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terça-feira, 1 de maio de 2018

Eu sei

por estatuadesal

(José de Faria Costa, in Diário de Notícias, 27/04/2018)

faria

Eu sei. Sim, eu sei. E porque sei, não quero que o meu silêncio ecoe no infinito presente da minha vida para que não possa ser apodado, no futuro passado, de cúmplice.

Eu sei que muitas vezes não é fácil vir a terreiro defender aquilo que deve ser defendido como se defendêssemos as "muralhas da cidade". Mas há um tempo para tudo e não precisamos de recorrer ao Eclesiastes para justificar a bondade do que se acaba de dizer.

Eu sei que o tempo mediático talvez já tenha passado para aquilo que brevemente irei escrever. E talvez, por isso mesmo, o queira agora dizer, porque as coisas só ganham sentido quando a poeira frenética da mediação informativa, levada pelo vento do tempo instantâneo, pula para um outro acontecimento, uma outra notícia, verdadeira ou falsa, pouco importa, para um outro dado da comunicação social (escrita, televisiva ou radiofónica).

Eu sei que a liberdade de expressão e os direitos a informar e a ser informado são esteios indestrutíveis de uma qualquer comunidade verdadeiramente democrática e que, por isso, qualquer forma de censura ou limitação desproporcionada, em meu juízo, são intoleráveis.

Eu sei que há um ruído insuportável à roda de vários casos, chamados mediáticos, que uma solerte comunicação social considera serem protagonizados por "famosos, ricos e poderosos" e que se alimenta, de modo preciso, da qualificação que, justamente, faz desencadear as pulsões mais primárias dos membros de uma qualquer comunidade de homens e mulheres historicamente situados. Este é, em definitivo, um dado histórico indesmentível e que a mais séria psicossociologia do estudo das massas não deixa de confirmar.

Eu sei que muitos vão dizer, como já antes o disseram, que só desta forma se pode combater o crime, sobretudo a criminalidade altamente organizada e muito particularmente a sofisticada criminalidade económico-financeira e, para mais, continuarão a dizer que o esmagamento das garantias mais elementares dos cidadãos, mesmo que inocentes, nada tem de especial: é o preço a pagar para honrarmos a deusa "transparência", acompanhada da sua irmã "eficiência". E alguns, mais afoitos no seu radicalismo, até dirão que pensar o contrário mais não é do que a redundância de "luxos" que alguma intelligentsia liberal e talvez decadente gosta de defender. Tudo tem de ser transparente. Na vida individual. Na vida colectiva. Tudo pode e deve ser devassado. Sem limites. A intimidade pessoal, a vida privada individual, familiar ou social nada valem quando se quer perseguir os criminosos, quaisquer criminosos, mesmo que só putativos criminosos, esquecendo-se ou postergando-se, sem rebuço, a presunção de inocência até ao trânsito em julgado.

Eu sei que as coisas que têm acontecido nos últimos meses, para não dizer anos - e que se espelham na divulgação de factos sujeitos ao segredo de justiça ou, não o estando, na sua publicitação que é, do mesmo passo, criminalmente punível -, se tornaram, de forma patológica, endémicas no tecido jurídico-social português. Endemia ou pandemia que aparentemente preocupa toda a gente mas que, efectivamente, faz que "toda a gente" nada faça.

Eu sei que tocar ou mexer neste ponto é tocar ou mexer na estrutura político-normativa do próprio Estado, o que nos faz imediatamente duvidar de qualquer movimento de reforma em tempos que são dominados, ferreamente, pela ideologia e pela nomenclatura do pensamento económico-financeiro e que, ao menor suspiro de manifestação de vontade de mudança, de supetão nos é atirado o perverso, estúpido e diletante brocardo: "It"s the economy, stupid." Mas o problema é que este ar malsão que respiramos não vem só da economia. Vem de muito mais fundo. Vem de não se perceber que a administração da justiça em nome do povo - não a justa aplicação do direito ao caso concreto por um juiz e não por representante do Ministério Público - é sempre e definitivamente um problema político. Uma questão que se insere no grande mundo das políticas públicas de quem legisla e de quem governa.

