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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Kim Kardashian e Maria Leal: o triunfo de uma sociedade doente

A sociedade moderna está doente, porque constrói bonecos para rapidamente os destruir, pontapear e esmagá-los sem piedade.

Quem ler apenas o título vai pensar que eu estou a tornar-me um “colaboracionista” com a mediocridade, pois ao citar estes nomes estou a promovê-los. Se calhar é o pecado deste meu artigo, assumo, “mea culpa”, mas quem é racional tem de alertar para o folclore em torno destas criaturas e para o vazio das sociedades contemporâneas.
Na semana passada, o “El País” escrevia que a marca Kim Kardashian «caía a pique». Até 2016 ocupava o 42º lugar das celebridades mais bem pagas, liderava o ranking das estrelas de “reality shows” com 49 milhões de euros, cobrava 286 mil por post e 478 mil por presenças em festas. Isto porquê? Porque é uma celebridade promovida pelas redes sociais, uma profissional de “selfies” que saltou para a televisão e que casou com outra estrela, Kanye West. Tem algum talento? Não.
Por cá, mais modesta, uma senhora de nome Maria Leal tornou-se em 2016 uma “celebridade” porque apareceu num programa matinal a cantar e a dançar mal. As redes sociais partilharam as imagens, fizeram-na motivo de chacota nacional, mas com isso ganhou presenças e algum dinheiro, virou notícia de jornal e a sua alcova também se tornou de domínio público. Tem algum talento? Não.
Sobre a monumental trilogia dos sentimentos (“A Aventura”, “A Noite” e “O Eclipse), o seu genial criador, Michelangelo Antonioni, dizia que procurava «vestígios de sentimentos». Porque o mestre italiano antevia a sua desaparição nas sociedades frias e sem alma do presente e do futuro. O problema é que os maus instintos, o “voyeurismo”, o deplorável gozo em achincalhar o ridículo se sobrepôs à cultura, ao respeito pelo talento.
Assistimos, inexoravelmente, à morte dos sentimentos. Como em “O Eclipse”, quando um corretor da Bolsa morre e se guarda um minuto de silêncio, mas que um segundo depois a azáfama volta e já ninguém se lembra que o homem existiu. A sociedade moderna está doente, porque constrói bonecos para rapidamente os destruir, pontapear e esmagá-los sem piedade. Só espera que algum imperador lhes pergunte se os salvam ou não como nos circos romanos.
Uma sociedade doente que venera inúteis, entroniza analfabetos funcionais, lhes pede autógrafos, dá contratos e paga “cachets”. Kim Kardashian e Maria Leal são apenas dois rostos, mas há tantos mais que o universo mediático promove sem qualquer retorno útil para a comunidade. Tanto talento que existe e as pessoas não conhecem. Quantos, por exemplo, já viram um filme de Antonioni, quem já viu Alain Delon e Monica Vitti, soberbos, em “O Eclipse”? Pois não viram, mas sabem quem é a Kardashian e a Leal, e isso é que é pena.
George Bernard Shaw dizia que «há duas tragédias na vida. A primeira é não obter o que o seu coração mais deseja. A segunda é obter». As duas citadas conseguiram os seus 15 minutos de fama. E há quem as elogie porque tiveram a esperteza de ganhar com isso. Conquistaram-no pelo vazio, pelo bizarro, pelo grotesco. A sociedade bate-lhes palmas, ri delas, vilipendia em seguida. A sociedade está entretida. Que doente está a sociedade.

Rui Calafate - ECO.pt

Ovar, 5 de janeiro de 2017
Álvaro Teixeira





quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Obama, Trump, Bibi e o “suicídio de Israel”

 

