(Francisco Louçã, in Público, 27/07/2017)
Se o leitor ou a leitora tem estado com atenção, estes dias recentes têm demonstrado uma das características mais divertidas do discurso político em Portugal: essa curiosa mistura de presunção e pesporrência, que tem erguido brilhantes carreiras pelo menos desde o Conde de Abranhos. Se para mais tivermos alguém que precise de se afirmar neste campeonato do peito feito, então a receita é certa, vai haver superlativos.
Hugo Soares, novel líder parlamentar do PSD, logo que Montenegro decidiu antecipar a sua preparação para a disputa pela liderança do partido, sagrou-se campeão neste tormentoso caminho, ao anunciar um ultimato mal tomou posse: aqui estou e de voz grossa, ou o governo cede em 24 horas, nem mais uma, ou então cai o Carmo e a Trindade, nem imaginem o que vai acontecer. O atrevimento merece consideração, pois representa toda uma educação, um savoir faire, um treino que vem de longe e uma ambição que aponta para voos altos. Na frase pesada, na pose solene, no queixo aprumado, está toda uma política. Ou se chegam em 24 horas, ou nem sabem o que vai acontecer.
Não tinha resultado bem da primeira vez, quando Hugo Soares veio exigir um referendo sobre a adopção por casais homossexuais, esclarecendo aliás que todos os direitos podem ser sujeitos a referendo. À distância, bem se pode apreciar a insignificância da demanda, o desconcerto com o tempo, o absurdo da doutrina referendária (o PSD, como os outros partidos, nem quer ouvir falar de referendos, muito menos abrir a caixa de Pandora do conflito constitucional). Mas, enfim, era um líder da JSD, era uma manobra de diversão, mesmo que pouco divertida, e ninguém levava a mal, como no Carnaval. Agora, seja porque dessa vez foi levezinho, seja porque se trata já do líder parlamentar, o ultimato tinha de ser mais ameaçador: ou 24 horas ou isto vai raso.
Só que, por vezes, a precipitação é má conselheira. O jovem advogado e agora líder esqueceu-se de que o ultimato estava a bater a porta errada, e não se dirigia ao governo, antes à Procuradora-Geral da República, e que portanto não era questão política, mas judiciária. Depois, quando o ultimato foi ganhando forma, esclareceu-se que redundaria na tremenda convocação de uma reunião da comissão permanente da Assembleia da República. Na emergência nacional, afinal estamos a falar de uma ditadura que ocultaria lista de mortos por sinistros motivos, poderia ser a convocação extraordinária do plenário da Assembleia, podia ser uma moção de censura, podia ser uma manifestação dos generais do PSD com espadas à porta de Belém, podia ser tudo (e aliás Assunção Cristas, cavalgando a onda, esclareceu logo que, por ela, ia mesmo ser tudo, “não abdico de nenhum instrumento legal”), afinal era uma reunião da comissão permanente, um susto.
Bastou então que as autoridades judiciárias fizessem um comunicado e, o respeitinho é muito bonito, Hugo Soares veio declarar que a partir de então ficava sem efeito o ultimato, que a reunião não era precisa, que vamos conversando, que isto está tudo a ir para férias. De Assunção Cristas e da sua moção de censura, nada mais se soube.
Entradas de leão, saídas de sendeiro, ou segura-me se não eu bato-lhe, tudo isto é uma maçadora repetição de um discurso político que começou em tragédia com o anúncio dos falsos suicidados de Pedrógão e termina com esta farsa de aproveitamento político dos mortos verdadeiros. Mas é a isto que estamos reduzidos quando faltam argumentos onde sobra azedume, não é?
NB– Agostinho Lopes, dirigente do PCP, resolveu atacar-me pessoalmente como forma de defender as ideias, para mim surpreendentes, de que o controlo do Estado sobre as terras sem proprietário é um “esbulho” e que a dispersa e desaproveitada propriedade da floresta não é problema incendiário. Conhecendo a sua elegância e cordialidade desde quando convivemos no parlamento, percebo as circunstâncias políticas que levaram ao seu excesso e ponho por isso uma pedra sobre o assunto.
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