Salvastes Julian Assange
(Chris Hedges, In The Chris Hedges Report, 26-06-2024. Trad. José Catarino Soares) Livre como um pássaro. Gravura de Mr. Fish A máquina tenebrosa do império, cuja mendacidade contumaz e selvajaria Julian Assange revelou ao mundo, passou 14 anos a tentar destruí-lo. Cortaram-lhe o acesso às suas finanças, cancelando-lhe as contas bancárias e os cartões de crédito. Inventaram acusações falsas de agressão sexual para o extraditarem para a Suécia, onde seria despachado para os EUA. Encurralaram-no na Embaixada do Equador em Londres durante sete anos, depois de lhe ter sido concedido asilo político e a cidadania equatoriana, recusando-lhe uma passagem segura para o aeroporto de Heathrow [para que pudesse viajar para o Equador, n.t.]. Orquestraram uma mudança de governo no Equador que o levou a ser despojado do seu asilo, assediado e humilhado por pessoal complacente da embaixada. Contrataram a empresa de segurança espanhola UC Global para que, na embaixada do Equador, gravasse todas as suas conversas, incluindo as conversas com os seus advogados. A CIA discutiu a possibilidade de o raptar ou assassinar. Conseguiram que a Polícia Metropolitana de Londres invadisse a embaixada ⎼ território soberano do Equador ⎼ e o apreendesse. Mantiveram-no durante cinco anos na prisão de alta segurança HM Belmarsh, muitas vezes em isolamento solitário. E, durante todo esse tempo, levaram a cabo uma farsa judicial nos tribunais britânicos, onde o respeito pelas garantias processuais foi ignorado para que um cidadão australiano, cuja órgão de informação não estava sediado nos EUA e que, como todos os jornalistas, recebeu documentos de lançadores de alertas [ing. “whistleblowers”], pudesse ser acusado ao abrigo da Lei da Espionagem [de 1917]. Tentaram destruí-lo vezes sem conta. Não conseguiram. Mas o Julian não foi posto em liberdade por os tribunais defenderem o Estado de direito e terem ilibado um homem que não tinha cometido qualquer crime. Não foi posto em liberdade por a Casa Branca de Biden e a comunidade dos serviços secretos terem consciência. Não foi posto em liberdade por as empresas noticiosas que publicaram as suas revelações ⎼ e que depois o estraçalharam [no original, em inglês coloquial, “threw him under the bus”, equivalente ao nosso “atirar alguém aos leões”, n.t.] levando a cabo uma campanha de difamação cruel ⎼ terem pressionado o governo dos EUA. Ele foi posto em liberdade ‒ mediante um acordo judicial feito com o Ministério da Justiça dos EUA, segundo o que consta do documento oficial emitido pelo tribunal distrital dos EUA para as Ilhas Marianas Setentrionais – malgrado essas instituições.
Os protestos em massa nem sempre resultam. O genocídio em Gaza continua a ter um impacto terrível nos palestinianos. Mumia Abu-Jamal ainda está preso numa prisão da Pensilvânia. A indústria dos combustíveis fósseis está a devastar o planeta. Mas é a arma mais potente que temos para nos defendermos da tirania. Essa pressão contínua ⎼ durante uma audiência em Londres, em 2020, para meu deleite, a juíza Vanessa Baraitser, do tribunal de Old Bailey, que supervisiona o caso de Julian, queixou-se do barulho que os manifestantes estavam a fazer na rua lá fora ⎼ desvenda continuamente a injustiça e revela a amoralidade da classe dominante. É por isso que os espaços nos tribunais britânicos eram tão limitados e os activistas, ainda a piscar os olhos com sono, faziam bicha no exterior, logo às 4 da manhã, para garantir um lugar para os jornalistas que respeitavam. O meu lugar, por exemplo, foi assegurado por Franco Manzi, um polícia reformado. Estas pessoas não são alvo de reconhecimento público e permanecem, muitas vezes, anónimas. Mas são heróis. Movem montanhas. Cercaram o Parlamento [britânico]. Ficaram à porta dos tribunais [britânicos] sob uma chuva torrencial. Foram obstinados e firmes. Fizeram ouvir as suas vozes colectivas. Salvaram o Julian. E quando esta terrível saga terminar e o Julian e a sua família encontrarem, como espero, a paz e a cura na