(Jorge Almeida Fernandes, in Público, 01/01/2017)
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No dia 23, o Conselho de Segurança aprovou uma resolução condenando a política de colonização de Israel, que torna impossível a solução “dois Estados”, ou seja, a criação de um Estado palestiniano. Foi o último acto de Barack Obama na política internacional, um marco na política americana e, ao mesmo tempo, revelador das tensões entre a Casa Branca e o Presidente eleito, Donald Trump, nesta agitada fase de transição. O secretário de Estado, John Kerry, diz que Washington quer salvar Israel de si mesmo e travar a sua corrida para um suicídio a prazo.
Os Estados Unidos não vetaram a resolução, abstiveram-se, fazendo-a aprovar por 14 votos contra zero. Foi uma opção inédita, a menos de um mês do fim do mandato de Obama, e com efeitos que não são apenas simbólicos. Provocou uma frenética reacção do primeiro-ministro israelita, Bibi Netanyahu, mas este suspendeu logo a seguir uma expansão dos colonatos em Jerusalém Oriental.
Olhemos os antecedentes imediatos. Foi o Egipto que tomou a iniciativa. Perante a ameaça, Netanyahu pediu ajuda a Trump. Este telefonou ao Presidente egípcio, marechal Sissi, pedindo-lhe que retirasse o texto. Sissi, que depende da ajuda americana, cedeu, para que a iniciativa fosse retomada por outros quatro países, encabeçados pela Nova Zelândia. Os altos-funcionários da Casa Branca ficaram estupefactos, com Bibi e, sobretudo, com Trump.
Até agora, o Presidente eleito dedicou-se a reescrever a política externa americana a “golpes de tweet”. Não é esta a tradição americana, embora haja um precedente, o de Richard Nixon em 1968. Mas Trump foi mais longe: tentou anular uma decisão do Presidente em exercício. E reincidiu, dias depois, numa outra mensagem: “Aguenta-te, Israel, 20 de Janeiro está perto.”
Trump também abriu a porta para Vladimir Putin humilhar Obama. Moscovo tinha anunciado a expulsão de diplomatas americanos em resposta à expulsão de espiões russos, retaliação pela intromissão de Moscovo nas eleições americanas, o que indignou Trump. Putin anunciou na sexta-feira que não haveria expulsões, ficando à espera de Trump. Quis dizer: Obama já não conta.
As transições envolvem sempre um risco — vazio de poder, motivo de inacção, ou duplo poder, fonte de conflito. Prevêem-se cenas edificantes até 20 de Janeiro, data em que Trump terá a legitimidade presidencial e começará a espectacular demolição das políticas de Obama e anteriores administrações. Mas não poderá alterar a resolução do Conselho de Segurança, que ficará como um marco na política internacional e americana.
Porquê a decisão de Obama em fim de mandato? Ele enunciou a sua política sobre o conflito israelo-palestiniano em dois discursos de 2011. Mas não lançou nenhuma iniciativa diplomática espectacular. As dos seus antecessores traduziram-se em fracassos. Fez pressões durante oito anos. Mas este nunca foi um dossier prioritário.
Obama terá pretendido deixar um legado: a comunidade internacional, através do Conselho de Segurança, condena os colonatos, o que terá consequências políticas. Será um legado tardio. Não o fez um ano antes para não prejudicar a campanha de Hillary Clinton — que de resto discordaria da resolução e da abstenção americana.
De qualquer forma, a decisão de Obama corresponde à política tradicional dos dois grandes partidos americanos desde 1993. E entravará a política israelita de Trump na medida em que deu uma caução internacional à solução “dois Estados”.

Bennett e Bibi

Naftali Bennett, ministro da Educação e líder carismático da extrema-direita israelita, vê na eleição de Trump a grande oportunidade para anexar a Cisjordânia nos próximos quatro anos. “A era do Estado palestiniano acabou.”
A vitória de Trump é uma boa notícia para Netanyahu, mas uma notícia perigosa. Porquê? Porque diminui o seu controlo sobre os extremistas. Bibi sempre foi um nacionalista, mas como político é um táctico oportunista, mestre no jogo duplo com moderados e radicais. Nunca teve uma estratégia sobre o futuro de Israel. A sua arte é sobreviver. Em 2009, após a eleição de Obama, fez uma prudente viragem ao centro e até um discurso em que defendeu “a paz através da solução dois Estados”. No segundo mandato de Obama, optou por uma aliança de extrema-direita.
Quando tem de navegar entre as preferências dos seus aliados internacionais e israelitas, Netanyahu utiliza a pressão americana para travar os sionistas messiânicos. A Casa Branca serve-lhe de escudo contra a crescente pressão dos colonos e extremistas. Se estes têm a percepção de que podem contar com a “luz verde” de Trump, vão aumentar a pressão e romper a crítica margem de manobra de Bibi.
Por outro lado, Trump será um aliado imprevisível. “[Netanyahu] deve lembrar-se de que no mundo de Trump só há Trump”, escreve Nahum Barnea, o mais destacado editorialista israelita. Se nomeou embaixador David Friedman, defensor dos colonos e adepto de transferir a embaixada americana para Jerusalém, Trump pode amanhã, pelos seus próprios interesses políticos, fazer exigências desagradáveis a Israel.