Neste sentido, dizer-se "à política o que é da política e à justiça o que é da justiça" é não só apoucar e definhar a máxima religiosa que lhe serve de parâmetro mas também, e talvez por sobre tudo, não querer assumir as obrigações políticas que órgãos, democraticamente eleitos, devem com orgulho, porque mandatados pelo voto, levar a cabo.

Eu sei que uma leitura apressada ou de má-fé dirá que o que vai aqui pressuposto é a tutela doutrinal de uma "justiça para ricos" e de uma "justiça para pobres". Em boa-fé direi que uma tal interpretação está nos antípodas do que sempre defendi, escrevendo e ensinando, há quase meio século. Por imperativo ético e democrático a lei é igual para todos e a todos por igual tem de ser aplicada, com rigor e imparcialidade. E direi mais: a corrupção é um mal, também ele endémico, que tem de ser combatido por todos os meios, incluindo o direito penal, na sua expressão mais firme e rigorosa. Por isso, infelizmente, Portugal vive duas endemias em que uma alimenta a outra, em um indissociável processo simbólico de reciprocidade.

Eu sei que a última metade do século passado foi a afirmação e tutela, em jeito que se queria universal, dos direitos humanos, em todas as suas dimensões e, por sobre tudo, de modo muito particular, quando lidávamos com as "cousas" dos direitos penal e processual penal. Porém, os primeiros anos desta centúria parecem levantar ventos securitários. E se, desde a Ilustração, se dizia que "mais vale ter à solta um culpado do que punir um inocente", parece que, hoje, o mais importante é punir a eito e se se não puder fazê-lo em tribunal que aconteça, então, na praça pública. Oh! Santa Idade Média, regozija-te, os teus lados mais negros estão perdoados. Para quê o "processo justo"? Para quê a presunção de inocência até trânsito em julgado? Para quê a proibição da inversão do ónus da prova em processo penal? Para quê o princípio da legalidade da norma incriminadora? Para quê mostrar a insanidade da delação premiada? Para quê salientar dogmaticamente o irrazoável do querer criminalizar o chamado "enriquecimento ilícito"?

Eu sei. Eu sei que o que escrevi pouco vale para mudar o que quer que seja, porque sei que uma crónica de jornal não tem sequer a vida de um ai e, outrossim, menos sequer a força política de um gesto de criança. Todavia, sei que é preciso: não navegar mas dizer.


Professor universitário e antigo Provedor de Justiça

A OP 100276 que tramou Manuel Pinho nos pagamentos que recebeu do ‘saco azul’ do GES

30/4/2018, 20:11

O operacional suíço do 'saco azul' do GES descreveu na sua contabilidade secreta todas as transferências recebidas por Manuel Pinho entre 2002 e 2012. Saiba todos os pormenores.

Fotografia oficial do Conselho de Administração do Banco Espírito Santo que consta do Relatório e Contas de 2001. Ricardo Salgado encontra-se ao centro, enquanto Manuel Pinho é o primeiro a contar da direita.

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Era um homem que falava pouco e sorria ainda menos. Chama-se Jean-Luc Schneider, é suíço e era um alto quadro do Grupo Espírito Santo (GES) que apenas respondia a Ricardo Salgado. Foi este homem que involuntarialmente acabou por tramar Manuel Pinho com os registos metódicos sobre todas as transferências que a Espírito Santo (ES) Enterprises, uma sociedade offshore das Ilhas Virgens Britânicas que não constava do organograma do GES, fazia para membros da família Espírito Santo, administradores do BES e do GES e para titulares de cargos políticos e de órgãos sociais de empresas participadas pelo grupo informalmente liderado por Ricardo Salgado.

De acordo com os registos que foram juntos aos autos do caso EDP no dia 24 de abril de 2018, e consultados esta segunda-feira pelo Observador, Manuel Pinho terá recebido um total de 2.110.672, 80 euros entre julho de 2002 e abril de 2014. Este valor arredondado já tinha sido noticiado pela Visão no dia 24 de abril depois do Observador ter revelado em exclusivo que Manuel Pinho tinha recebido entre outubro de 2006 e 2014 cerca de 1 milhão de euros do ‘saco azul’ do GES através de uma sociedade offshore chamada Tartatuga Foundation, sendo que cerca de 500 mil euros foram recebidos através de transferências mensais de 14.963, 94 euros durante o período em que Pinho era ministro da Economia do Governo de José Sócrates.

