determinar a orientação, já que têm que atender a um conjunto amplo e multifacetado de destinatários. Com o incremento da desigualdade na repartição do rendimento, o público leitor capaz de ser o sustentáculo dos meios de comunicação social é cada vez menor, para já não falar das mutações tecnológicas.
Mas há uma questão que ignoras e que também justifica a reacção exarcebada da comunicação social contra as redes sociais e contra a internet. Durante décadas a comunicação social foi usada de forma oculta para manipular a opinião pública, e nem sempre de forma ingénua (vide a grande mentira sobre a guerra do Iraque e as armas químicas do Sadam).
Ou seja, a comunicação social "respeitável", tinha o monopólio das "fake news", e também elas faziam parte do seu "core business". Neste momento perdeu esse monopólio. E quando se passa de monopólio para um mercado de concorrência, o trauma é sempre enorme.
Estátua de Sal, 21/07/2017
Apesar de ter mais de 150 mil seguidores, muitos leitores não conhecerão a página de Facebook “Os Truques da Imprensa Portuguesa” (https://www.facebook.com/ostruques/).
A página, claramente alinhada à esquerda, dedica-se a denunciar o que considera ser o mau trabalho de jornalistas e órgãos de comunicação social. Concordando com umas coisas e discordando de outras, a recolha é bem feita, com trabalho de pesquisa exaustivo e quase sempre difícil de contestar. Dois pecados. Um menor: as críticas têm um evidente viés político. A maior: o anonimato. Criticar trabalho com assinatura sem pôr a assinatura é desleal. Escrutinar os outros sem dar os instrumentos para ser escrutinado é pouco sério.
Mas não foi por nenhuma destas razões que os jornalistas, e especialmente diretores e editores de órgãos de comunicação social, reagiram com uma rara violência a uma simples página de Facebook. A razão é mais simples: os jornalistas, que se dedicam ao escrutínio, odeiam ser escrutinados.
Sobretudo quando percebem que esse escrutínio é ouvido e lido por muita gente. Estão, aliás, muito pouco habituados a ser escrutinados de forma sistemática. E esse escrutínio torna-se especialmente cruel quando a quase totalidade das empresas de comunicação social está virtualmente falida.
O tempo em que nos queixávamos da proletarização dos jornalistas, cada vez mais alienados do seu trabalho, está a ficar para traz. A coisa está hoje muitíssimo mais feia. A crise, que as redes sociais e o modelo de negócio que entrega todo o poder e todos os lucros às plataformas na Internet, acelerou extraordinariamente na última década.
A imprensa portuguesa pode desaparecer, talvez com exceção de alguns tabloides, nos próximos dez anos. E isso ajuda a explicar uma reação ainda mais agressiva dos jornalistas ao cerco político, mesmo quando legítimo, que lhes é feito por páginas como “Os Truques da Imprensa Portuguesa”.
Sendo a situação portuguesa mais dramática, graças à pequenez do País e da sua massa de leitores de jornais, a fragilidade económica da comunicação social é um problema em todo o mundo. Aconselho, para refletir sobre todas as contradições que este debate complexo nos revela, o visionamento, na Netflix, do documentário “Nobody Speak”. O filme concentra-se no caso que pôs o lutador de wrestling Hulk Hogan (nome profissional de Terry Gene Bollea) contra o site de escândalos Gawker, numa longa e dispendiosa batalha jurídica. À partida, é óbvio identificar o lado certo desta história. O Gawker decidiu revelar um filme de sexo entre o lutador e a mulher de um amigo seu (gravado pelo seu amigo) e o lutador moveu-lhes um processo exemplar em nome do seu direito à privacidade. O problema foi quando se descobriu que por de trás daquele processo, a financiar os advogados e a garantir que aquilo teria uma dimensão absurda para o caso em discussão, estava Peter Thiel, diretor da PayPal e apoiante de Trump, que o mesmo site divulgara antes, sem cometer qualquer crime, ser homossexual. O objetivo daquele processo não era fazer justiça, era servir de instrumento para uma vingança, compreensível mas ilegítima, de um milionário.
No mesmo documentário analisa-se uma história bem diferente, em que o “Las Vegas Journal-Review” é comprado por um empresário do jogo especialmente visado pelo jornal, para garantir o seu silenciamento. Sendo muito mais fácil escolher um lado, a história levanta o mesmo debate: a fragilidade económica da comunicação social torna-a indefesa perante um poder económico cada vez mais concentrado. Nuns casos, são os jornalistas que dão o flanco, noutros limitam-se a fazer o seu trabalho. Os casos em que dão o flanco também se explicam pela sua fragilidade: sem recursos para grandes investigações, é tentador competir por cliques e anunciantes, acompanhando a dinâmica viral das redes sociais. As notícias não têm de ser credíveis se forem muito partilhadas, até porque as pessoas já não têm apenas o 'seu' jornal, mas uma sucessão de posts e partilhas onde se misturam histórias pessoais, notícias 'sérias' e informações falsas de sites obscuros. Este caminho, que apenas se concentra no sucesso de curto prazo, será a morte da comunicação social. Porque só se o jornalismo conseguir manter a sua pouco lucrativa credibilidade se distinguirá do burburinho das redes sociais e dos sites de notícias falsas e garantirá para si um espaço próprio. Como sobreviverá até lá, ninguém sabe. O mais provável é que não sobreviva.
É neste contexto geral que surgem “Os Truques da Imprensa Portuguesa”, causando um enorme desconforto entre os jornalistas. Um desconforto que resulta desta página identificar esta caminhada para o abismo e expor de forma clara a crescente falta de credibilidade da comunicação social tradicional. Quando a maior fragilidade desta página desapareceu, graças à revelação dos nomes dos seus dois principais promotores, a reação de alguns responsáveis pelos media, com destaque para o diretor adjunto do jornal “Público”, foi reveladora. Não havendo grande espaço para as teorias da conspiração que algumas pessoas alimentaram, passaram a fazer com os “Truques” o mesmo que acusam os políticos de fazerem aos media: um cerco para pôr em causa a liberdade de expressão e a possibilidade de cidadãos escrutinarem a imprensa.
A questão é, no entanto, tão difícil como a do confronto entre Hulk Hogan e o Gawker: o cerco político a uma comunicação social cada vez menos livre acontece no momento em que ela está a um passo do precipício e nada de melhor parece alinhado para a substituir. O que temos é mau. É cada vez pior. Mas a sua morte resultará num vazio trágico para a democracia. Na realidade, acontece com a imprensa o mesmo que acontece com os partidos políticos: a crise de todas as instâncias mediadoras é tão compreensível como dramática. A parte curiosa disto tudo é ver os jornalistas a experimentar a mesma dor que ajudam a infligir aos políticos: o descontentamento popular é alimentado por um cerco que muitas vezes roça a pura demagogia. O problema é que da mesma forma que não temos nada de democrático para substituir as decadentes máquinas partidárias não temos nada de livre e de qualidade para substituir a falida e desacreditada comunicação social tradicional. É por isso que não chega criar páginas para identificar os truques que a imprensa portuguesa usa para participar no confronto político ou económico. É preciso, como na política, ajudar a construir alternativas. Caso contrário a exigência torna-se apenas numa forma de suicídio democrático. A questão é se para além de escrutinar e exigir ainda somos capazes de construir.
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