O sionismo messiânico

O tempo joga aparentemente a favor de Israel e da política dos “factos consumados”. Há mais de 600 mil colonos em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia, muitos deles “nativos”, já lá nascidos. Mas, a prazo, joga contra Israel. Primeiro por razões demográficas: em 2020, a população árabe de Israel e da Cisjordânia poderá ultrapassar a judaica.
Que fazer nesse caso? “Se não houver dois Estados, haverá um; e, se só houver um, ele será árabe”, explicou o romancista Amos Oz. “A alternativa é entre uma ditadura de judeus fundamentalistas ou um único país em mãos árabes que mataria o sonho sionista.” A colonização inviabiliza dia a dia a solução “dois Estados”, na medida em que deixará aos palestinianos um território residual, um gueto, ou um Estado binacional que reservaria aos judeus os direitos políticos, apenas reconhecendo aos árabes direitos individuais.
Outro fenómeno é “a morte do Velho Israel” do sionismo secular. “Israel — pelo menos na sua visão secular e progressista que outrora seduziu a imaginação do mundo — acabou”, escreve Aluf Benn, director do diário Haaretz.
O sionismo secular está a ser desafiado por um sionismo messiânico que põe em causa a natureza da Israel. O sionismo foi um movimento nacional laico e democrático. Os messiânicos querem “o renascimento do reino histórico de Israel”. Declara Bennett que “o sionismo laico esgotou o seu papel histórico” e que ele está pronto para receber o testemunho. “Aproxima-se o dia em que seremos nós a dirigir o país.” Não são a maioria. São os mais enérgicos.
É nisto que John Kerry estaria a pensar no seu discurso. Mas não está nas mãos do americanos salvar Israel de si mesmo. Só os israelitas o poderão fazer.
 
Ovar, 4 de janeiro de 2017
Álvaro Teixeira



António Costa superou expectativas, diz Financial Times

António Costa superou expectativas, diz Financial Times

Jornal Económico

02 Jan 2017

O jornal britânico diz que o primeiro-ministro português "confundiu os críticos".

Rafael Marchante/Reuters

Rafael Marchante/Reuters

Para o Financial Times, António Costa conseguiu surpreender ao resistir um ano e manter o compromisso com o BE e o PCP: “As expetativas de que esta parceria improvável ia falhar eram tão altas que o primeiro-ministro já desafiou a maioria dos críticos apenas e só por sobreviver para um segundo ano no cargo”, escreve hoje o jornal.

O diário refere o ceticismo da oposição e dá relevo às declarações do ex-ministro, Pedro Passos Coelho, ao abandonar o Governo: “Espero não ser chamado para uma casa em chamas”.

A reticência dos credores internacionais, dos mercados e das agências de rating em “torno do modesto crescimento económico” e do “frágil setor financeiro” português também são salientadas.

Ainda assim, para o jornalista Peter Wise, o chefe do Executivo português “regista níveis de popularidade que outros líderes de centro-esquerda na Europa apenas podem sonhar”, indicando-o como exemplo para o Podemos, em Espanha.

Os níveis de popularidade  são atribuídos à defesa do fim do clima de austeridade do programa de ajustamento em 2011-2014. “Agiu rapidamente para recuperar os orçamentos do sector público, horário laboral, férias e pensões estatais para os níveis pré-resgate”.

O diário sublinha ainda que António Costa “beneficiou de uma mudança na atitude em relação à disciplina orçamental severa” na Europa.

 

Ovar, 4 de janeiro de 2017

Álvaro Teixeira

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Netanyahu vai em frente, tens aqui a tua gente

 

