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terça-feira, 8 de agosto de 2017

Autopsicografia de um homem de esquerda

João Valentim André
A pergunta ressoa no mais fundo do corpo ético do homem de esquerda: “como posso eu aceitar, sem forçar todo o meu ser à dissolução, que a sociedade de que participo condene mil homens à pobreza para que possa criar um que seja rico?”
A pergunta é labiríntica. A resposta reside no seu centro mental, um ponto cósmico, guardada por um temível animal mítico. Mas uma vez chegado a esse centro, não tem, o homem de esquerda, como evitar o confronto. E ele dá-se precisamente no lugar do eixo, no axis mundi, na base da árvore da vida pela qual se ascende à resposta.
Para que o mistério não viesse a ser simplesmente um maneirismo literário, o demiurgo achou por bem fazer depender a vitória sobre a besta mítica da resposta a uma outra pergunta: desses mil homens condenados à pobreza, quantos não sacrificariam outros cem mil ao mesmo mísero destino para que a fortuna lhes sorrisse a eles?
Se o homem de esquerda responder “Nenhum”, restar-lhe-á a esperança na doce Ariadne. Fugirá do Minotauro pelo fio e uma vez livre da encruzilhada reformulará a primeira pergunta, a tal que ressoa no mais fundo do seu corpo ético. Descobrirá, talvez, que é ele próprio o obstáculo à sua iluminação, pois que fantasia na humanidade a condição dos deuses e não compreende que essa ética que reclama como sua matriz e que sonha estender a toda a humanidade, não é mais do que uma grosseira arrogância perante a sua própria natureza, que claramente desconhece. Mais ainda, é uma incompreensão pueril da verdade, da justiça e da misericórdia actuantes nos três mundos: o humano, o natural e o divino.
O homem de esquerda sente, por exemplo, uma infinita compaixão pelos cães. Ama-os por vezes mais do que aos seus próprios semelhantes, mas nada o preocupa a miríade de bactérias que sacrifica em cada respiração. Nem atenta sequer que essa mesma respiração representa, com todo o esplendor, a tal matriz ética divina: a vida pertence à morte e a morte pertence à vida. Para lá disto, toda a filosofia é basicamente inútil.
Opõe-se, na titânica luta travada na consciência, que esse é o caminho da barbárie. Que assim sendo, nenhum sentido mais se encontra na civilização que quis ajudar a construir. Mas só compreendendo que essa mesma civilização com que sonha e a barbárie que o aterra são o respirar do mundo humano, pode regressar ao centro do labirinto, derrotar a besta e ascender, pelo eixo do mundo, à plenitude.
Nesse dia não será mais de esquerda nem de direita. E não pertencerá também ao centro que lhe serviu, uma vez conquistado, a salvação. Será um Homem Novo, renascido das próprias cinzas existenciais, liberto, finalmente, de si próprio.
Reformulou a pergunta: “Como posso eu compreender que a sociedade que ajudo a construir crie mil homens pobres para que possa condenar um à riqueza?” Assim a resposta é bem mais singela e vive na própria pergunta, o círculo fecha-se e o Universo respira na eternidade.

Fonte: Aventar