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domingo, 10 de junho de 2018

A banalidade de Marcelo

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 07/06/2018)

MARCELO_BOLA

Reunir as duas entidades públicas mais importantes na hierarquia do Estado no mesmo espaço tem de implicar estarmos perante um assunto da mais alta importância nacional. Consta que uma rapaziada vai jogar à bola na estranja, é só isto. Noutros tempos teríamos tido direito a um cardeal na fotografia e à visita de Cecília Supico Pinto para moralizar a tropa em calções com as suas cantorias.

Se as duas entidades públicas mais importantes na hierarquia do Estado querem estar presentes numa jantarada ligada a uma selecção nacional de um desporto qualquer em vias de participar num qualquer torneio, baril. Cada um sabe de si e das companhias que frequenta. Mas se as duas entidades públicas mais importantes na hierarquia do Estado decidem também abrir a boca para dizer coisas em nome das instituições que representam, então, senhores ouvintes, estaremos perante um assunto de altíssima importância para a Pátria. Os russos vêm aí?! Não, espera, nós é que vamos à Rússia. Há que recordar as lições de Napoleão e Hitler se a ideia for mesmo a de conquistar Moscovo.

Ferro Rodrigues teve a feliz ideia de listar os locais de nascimento dos jogadores, o que lhe permitiu chegar a uma imagem desafiadora: em que outros domínios da nossa comunidade vemos tanta diversidade geográfica num mesmo grupo profissional? A imagem é desafiante porque nos leva para nenhures. O desafio consiste, precisamente, em não ir com ela. Melhor ficar a contemplá-la a esvoaçar nos céus até desaparecer graciosamente de vista no horizonte ou ser abatida sem piedade pela caçadeira da lucidez. É que é completamente indiferente, seja para o que for, que não se consiga indicar um qualquer outro exemplo onde se replique a cobertura territorial que a selecção nacional apresenta na lotaria das ascendências geográficas dos actuais jogadores. Era só o que faltava, a obrigação de incluir um madeirense à força numa qualquer empresa com mais de 20 trabalhadores ou passarmos a exigir que os hospitais públicos tenham funcionários minhotos, beirões e algarvios em proporções idênticas. Porém, a ideia resiste na sua felicidade pois se trata de uma metáfora. A metáfora da diversidade como ideia cívica e política a merecer o patrocínio da segunda figura do Estado português numa ocasião proporcionada pelos pontapés na bola. Estiveste bem, Ferro.

Marcelo Rebelo de Sousa comportou-se como Marcelo Rebelo de Sousa. Estava excitadíssimo com a perspectiva de ir ver jogos de futebol. Uns em estádios, outros no meio da maralha. Todos, sempre, no pico da curtição como fã que se concebe igualmente como vedeta nessas ocasiões. A sua ânsia deleitada era tanta que entrou a pés juntos no estilo de Américo Thomaz e suas pérolas como «é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive». Enfiou-se num raciocínio que partia de termos o melhor jogador do mundo e saltava magicamente para serem todos os jogadores os melhores do mundo. Logo, rasgo de genialidade, se a nossa selecção nacional tem os melhores jogadores do mundo, só precisa que cada jogador seja aquilo que é. Siga. Tal como no discurso anterior, esta imagem volta a não querer dizer nada que mentes humanas consigam usar com algum proveito, mas desta vez o bafo a balneário era insuportável. Marcelo aproveitou a ocasião para mostrar que, se o deixarem, pode ir fazer palestras aos jogadores no intervalo dos jogos que estejam a correr mal. Contem com o Presidente da República para explicar aos atletas que eles apenas têm de ser quem são, caso Fernando Santos não esteja à altura dessa responsabilidade.

Marcelo está no cargo para o qual se preparou durante 60 anos, ou mais. Não é um mero corta-fitas como o almirante Deus, mas no seu íntimo a fruição pessoal, o gozo circense, a pulsão palaciana sobrepõem-se à devoção republicana, ao culto do estadismo e à paixão pela História.

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