 
Autor
                           
Daniel Oliveira

Foi uma israelita de esquerda – esse grupo em vias de extinção – que, em Haifa, melhor me descreveu o projeto israelita para os territórios palestinianos: transformá-los num queijo suíço, ficando Israel com o queijo e os palestinianos com os buracos. Os muros e checkpoints a cercarem cada pequena cidade palestiniana, a transformação dos movimentos quotidianos mais simples (idas à escola ou ao hospital) num calvário diário e a sabotagem planeada da economia e da autoridade do Estado palestiniano correspondem a um objetivo de longo prazo: tornar inviável uma solução de dois Estados, expulsando os palestinianos do seu próprio território e ocupando-o progressivamente.
A expansão dos colonatos israelitas em território internacionalmente reconhecido como palestiniano é apenas uma peça de uma estratégia que, depois do assassinato de Yitzhak Rabin por radicais israelitas, se tornou em política de Estado quase incontestada. Desde então, políticos oportunistas aliados à extrema-direita e a grupos religiosos radicais encaminham Israel para o abismo.
A violação sistemática, descarada e até provocadora de todas as deliberações internacionais só tem sido possível graças à cumplicidade dos EUA e da Europa. Não atribuo esta cumplicidade ao poder do lóbi pró-israelita e muito menos do chamado “lóbi judeu”, expressão que, fazendo um favor à direta israelita, confunde o governo de Israel com todo um povo. O que se passa é que as opiniões públicas ocidentais resolveram a sua culpa pelos crimes contra o povo judeu de que foram historicamente responsáveis dando a Israel o estatuto de inimputabilidade, como se o sofrimento do passado pudesse ser um passaporte para discricionariedade no presente.
Qualquer pessoa moderadamente bem formada e informada fica chocada com o comportamento de Israel nos territórios palestinianos. E só os mais desatentos alimentam ainda a imagem de uma ilha de democracia e tolerância cercada por um mar de fanatismo e ódio. Há mais de duas décadas que a política israelita é dominada por uma direita militarista refém de partidos ultrarreligiosos e de movimentos de extrema-direita que são, na sua natureza, um insulto aos primeiros sionistas e aos judeus socialistas que alimentaram o espírito comunitário dos kibutzim.
O apoio acrítico do ocidente a Israel contribuiu para uma cultura política de impunidade e para a violação sistemática e por vezes sádica dos mais básicos direitos humanos. Democratas sérios como Jimmy Carter e, mais recentemente, John Kerry compreenderam, ao lidar com a arrogância israelita, que o seu apoio incondicional criara um monstro. Acordaram tarde demais. A forma como Netanyahu humilhou Obama no discurso que fez ao congresso norte-americano, em março de 2015, e como, na semana passada, usou a transição de mandatos e a imbecilidade de Trump para desautorizar a autoridade dos EUA é resultado de décadas de uma aliança equívoca. Na relação entre EUA e Israel o protetor obedece às exigências e caprichos do protegido, desbaratando com esta subalternidade toda a influência que poderia ter no Médio Oriente.
O que deveria ser natural - que a ONU não aceite como direito adquirido a construção de novos colonatos israelitas em territórios palestinianos - é encarado por Israel como uma intolerável afronta diplomática, a ponto de chamar embaixadores estrangeiros para os admoestar, como se a ideia de serem um Estado como os outros, a quem se aplicam as mais básicas normas internacionais, fosse um insulto à sua própria identidade. E foi a proteção bovina dos EUA que instalou nos políticos israelitas esta arrogância, prejudicando, antes de mais, Israel, que estava cada vez mais isolada na comunidade internacional.
É revelador deste isolamento a alegria com que o governo israelita recebeu as novas lideranças norte-americana e britânica. Corresponde a uma partilha de valores marcados pela intolerância, o radicalismo e a xenofobia. Finalmente a política na Europa e nos EUA começa a ficar parecida com a política israelita das últimas duas décadas. Netanyahu, Trump e Theresa May, les beaux esprits se rencontrent.
 
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/01/2017)
 
Ovar, 3 de janeiro de 2017
Álvaro Teixeira




segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O texto duro e obrigatório que temos de ler sobre a Alemanha e o dinheiro

 

 

Pedimos a um especialista alemão que escrevesse sobre o futuro do Deutsche Bank a propósito da sombra que também sobre ele agora cai nesta Europa da crise monetária. Heiner Flassbeck, economista, ex-secretário de Estado das Finanças e ex-conselheiro de Oskar Lafontaine sobre a reforma do Sistema Monetário Europeu, respondeu-nos que o Deutsche Bank é um pormenor num contexto alargado. E contrapropôs este texto longo, técnico, duro e obrigatório que analisa em profundidade a origem da crise do euro e consequentemente da Europa. Flassbeck coloca a Alemanha no coração da origem da crise da moeda única, revela o segredo do crescimento alemão nos últimos 15 anos (“o país tem operado uma política de ‘pedinchar ao vizinho’, mas só de pois de ter ‘pedinchado ao seu próprio povo’ essencialmente através do congelamento dos salários - este é o segredo do sucesso alemão dos últimos 15 anos”) e diz que sem um ajustamento da maior economia europeia o fim da União ganha contornos de possibilidade real. A perspetiva de desintegração e o decorrente colapso da união já não podem ser ignorados, defende Flassbeck.