Austrália, temos de os honrar. Envergonharam os políticos australianos para que defendessem Julian, um cidadão australiano, e finalmente a Grã-Bretanha e os Estados Unidos para que desistissem. Não estou a dizer que eles fizeram o que é correcto. Tratou-se de uma rendição. Devíamos orgulhar-nos disso. Conheci Julian quando acompanhei o seu advogado, Michael Ratner, em reuniões na Embaixada do Equador em Londres. Michael, um dos grandes advogados de direitos civis da nossa era, sublinhou que o protesto popular era uma componente vital em todos os casos que ele apresentava contra o Estado. Sem ele, o Estado poderia levar a cabo a sua perseguição de dissidentes, o desrespeito pela lei e os crimes na obscuridade. Pessoas como Michael, juntamente com Janet Robinson, Stella Assange, o chefe de redação da WikiLeaks, Kristenn Hrafnsson, Nils Melzer, Craig Murray, Roger Waters, Ai WeiWei, John Pilger e o pai de Julian, John Shipton, e o irmão Gabriel, foram fundamentais nesta luta. Mas não o poderiam ter feito sozinhos.
A classe dominante mundial mostrou ao que vem. Tenciona, no Norte global, construir fortalezas climáticas e, no Sul global, utilizar as suas armas industriais para bloquear e chacinar os desesperados, tal como está a chacinar os palestinianos. A vigilância do Estado é muito mais intrusiva do que a utilizada pelos regimes totalitários do passado. Os críticos e dissidentes são facilmente marginalizados ou silenciados nas plataformas digitais. Esta estrutura totalitária ‒ que o filósofo e politólogo Sheldon Wolin [1922-2015] apelidou de “totalitarismo invertido” ‒ está a ser imposta gradualmente. Julian avisou-nos. À medida que a estrutura de poder se sente ameaçada por uma população inquieta que repudia a sua corrupção, a acumulação de níveis obscenos de riqueza, as guerras intermináveis, a inépcia e a repressão crescente, os colmilhos que arreganhou para o Julian serão arreganhados para nós. O objectivo da vigilância em larga escala, como escreve Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo”, não é, no fim de contas, descobrir crimes, «mas estar à mão quando o governo decide prender uma certa categoria da população». E dado que as nossas mensagens de correio electrónico, conversas telefónicas, pesquisas na Internet e movimentos geográficos são registados e armazenados perpetuamente em bases de dados governamentais, porque somos a população mais fotografada e seguida da história da humanidade, haverá “provas” mais do que suficientes para nos prenderem, caso o Estado o considere necessário.
O objectivo de todos os sistemas totalitários é inculcar um clima de medo para paralisar uma população cativa. Os cidadãos procuram segurança nas estruturas que os oprimem. A prisão, a tortura e o assassínio são reservados para os rebeldes incontroláveis, como Julian. O Estado totalitário consegue este controlo, escreveu Arendt, esmagando a espontaneidade humana e, por extensão, a liberdade humana. A população é imobilizada pelo trauma. Os tribunais, juntamente com os órgãos legislativos, legalizam os crimes de Estado. Vimos tudo isto na perseguição de Julian. É um prenúncio sinistro do futuro. O Estado empresarial tem de ser destruído se quisermos restaurar a nossa sociedade aberta e salvar o nosso planeta. O seu aparelho de segurança tem de ser desmantelado. Os mandarins que gerem o totalitarismo empresarial, incluindo os chefes dos dois maiores partidos políticos [nos EUA], universitários enfatuados, especialistas de meia-tigela e uma comunicação social abandalhada, têm de ser expulsos dos templos do poder. Os protestos de rua em massa e a desobediência civil prolongada são a nossa única esperança. Se não nos revoltarmos ‒ que é o que o Estado empresarial espera que não façamos ‒ ver-nos-emos escravizados e o ecossistema da Terra tornar-se-á inóspito para a vida humana. Aprendamos uma lição com os homens e mulheres corajosos que saíram à rua durante 14 anos para salvar Julian. Eles mostraram-nos como se faz. |
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