Os valores foram transferidos para Manuel Pinho quando este, segundo o próprio garantiu ao Observador, já não tinha qualquer vínculo com o BES. “Em 10 de Março de 2005, cessei a minha relação profissional com o BES/GES, uma vez que aceitei o convite para integrar o XVII Governo Constitucional”, explicou em janeiro.

A ordem permanente para a offshore de Pinho

Segundo as novas informações dos autos do caso EDP, consubstanciadas numa informação com origem na Operação Marquês elaborada pelo inspetor tributário Paulo Silva e enviada com a autorização do juiz de instrução Carlos Alexandre, Manuel Pinho terá começado a receber a mesma verba mensal de 14.963, 94 euros do ‘saco azul’ do GES pelo menos desde julho de 2002, utilizando para o efeito uma sociedade offshore chamada Masete II que tinha uma conta bancária no Banque Privée Espírito Santo, a instituição financeira do GES na Suíça.

Só em 2002, Manuel Pinho recebeu um total de 89.783, 64 euros — o que corresponde ao pagamento do valor mensal de 14.963, 94 euros durante seis meses. Nesta altura, Manuel Pinho era administrador executivo do BES — isto é, pertencia à Comissão Executiva liderada por Ricardo Salgado — desempenhando ainda funções como presidente da Espírito Santo Research, administrador no BES Investimento (onde chegou a ser vice-presidente), administrador na holding da Espírito Santo Ativos Financeiros e em diversas empresas internacionais como o BES Finance e o BES Overseas — sendo que esta última empresa geria, entre outras, um conjunto diversificado de sociedades com sede em paraísos fiscais.

Entre 2003 e 2005, o então administrador do BES continuou a receber o mesmo valor mensal — que os investigadores suspeitam que corresponda a um salário –, o que perfaz um total anual de 179.567, 28 euros. Ou seja, Pinho recebeu do saco azul do GES um total de 538.701, 84 euros nos três anos anteriores à sua entrada no Governo de José Sócrates.

Estes valores correspondem a uma ordem de transferência permanente, com o número “OP 100276”, que Jean-Luc Schneider tinha dado ao Banque Privée Espírito Santo. Tal ordem possibilitou a transferência mensal de 14.963, 94 euros para uma conta aberta no mesmo banco em nome da sociedade offshore Masete II. “Uma das ordens permanentes detetadas, com o número ‘OP 100276 correpondea uma transferência mensal da conta da [ES] Enterprises para uma conta com o número 225.576 que terá tido início em julho de 2002. Essa operação encontrava-se relacionada com uma entidade chamada “Masete II”, lê-se na informação assinada por Paulo Silva.

O inspetor tributário não tem dúvidas de que essas ordens permanentes eram “normalmente associadas a funcionários nacionais das empresas do GES que eram remunerados adicionalmente pela conta da [ES] Enterprises, como forma de obstar a tributação desses rendimentos em Portugal”, lê-se no documento consultado pelo Observador.

Tal como o Observador já noticiou, o pagamento de salários e prémios a administradores e funcionários do BES e do GES a partir de fundos da ES Enterprises foi, desde o regresso dos Espírito Santo a Portugal no final dos anos 80, uma prática recorrente por decisão unânime da cúpula familiar do GES. Os membros da família começaram por ser os primeiros beneficiários, mas, a partir dos anos 90, essa prática foi alargada a administradores e funcionários que não eram membros da família Espírito Santo.

Pinho era um homem da confiança de Ricardo Salgado, o todo-poderoso líder do BES. De acordo com o testemunho na Operação Marquês de José Maria Ricciardi, ex-presidente do BES Investimento, terá sido Salgado quem terá indicado o nome de Manuel Pinho a José Sócrates para ministro da Economia.

A entrada em cena da Tartaruga

É em 2005, contudo, que se dá uma mudança. Como o Observador já noticiou, a sociedade offshore Tartaruga Foundation foi criada na cidade do Panamá a 8 de março de 2005 — poucos dias antes de Manuel Pinho tomar posse no Palácio da Ajuda como ministro da Economia do Governo de José Sócrates.

