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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Uma Justiça a passeio na marginal


por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 21/11/2017)
gaspar
Há dias, com a importância que cada um quiser dar ao facto de ter escolhido a abertura do Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura como enquadramento paisagístico, Henriques Gaspar lembrou-se de algo original: pedir aos juízes portugueses para respeitarem a Lei. Este senhor talvez seja um socrático criminoso, pois teve o atrevimento de sugerir que a Justiça não só vai nua como também se apresenta emporcalhada e coberta de mazelas, mas por enquanto ainda passa por presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Eis os seus recados:
– A independência dos juízes não permite a estes profissionais ignorarem a lei.
– Se a sociedade aceita a importância da lei para regular os comportamentos dos indivíduos, a independência dos juízes não pode significar a desconsideração da lei nem a interpretação ou aplicação por acto de vontade.
– Independência significa liberdade de decisão, mas de acordo com a lei e os princípios normativos fundamentais.
– Os juízes têm de ter resistência em relação às pressões – quaisquer que sejam e venham de onde vierem.
– A independência é a compreensão da distância entre o juiz e a política, entre o juiz e o militantismo, e entre o juiz e a opinião pública.
Como dizem os franceses, ring any bell? Que raio se estará a passar? É que, de acordo com a nossa imprensa, o problema com a nossa Justiça é a sua morosidade, não a estrambólica ideia de existirem juízes que não cumprem as leis. É que, portanto, a existirem monstruosidades dessas, seguramente que já teriam chegado aos nossos valentes jornalistas. Por exemplo, Vara foi condenado sem provas e com uma pena muito acima do que é comum em casos similares. Houve escândalo? Alguém na nossa imprensa de referência sugeriu, sequer ao de longe e entredentes, que os juízes que castigaram tão exemplarmente tão maligno criminoso o fizeram violando alguma lei? E que dizer do festival de recursos perdidos por Sócrates nos tribunais de diferentes instâncias ainda na fase de inquérito, não estará aí a evidência de que todas as decisões tomadas contra os seus interesses foram legais porque similares? Por exemplo, isso de se ter detido e prendido Sócrates por razões que se vieram a revelar infundadas, e se ter mantido preso um inocente por razões contraditórias e igualmente infundadas, gerou na comunicação social alguma reflexão sobre a qualidade profissional do juiz Carlos Alexandre? Que nada, o homem é intocável e tem canais mediáticos que trabalham diariamente na blindagem política do seu poder. Logo, provavelmente também não é dessa sinistra figura que o juiz Gaspar está a falar. Mistério.
Apesar dos tabus que ainda reinam em Portugal a respeito da classe médica e suas inevitáveis falhas de diagnóstico e terapia, não admitimos que um médico exiba clamorosas incompetências. Esperamos dos médicos a perfeição, e estamos sempre atentos à reputação que vão obtendo, pois se esperam milagres deles nas horas da aflição maior. Igualmente esperamos dos militares um comportamento exemplar, ao nível do poderio que lhes damos em recursos letais. Se algum começar a mostrar que não está à altura da responsabilidade, a instituição militar é rápida e implacável, ou nisso acreditamos, em conter e anular o perigo que tal representa. Mas com os juízes, e ainda mais com os procuradores do Ministério Público, reina uma complacência que nasce directamente da herança salazarista ainda activa no imaginário e nos poderes fácticos. Fingimos que os magistrados são semideuses, imunes a falhas cognitivas, doenças psíquicas, preconceitos morais e tentações criminosas. Recusamo-nos a pensar nos magistrados como seres humanos inseridos em redes de influência e pressão. Nem sequer quanto à formação intelectual dos magistrados há curiosidade e avaliação, limitando-nos a gozar e a bater o pé quando alguns deles deixam lavrado por escrito o mundo pequenino, e tantas vezes deformado, que os habita. Que sabem eles de psicologia, antropologia, sociologia? E de história ou de física, de matemática e de estética? Que sabem eles dessa natureza humana que é suposto decifrarem e moldarem com as suas consciências?
O filme “Camarate”, de Luís Filipe Rocha, chegou às salas em 2001. A data de lançamento é, segundo os meus cálculos, anterior a 2002, ano em que rebentou a bomba chamada Processo Casa Pia. A imagem da Justiça portuguesa que o filme retrata não perdeu um grama de actualidade. Pelo contrário, como o que aconteceu no ano a seguir confirmou, e como o que temos visto no Processo Marquês e conexos instituiu definitivamente. Ou seja, a Justiça portuguesa chegou ao ponto de ter de rogar aos seus recursos humanos para não serem tão exuberantemente marginais.