(Por HEINER FLASSBECK, in Expresso Diário, 01/01/2017)

Os últimos sete anos têm sido um período tumultuoso para a Europa e o desassossego está longe de ter acabado. A crise global que começou em 2007 conduziu a um choque financeiro agudo em 2008-9, o qual inaugurou uma recessão em todo o mundo. A Europa - incluindo a Alemanha - foi atingida em pleno quando o crédito contraiu e o comércio mundial retraiu. A verdadeira crise na Europa, no entanto, começou em 2009-10 quando a recessão induziu o agravamento das finanças públicas, desencadeando uma crise gigantesca na zona euro.CRISE SEM FIM À VISTAHavia poucas dúvidas no início de 2015 de que a crise da União Económica e Monetária Europeia (UEM) não tinha desaparecido. Medidas pouco ortodoxas tomadas pelo Banco Central Europeu (BCE), em particular a sua promessa de fazer “o que fosse necessário” para estabilizar o sistema monetário em 2012, acalmaram os mercados financeiros e forneceram espaço para que a política económica agisse de forma estabilizadora.Apesar disso, ao nível das instituições europeias parece estar a crescer a consciência de que são necessárias mudanças radicais para tornar o sistema mais resistente. E até além da obsessão tradicional com os défices fiscais e dívidas dos governos, a adoção de um mecanismo de aviso precoce para lidar com o núcleo do problema foi acionado com bastante rapidez. A introdução de um Procedimento por Desequilíbrios Macroeconómicos, destinado a lidar com os saldos de conta corrente existentes e futuros e orientar os Estados-membros no sentido de um comércio mais equilibrado, significou algum progresso na compreensão de que uma união monetária requer, acima de tudo, coordenação da evolução dos preços e dos salários.

HEINER FLASSBECK A Alemanha tem de se reajustar, previne o economista

OS PRINCÍPIOS MONETÁRIOS NUCLEARES DA UEM

Uma união monetária é antes e acima de tudo uma união de países que querem abdicar das suas moedas nacionais com o objetivo de criar uma moeda comum. Abdicar de uma moeda nacional implica renunciar ao direito de as autoridades nacionais imprimirem moedas e notas e, deste modo, implantar dinheiro nacional (dinheiro fiat). Entrar numa união monetária também implica abdicar dos objetivos de inflação nacionais e concordar com uma meta de inflação comum de uma união.

Quais são as maiores determinantes da inflação? A prova mais importante é a correlação alta e estável entre a taxa de crescimento do custo das unidades de trabalho (CUT) e a taxa de inflação. Os custos da unidade de trabalho parecem ser a determinante crucial dos movimentos gerais de preço nas economias nacionais, bem como em grupos de economias. Se a forte correlação entre o CUT e a inflação fosse reconhecida e colocada no coração da análise macroeconómica, tornar-se-ia claro que o principal requisito para unidade monetária de sucesso não seria o controlo sobre os assuntos monetários, mas a gestão das receitas e dos salários nominais. Para ser específico, o objetivo de inflação comum para a UEM foi definido pelo BCE a uma taxa próxima de 2%. Isto implicava que a regra de ouro para o crescimento salarial em cada economia seria a soma do crescimento de produtividade nacional mais 2%. Por esta medida, não ocorreriam as grandes discrepâncias de inflação que levam às discrepâncias de competitividade entre os Estados-membros.

INDÚSTRIA A Siemens é um dos gigantes alemães que contribuiu para que o país não baixasse as exportações

A ALEMANHA COMO FONTE DA CRISE DA ZONA EURO

As preparações para a UEM foram profundamente falhadas porque em vez de se discutirem em detalhe as implicações de uma união monetária e em vez de se criarem as instituições necessárias para gerir com sucesso uma tal união, o debate político e as decisões tomadas nos anos até 1997 - altura em que os critérios para a entrada tinham de estar cumpridos - na realidade focaram-se na política fiscal. Enfatizou-se em particular a limitação dos défices do sector público a 3% do PIB, enquanto a necessidade de evitar os diferenciais de inflação e garantir a capacidade de os Estados-membros cumprirem ao longo do tempo os objetivos comuns de inflação foram olhados como questões muito menos importantes para o suave funcionamento da UEM.