De acordo com Paulo Silva, é também em 2005 que Jean-Luc Schneider acrescenta nas folhas de cálculo informáticas denominadas ´Grande Libre´da ES Enterprises o nome da Tartaruga Foundation ao da Masete II. A conta de destino que vai passar a receber o valor mensal de cerca de 15 mil euros é que muda, passando tal valor a dar entrada numa conta aberta em nome daquela sociedade Tartaruga no mesmo Banque Privée Espírito Santo mas que, segundo outros registos da ES Enterprises que o Observador tem na sua posse, apresentam como beneficiário “Manuel António Gomes de Almeida Pinho” e a sua mulher Alexandra Fonseca Pinho.

O próprio inspetor Paulo Silva não tem dúvidas de que “nos documentos constantes do processo [Operação Marquês] é possível associar as transferências para a Masete II/Tartaruga Foundation com Manuel Pinho”.

Apesar da entrada em cena da Tartaruga, os valores anuais continuam a ser exatamente os mesmos: 179.567, 28 euros. E assim permanecem mesmo depois de Manuel Pinho ter saído do Governo em julho de 2009 na sequência do episódio dos ‘corninhos’ no Parlamento, durante o debate do Estado da Nação. Só em junho de 2012 é que Jean-Luc Schneider dá ordens para cessar a ordem de transferência bancária permanente.

Resumindo e concluindo: Manuel Pinho recebeu do ‘saco azul’ do GES um total de 1.795.672, 80 euros.

A estes cerca de 1,8 milhões de euros, temos ainda que acrescentar os cerca de 315 mil euros que, tal como o Observador noticiou em primeira mão em janeiro, Pinho recebeu entre fevereiro de 2013 e abril de 2014 em contas abertas em seu nome pessoal (e não em nome de sociedades com sede em paraísos fiscais) abertas no Banque Privée Espírito Santo.

Segundo explicou ao Observador, estes valores corresponderão a “remunerações variáveis/prémios relativos às novas funções assumidas no BES África e na consultadoria a outras empresas internacionais do grupo GES. Esses prémios, disse Pinho, “foram-me sempre comunicados pelo dr. Ricardo Salgado, merecendo o meu acordo”.

O próprio Manuel Pinho explicou ao Observador como reingressou no BES. “Em outubro de 2010, pouco mais de um ano depois de sair do Governo”, decidiu aceitar “o convite do dr. Ricardo Salgado para assumir o cargo de vice-presidente do BES África”,  prestando igualmente “outros serviços de consultadoria a empresas do GES”.

“Wild Wild Country”: a história de uma seita que é mais empolgante do que qualquer série

01 Maio 2018

Susana Romana

O seguidores de Rajneesh, guru que liderou a transformação, revolta e tragédia numa cidade americana, está em seis partes na Netflix. Mas é um retrato real, mais improvável que uma obra de ficção.

Durante uma das minhas demasiado frequentes sessões de passeata pelo feed do Instagram, dei de caras com uma fotografia de uma ex-colega que em tempos se mudou para a Tailândia. Regressou entretanto a Portugal e ganha a vida a ler auras, como se fossem livros do Tintim ou do Lobo Antunes. Na foto tem um sorriso aberto e segura nas mãos um fascículo de Osho, que inspira a legenda com uma citação do mesmo:

“A criatividade é a maior rebelião que existe”

Há algumas semanas, esta imagem não me ficaria na memória. A minha paciência para a autoajuda new age é menor que o PIB do Burundi e achava que Osho era um ancestral japonês qualquer. Mas hoje sei, graças ao documentário original do Netflix “Wild Wild Country”, que é um dos nomes pelos quais ficou conhecido Bhagwan Shree Rajneesh — um indiano que nos anos 60 criou um culto que viria a ser infame pelos seus Rolls Royce e pelo ataque químico para envenenar a população de uma pequena cidade em Oregon. Pergunto-me a mim mesma se a jovem do sorriso instagramável conhecerá esta história.

É sobre a ida para os Estados Unidos do guru Rajneesh que se debruça o documentário em seis partes “Wild Wild Country”, produzido pelos irmãos Duplass (conhecidos sobretudo como actores e criadores de dramédias, como “Togetherness”). Com uma comitiva dos seus devotos mais próximos (encabeçada pela verdadeira protagonista da saga, a sua secretária  Ma Anand Sheela), Rajneesh compra uma herdade junto à pequena povoação de Antelope em 1981. Na primeira metade da década aqueles hectares viriam-se a tornar na cidade complexa de Rajneeshpuran, com aeroporto e uma espécie de força armada.

[o trailer de “Wild Wild Country“:]

Num claro exemplo de como a realidade pode ser tão mais incrível que a ficção, o documentário é um tratado sobre como o Bem e o Mal estão constantemente a dançar o tango um com o outro. O que inicialmente parece a história de como uma pequena cidade americana de rednecks conservadores se insurge contra uma comunidade (os sannyasins) focada no amor livre, depressa se transforma num intenso plot sobre crime, traição e poder. Quem leu o clássico Deus Das Moscas sabe bem como surge esta hecatombe moral: todas as sociedades bem intencionadas acabam por ruir devido a esse imperfeito poço de defeitos que é o ser humano.

Quem é quem em “Wild Wild Country”?

Na ficção pós-“Sopranos” e “Breaking Bad”, ficou na moda o anti-herói – uma figura com honras de protagonismo que se comporta mais como um vilão do que como um herói, mas pelo qual o público torce exactamente por se sentir atraído pelas características tão humanas da sacanice. Em “Wild Wild Country”, depressa se percebe que não há bons nem maus, mas existe toda uma categoria de cinzentos morais em diferentes lados da barricada, cabendo ao espectador perceber de quem se quer por ao lado. Provavelmente, de ninguém.

Bhagwan Shree Rajneesh: líder do culto nascido em 1931, começou a ser um iluminado com apenas 23 anos, viajando por toda a Índia como orador. Logo na altura ficou conhecido por se opor às ideologias de Gandhi e por incitar a uma atitude mais permissiva da sexualidade. Nos anos 70 funda o movimento sannyasin. Já com muitos seguidores no seu país natal mas a braços com tensões com o governo, opta por se estabelecer na zona rural dos Estados Unidos. Durante os primeiros anos no Oregon remete-se ao silêncio, fazendo-se representar essencialmente pela sua secretária pessoal, que o acompanha já desde a Índia.

Bhagwan Shree Rajneesh

Sheela Birnstiel (ou Ma Anand Sheela): secretária de Rajneesh, inicialmente de sorriso largo, é aparentemente uma mulher doce e quase frágil. Mas as aparências iludem: Sheela governa a comuna com uma impiedosa mão de ferro, rendendo-lhe tantos aliados como inimigos dentro do rancho reconvertido. Também no contacto com o exterior começa depressa a revelar-se como uma mulher disposta a tudo para manter o sonho de uma comunidade dos sannyasins em expansão.

Sheela Birnstiel (ou Ma Anand Sheela)

Jane Stork (ou Ma Shanti B): australiana, faz parte do grupo de ocidentais que se mudou para a cidade indiana de Poona para absorver a ideologia de Rajneesh. Seguiu-o para os Estados Unidos, onde se tornou próxima de Sheela e acabou por servir esta numa rocambolesca tentativa de homicídio.

Jane Stork (ou Ma Shanti B)

David Berry Knapp (ou Krishna Deva): presidente de Câmara da cidade de Rajneeshpuran e peça chave nas investigações criminais contra o guru.

David Berry Knapp (ou Krishna Deva)

Philip Toelkes (ou Swami Prem Niren): advogado de Rajneesh e adepto fervoroso dos seus ensinamentos, é até hoje “coach de consciência” e usa vários dos conceitos de Osho.

Philip Toelkes (ou Swami Prem Niren)

Françoise Ruddy (ou Ma Prem Hasya): ex-mulher do produtor do filme “O Padrinho”, começa por ser a cabecilha dos seguidores do culto em Hollywood. Acaba por se mudar para Rajneeshpuran, fragmentando ainda mais a relação entre o guru e Sheela. Acaba por substituir esta na função de secretária.