A Alemanha, com a sua intolerância absoluta a que a inflação excedesse os 2% e a sua tradição monetarista dogmática, silenciou qualquer outro ponto de vista sobre a inflação. No entanto, a Alemanha, o maior país da União Europeia e o bastião da estabilidade de várias décadas, decidiu experimentar um novo modo de combater o seu alto nível de desemprego. Em conjunto com os empregadores, o Governo pressionou os sindicatos para tentar restringir o crescimento nominal e real dos salários.

DIFERENÇAS SENSÍVEIS

A nova abordagem alemã ao mercado de trabalho coincidiu com a introdução formal da união monetária, o que levou consequentemente a enormes divergências nos custos nominais de unidades de trabalho entre os membros da UEM. A principal causa destas divergências foi o simples facto de os custos nominais das unidades de trabalho, a mais importante determinante de preços e competitividade, se terem mantido essencialmente sem oscilações desde o início da UEM. Em contraste, a maioria dos países da Europa da Sul tinha um crescimento nominal dos salários que excedia o crescimento da produtividade nacional mais o objetivo de inflação acordado em comum de 2% por uma margem baixa, mas bastante estável.

França foi o único país que cumpriu exatamente o objetivo de crescimento nominal dos salários. Os salários franceses subiram em paralelo com a performance da produtividade mais o objetivo de inflação do BCE a uma taxa perto de 2%.

Embora a divergência anual entre os aumentos nos custos de unidades de trabalho fosse relativamente pequena, a dinâmica dessa “pequena” divergência anual é capaz de, com o tempo, produzir diferenças enormes. No final da primeira década de UEM, o custo e diferença de preço entre a Alemanha e a Europa do Sul chegava aos 25% e entre a Alemanha e França chegava aos 15%. Por outras palavras, a taxa de câmbio real da Alemanha tinha baixado muito significativamente, embora as moedas nacionais já não existissem na UEM. A divergência no crescimento dos custos das unidades de trabalho já não existiam no seio da UEM. A divergência no crescimento dos custos das unidades era naturalmente refletida nas divergências de preço equivalentes. Assim, a UEM como um todo alcançou quase na perfeição o objetivo de inflação de 2%, mas as diferenças de inflação nacionais no seio da união foram muito sensíveis.

TUMULTOS Na Europa do Sul multiplicaram-se as manifestações antieuropeístas com a Grécia à cabeça. E à beira da miséria

É inegável que a depreciação real que aconteceu na Alemanha teve um enorme impacto nos fluxos de comércio. Com os custos de unidades de trabalho na Alemanha mais baixos relativamente aos dos outros países por uma margem crescente, as exportações alemãs floresceram enquanto as importações abrandaram. Os países na Europa do Sul e também França e Itália começaram a registar défices comerciais e de conta corrente crescentes e sofreram enormes perdas nas suas quotas dos mercados internacionais. A Alemanha, ao contrário, conseguiu preservar a sua quota apesar da competição global crescente com a China e com outros mercados emergentes. Num casulo, a Alemanha tem operado uma política de “pedinchar ao vizinho”, mas só de pois de ter “pedinchado ao seu próprio povo” essencialmente através do congelamento dos salários. Este é o segredo do sucesso alemão dos últimos 15 anos.

O comércio dentro da Europa tinha sido bastante equilibrado até ao início da união monetária e ao longo de muitos anos antes disso. A UEM marcou o início de um período de desequilíbrios rapidamente crescentes. Até após o choque da crise financeira e dos seus devastadores efeitos no comércio mundial, que são claramente visíveis no equilíbrio alemão, a tendência de fundo manteve-se sem mudar. A conta-corrente alemã continuou a aumentar depois de 2010 e até alcançou um novo recorde em 2015, da ordem dos 250 mil milhões de euros, um valor próximo de 9% do PIB.