Françoise Ruddy (ou Ma Prem Hasya)

Margaret Hill: presidente de Câmara da pequena cidade de Antelope , na qual o culto se instala. Desconfortável com a ideia de ser vizinha de um grupo de hippies fã de orgias, tenta desde logo expulsá-los. Acaba a braços com uma tentativa activa de que Antelope desapareça do mapa para dar lugar a Rajneeshpuran. Não é a única habitante a aparecer no documentário: o filho do fundador da Nike, JonBowerman, também era um fervoroso conservador ansioso desde o primeiro instante com o que se passava na herdade.

Margaret Hill

Charles Turner e Robert Weaver: procuradores responsáveis pela investigação criminal ao culto.

Charles Turner e Robert Weaver

O empreendorismo de um culto que dura até hoje

A história é sumarenta e constantemente surpreendente, rivalizando com as mais empolgantes séries do momento (chega para lá, “Casa de Papel”). Apesar do caso ter tido honras noticiosas durante quatro anos de constantes escândalos mais o tempo do julgamento dos crimes após o colapso da comunidade no Oregon , não é um caso assim tão conhecido fora dos Estados Unidos. Porém, já teve algumas menções na cultura pop, como por exemplo no episódio 13 da nona temporada dos Simpsons, intitulado “The Joy Of Sect” – no qual aparece um guru a andar de Rolls Royce pelo meio dos fiéis, tal como Rajneesh fazia diariamente na herdade. E caso se estejam a perguntar se de facto um guru de uma humilde seita indiana tem tamanho carro de luxo, a resposta é ainda mais surpreendente: Osho tinha não um, mas sim um total de 93 Rolls Royces.

[excerto do episódio “The Joy of Sect” dos Simpsons]

Rajneesh não dizia que não ao luxo (além de carros, gostava mais de diamantes do que a própria Marilyn Monroe). Aliás, parte da inteligência do guru era não negar à partida nada que fosse do agrado do seu potencial “cliente”: o homem branco com um curso superior e uma vida financeiramente confortável. Foi aqui que o indiano foi um pioneiro do empreendorismo espiritual, percebendo que havia uma classe com posses que precisava de espiar o seu sentimento de culpa privilegiada e os seus first world problems. Financeiros, advogados e até produtores de Hollywood seguiram-no sem pestanejar. Não sem antes financiar amplamente o movimento espiritual, claro.

Porém, o discurso de amor livre e de emancipação criativa depressa se tornou incongruente: tal como qualquer conferência de imprensa da implacável Sheela demonstrava em poucos instantes, o sorriso e o discurso articulado não eram suficientes para esconder uma sobranceria e superioridade em relação aos não-sannyasins. Esta incongruência depressa escalou para um “nós contra eles” com contornos de guerra civil. O envenenamento a cidadãos de Antelope através de químicos na comida (tido como o primeiro ataque bioterrorista da história americana) é talvez o momento mais emblemático deste conflito, mas está longe de ser solitário. Nem é sequer o único crime cometido em nome ao amor por Rajneesh.

Hoje em dia, o legado de Osho (nome que Rajneesh adoptou poucos anos antes de morrer, em 1990) permanece aparentemente imaculado perante tamanha epopeia. Os livros continuam a vender-se e as citações continuam pelas redes sociais. Várias comunidades ainda se juntam para celebrar os seus ensinamentos um pouco por todo o mundo – e Portugal não é excepção (é aliás citado no documentário como um dos locais a ter comunas). Uma reportagem da revista Visão em Junho de 2010 relata a experiência no Osho Festival, na Herdade Pomar da Serra, junto a São Teotónio (Alentejo). Também aqui são os licenciados com uma vida confortável quem mais se deixa seduzir pela meditação, pelo autoconhecimento e pela Dança dos Amantes – uma espécie de orgia, pois claro. O amor livre continua a ser um dos melhores conceitos de marketing do franchising Rajneesh.

Quem tem medo da EDP?

Mariana Mortágua

Hoje às 00:04

Das telecomunicações à energia, a privatização das melhores empresas portuguesas serviu os interesses de bancos e escritórios de advogados, alimentou a especulação bolsista e uma clique de administradores habituados aos corredores do poder. O que tantas vezes foi apresentado como prova da excelência empresarial eram, na verdade, lucros fáceis de empresas em regime de quase monopólio, beneficiárias de rendas à medida.

Há de tudo no cadastro das privatizações, mas ninguém terá beneficiado mais deste rentismo parasita que os acionistas da EDP. Adensam-se agora as suspeitas de corrupção a olear a porta giratória entre interesses públicos e privados. O maior suspeito é Manuel Pinho, o ex-ministro do PS que mudou as regras dos CMEC para favorecer ainda mais a EDP. Criados em 2004, sob um Governo PSD/CDS, e em vigor desde 2007, estes contratos garantiram uma receita de 2500 milhões de euros a favor da EDP, financiado pelos consumidores de eletricidade. Destes, segundo a própria Entidade Reguladora, 510 milhões terão sido cobrados indevidamente.

Passaram-se dez anos e os partidos que partilharam o poder e apoiaram a privatização da EDP continuam sem fazer uma avaliação crítica do processo. PS, PSD e CDS travaram sistematicamente as iniciativas do Bloco e do PCP para combater as rendas excessivas, desde a proposta de revisão dos CMEC em 2011 até à criação de uma contribuição extraordinária sobre as rendas das renováveis no Orçamento do Estado para 2018.

Da Justiça, espera-se que faça rapidamente o seu caminho quanto às acusações de corrupção, nomeadamente a Manuel Pinho. Mas há um processo político que não pode esperar mais e que tem de ser consequente: as rendas da energia são abusivas e lesivas para os interesses do país. Devem ser eliminadas.

Este Governo faz mal se optar pela posição medrosa que já vimos antes, nomeadamente de Passos Coelho, que afastou o secretário de Estado da Energia Henrique Gomes por querer concretizar um corte nas rendas.

Não chega rever os pagamentos dos CMEC. É preciso pará-los, e há base para o fazer. O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República já emitiu dois pareceres, homologados pelo Governo, em que estabelece a nulidade das decisões de Manuel Pinho na redefinição dos CMEC: estes contratos constituem um tributo cobrado diretamente aos consumidores, que teria de ser decidido e votado no Parlamento. A sua elaboração a partir dos gabinetes ministeriais foi considerada "usurpação de poder", o que justifica a sua nulidade.

Suspender os pagamentos à EDP baseados nos CMEC é um primeiro passo de coragem, a que se deverão seguir outros. Teremos ainda, nesta legislatura, oportunidade de votar outras medidas de combate às rendas da energia. Esperemos que o escrutínio público e a visibilidade deste processo sirvam para que PS, PSD e CDS não as travem mais uma vez.

DEPUTADA DO BE

Quem Precisa de Eutanásia com um País Assim?

Novo artigo em BLASFÉMIAS


por Cristina Miranda

Europa. Ano de 2018. O Estado inglês decide sozinho que uma criança de 23 meses deveria morrer por ter doença degenerativa sem cura. Alegações? O superior interesse da criança. Sim, leu bem. O Estado, esse Deus omnipotente  sabia que Alfie Evans não tinha cura - mesmo sem ter tentado tudo o que a ciência permitia e sabendo que estão sempre a surgir novas curas -  e queria morrer. Por isso, decidiu "dar-lhe voz" ordenando que fossem desligadas as máquinas de suporte de vida. Ou seja, matá-lo. Em resposta, Alfie manteve-se vivo durante 5 dias completos, sem máquinas, mostrando assim que afinal queria mesmo viver e  havia outro caminho se houvesse vontade. Que pensaria Stephen Hawkins disto se fosse vivo? Pois.

De pouco serviu a ajuda do Vaticano para tratar o menino. De nada adiantou a vontade dos pais em se agarrarem à esperança lutando desesperadamente pela sobrevivência do seu filho amado. O Estado decidiu, estava decidido: nem tratamentos na Inglaterra nem em qualquer outro sítio do Mundo. Ordem para matar. Ponto final. Não fosse Inglaterra o país do 007. Por falar nisso, alguém viu a Rainha por aí? Ah! espera, essa é apenas peça ornamental.