A ALEMANHA TEM DE SE AJUSTAR

Num mundo de taxas cambiais flutuantes ou ajustáveis, nenhum país pode ganhar uma vantagem permanente relativamente a outro país se este último tivesse a opção de ajustar as suas taxas cambiais de acordo com os diferenciais da inflação. Isto significa que seriam inúteis todas as tentativas para melhorar a competitividade por via de corte ou moderação de salários na UEM como um todo. E, no entanto, esta foi precisamente a abordagem escolhida pela Europa como saída para a crise. Foi também uma má opção porque o corte salarial na maioria dos países devedores conduziu a quebras severas na procura doméstica, que é mais importante do que a procura externa. A restrição dos salários foi contraproducente em economias com uma taxa de exportação do PIB muito inferior a 50%.

Numa união monetária, um país com uma taxa de exportação baixa que enfrente problemas de défice de conta-corrente muito alto devido a uma moeda implicitamente sobrevalorizada fica sem saída. O ajuste dos salários para baixo, por vezes erroneamente chamados “desvalorização interna”, não só não é solução como também destrói tanto a procura interna como a produção antes que venha a trazer algum alívio através de aumento das exportações.

É por isto que o processo de ajustamento no seio da UEM tem de ser pelo menos simétrico. Significa que o país que tenha implicitamente desvalorizado a sua taxa cambial - a Alemanha - teria de fazer um forte esforço de ajuste crescente, isto é, aumento de salários, enquanto outros países teriam de ajustar lentamente para baixo.

TROIKA A verificação aos países devedores pelos peritos da troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) é uma das imagens de separação entre Norte e Sul

O incentivo mais fiável para o sucesso dos esforços de ajustamento em ambos os casos seria de novo o objetivo de inflação. Se o objetivo de inflação comum não fosse questionado, para restaurar a competitividade internacional dos défices dos países seria necessário aumentar os custos das unidades de trabalho e inflação no país com excedente ao ponto de se conseguir alcançar o balanço externo em ambos os lados da união monetária (incluindo os primeiros dez anos).

UEM DIRIGE-SE PARA O DESASTRE

Em meados de 2016, o desemprego na UE continuava nos 10%. Em Espanha e na Grécia, o desemprego estava acima dos 20% e o desemprego jovem era superior a uns extraordinários 50%. Mais do que qualquer outra coisa, estes números mostram o insucesso da UE na luta contra este problema que emergiu como a “crise da zona euro”. Enquanto a queda significativa de crescimento e emprego foi inicialmente provocada pela crise global de 2007-9, após 2010 as nações devedoras da UEM ficaram privadas de meios para combater a recessão e foram forçadas a adotar políticas pró-cíclicas numa escala que não se via desde os anos 30.

O mantra alemão que diz “a austeridade é a única solução” foi aplicado a todos os países, que foram forçados a pedir ajuda quando acabou o seu acesso aos mercados globais, ou quando ele lhes foi vedado de facto pelas altíssimas taxas de juro. A obsessão com os aparentes problemas fiscais dominou o debate e as condições que foram exigidas pela troika e pelo Eurogrupo para abrir os cofres das nações credoras concentrou-se na consolidação a qualquer preço e o mais rápido possível dos orçamentos públicos dos países do défice.

As divergências acumuladas durante os primeiros anos da UEM e a terrível natureza dos programas de ajustamento puseram em questão a própria sobrevivência da UE

Com a persistência do domínio alemão dos mercados de exportação e dada a recusa alemã de ajustar o seu próprio modelo económico, o futuro da zona euro parece sombrio. A falta de instrumentos de política para atacar a recessão, o condicionamento dos programas de ajustamento impostos às economias em crise, o próprio ajustamento “estrutural” disfuncional e a perspetiva de deflação continuada aumentaram os custos de permanecer na UEM ao ponto de a subida política da direita ameaçarem a democracia e a União Europeia. O insucesso na descida das taxas de desemprego e a crescente pobreza abriu caminho aos partidos de direita populistas e antieuropeus, tanto nos países credores como nos devedores. Contra esse perigo, os benefícios de ser membro da UEM são pequenos e, mais importante ainda, estão a diminuir depressa.
Em resumo, as divergências acumuladas durante os primeiros anos da UEM e a terrível natureza dos programas de ajustamento puseram em questão a própria sobrevivência da UE. E, no entanto, os líderes europeus parecem alheios a isso. Parecem ainda menos disponíveis para empreenderem um esforço político para inverter a economia em geral e impedir as divergências crescentes no seio da UEM. A perspetiva de desintegração e o decorrente colapso da união já não podem ser ignorados.

Fonte: Expresso | O texto duro e obrigatório que temos de ler sobre a Alemanha e o dinheiro