No meu texto "Eutanásia dá muito Jeito"  explicava o lado perverso das leis que dão poderes ao Estado para matar. Argumentei que era um pau de dois bicos porque se por um lado acudia a situações especiais de sofrimento extremo, por outro abria uma Caixa de Pandora porque esse mesmo Estado não era, muitas vezes,  "pessoa de bem". Não tinha ainda este exemplo tão bom para o demonstrar. Limitei-me aos casos já existentes de países que a usam e se viram confrontados com uma realidade cruel que não previram: pessoas a serem mortas sem ser por vontade delas. Com o caso Alfie não podíamos ter um exemplo mais assustador para demonstrar a perigosidade das  leis em que o Estado é rei e senhor do poder sobre a vida.

Estamos numa época em que a vida humana passou a ter menos valor que a dos animais. Em que se criminaliza todo e qualquer acto contra os bichos e se desresponsabiliza o abandono e morte dos humanos. Isto parece surreal. Mas não é por acaso.  Tem uma clara intenção política. Está na agenda dos desestruturadores de valores sociais. Os aliados de Soros na Europa. A reversão de valores está mesmo na agenda dos políticos. Está confuso? Vamos reflectir.

Comecemos por cá mesmo. Aqui já não é possível abandonar animais sem ser considerado um crime. No entanto, pode abandonar idosos em Hospitais ou suas casas que nada lhe acontece. A quem convém manter as coisas assim? Ao Estado, claro. Mais idosos à sua sorte, mais desprotegidos ficam, mais depressa morrem. Assim, equilibra a idade da esperança média de vida -  que aumentou consideravelmente - com as contas da segurança social.

Mas há mais: por muitos estudos que se façam não há desculpa alguma pelas longas listas de espera do SNS. Não há mesmo! Podem alegar falta de pessoal, podem alegar falta de verbas, podem alegar aumento de fluxo de doentes por isto ou aquilo. Mas a verdade é esta: não há vontade nenhuma de pôr o SNS a funcionar em condições.Porque é o sistema de "eutanásia legal" existente no país para fazer baixar a despesa do Estado e diminuir esperança de vida. Ficou chocado com o que escrevi? Então pense comigo.

Sempre que um banco precisa de dinheiro, mesmo não havendo dinheiro, ele aparece para pagar o buraco. Até hoje já foi enterrado, sem espinhas,  17 mil milhões dos contribuintes. Se não há dinheiro para acudir ao SNS, porque o há SEMPRE quando são bancos e sem limites? A vida humana vale menos que um banco? Vale.  Esta é a prova inegável. Mais: faltam cerca de 5000 especialistas médicos no SNS. O Estado suspendeu concurso que provocou ainda mais saídas. Alega o de sempre: falta de dinheiro. Mas Costa fez entrar na função pública, desde que tomou posse, mais de 10 000 funcionários na administração pública. Está a ver?  E mais esta reflexão: se o Estado quisesse mesmo dar a melhor saúde aos seus cidadãos, em vez de alegar falta de recursos, celebraria parceria com privados, eliminando todas as carências dos utentes, abrindo um leque de muitos mais serviços com qualidade, extensíveis a todos sem excepção. Resolveria assim três problemas: falta de meios,   qualidade de serviços e listas de espera.  Não o fazem porque não querem. Porque interessa manter um serviço que não funciona manietando o cidadão pobre a um destino quase certo em caso de doença: morrer mais cedo. Pense, porque pensar ainda não paga imposto.

Com isto, fica claro que interessa manter o SNS como fachada fingindo que o mesmo é extraordinário e que sem ele os pobrezinhos não tinham direito à saúde. O que não dizem é que tudo fizeram, durante décadas, para que esse mesmo sistema,  só servisse para curar rapidamente gripes e unhas encravadas, e fosse "desinvestido" subtilmente para que as pessoas, que não têm recursos para se curar no privado, definhem lentamente e assim libertem o Estado de despesas pesadas. Uma "Eutanásia" legalmente aceite e que não levanta suspeita. Porque as pessoas só pelo facto poderem ir ao médico sem pagar já as faz sentir protegidas. Problema é quando a doença é mesmo séria e morrem à espera.

Um Estado que mata a vida e a esperança é um carrasco legal. Legitimizar isso com o nosso voto é ser-mos cúmplices dessa matança. O caso Alfie Evans deve servir para  uma profunda reflexão sobre a verdadeira aplicação dessas leis na prática.

Quem precisa de eutanásia num país  sem valores humanos? Ninguém.