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quarta-feira, 15 de março de 2017

A besta volta a atacar (estatuadesal)

 

(Por Estátua de Sal, 15/03/2017)
 
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Sempre que se encontra em dificuldades, quer ao nível da política interna alemã, quer ao nível do confuso e decrepito cenário político europeu, o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, tira sempre da cartola a eminência parda de um novo resgate a Portugal. (Ver notícia aqui)
Na senda do seu fiel seguidor e amigo de peito, Passos Coelho, Schäuble também é um devoto do diabo a quem acena e invoca com particular denodo. Ora, o que aconteceu hoje, deve-o ter deixado colérico e enfurecido. Portugal foi hoje aos mercados financiar-se a curto prazo e, contrariamente ao que a besta teutónica pretendia com as suas declarações catastrofistas, as taxas de juro foram negativas e ainda mais negativas do que tinham sido no último leilão de dívida pública a prazos semelhantes.
Ou seja, a besta ladra e os mercados assobiam para o ar. É que, para os mercados, mais vale hoje em dia um suspiro do sr. Draghi do que uma saraivada de latidos do sr. Schäuble que se arrisca a fazer as malas em Setembro, caso a D. Merkel perca as eleições para o SPD - cenário cada vez mais provável de acordo com as sondagens mais recentes.
Este tipo de intervenções do ministro alemão, deviam merecer de imediato um protesto diplomático veemente por parte do Governo português. Elas revelam que a besta se acha uma espécie de capataz a zurzir numa cambada de escravos que tem que baixar a cerviz sob o estalido da verborreia dos seus sonhos de ditador.
As nossas elites, a classe política quase toda, continuam a defender que o país se deve manter alinhado com uma vocação europeísta e contribuir para a prossecução de um programa de integração económica que deve ser aprofundado. Cada vez mais duvido do sucesso e vantagens desse percurso quando ouço declarações deste tipo e a forma como , este e outros personagens, tratam e consideram os países mais pequenos e economicamente mais débeis. Tratam-nos como colónias e territórios subordinados que devem obedecer sem discussão aos ditames dos donos do império.
Por isso, o debate sobre o que podemos esperar da integração na Europa e da permanência no Euro, não é, longe disso um debate descabido ou sequer radical, mas sim uma necessária e urgente reflexão. Por enquanto ainda temos alguma soberania e podemos fazê-lo. E devemos fazê-lo antes de  perdermos completamente a margem de autonomia política que ainda temos e nos permite decidir o nosso destino como nação soberana.
Resistir durante 800 anos como nação independente e virmos a passar de colonizadores, nas sete partidas do Mundo, a colonizados dentro da nossa própria terra, zurzidos por Schäuble ou outra qualquer besta alemã, não me parece ser um grande desígnio nacional.
A obrigação do nosso Presidente da República seria pois, pronunciar-se sobre estas declarações e exigir que o país fosse respeitado e não sujeito ao reiterado bullying político do sr. Schäuble. E a obrigação do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros seria protestar formalmente junto do governo alemão pelas abusivas interferências do seu ministro  das finanças  nas opções da nossa política interna.
Se nada fizerem e nada disserem, só lhes deixo, para reflexão, um conhecido ditado popular: "Quanto mais a gente se baixa, mais o rabo se vê".
 
Ovar, 15 de março de 2017
Álvaro Teixeira

terça-feira, 14 de março de 2017

Inocência por incompetência? (estatuadesal)

 

(Francisco Louçã, in Público, 14/03/2017)
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Tinha mesmo que vir: o argumento da inocência por incompetência era o que sobrava aos anteriores ministros PSD-CDS quando confrontados com o Nunciogate. Maria Luís Albuquerque anda fugida dos microfones, o que nem é hábito dela, mas Assunção Cristas enterrou-a sem piedade, quando perguntada sobre se ainda concorda com a resolução do BES tal como ocorreu:
“É uma pergunta difícil, porque, mais uma vez, volto a este ponto, nós não discutimos os cenários possíveis no Conselho de Ministros. Aliás, a resolução do BES foi tomada pelo BdP e depois teve de ter um diploma aprovado pelo Conselho de Ministros. É aí que critico um bocadinho esta coisa de não termos nada que ver, o Conselho de Ministros não tem nada que ver, mas no fim da história é ele que tem de aprovar o decreto-lei. Esse decreto-lei foi aprovado com uma possibilidade regimental que era à distância, electrónica. Eu estava no início de férias e recebi um telefonema da ministra das Finanças a dizer: ‘Assunção, por favor vai ao teu email e dá o OK, porque isto é muito urgente, o BdP tomou esta decisão e temos de aprovar um decreto-lei.’ Como pode imaginar, de férias e à distância e sem conhecer os dossiers, a única coisa que podemos fazer é confiar e dizer: ‘Sim senhora, somos solidários, isso é para fazer, damos o OK.’ Mas não houve discussão nem pensámos em alternativas possíveis — isto é o melhor ou não —, houve confiança no BdP, que tomou uma determinada decisão.”
Assunção Cristas “critica um bocadinho esta coisa de não termos nada que ver” e depois se aprovar um decreto-lei, mas “a única coisa que podemos fazer é confiar” sobretudo se estamos em férias e “sem conhecer os dossiers”. Claro que “não houve discussão nem pensámos em alternativas possíveis”. É delicioso, é uma forma de governar que tem uma leveza que é toda CDS, “sim senhora, somos solidários, isso é para fazer, damos o OK”.
A teoria é então esta: nunca se discutiu em Conselho de Ministros nada sobre a banca, Passos Coelho entendia que isso era só com o governador do Banco de Portugal, que tinha reempossado. “Não me recordo de todos os detalhes, mas posso dizer-lhe isto garantidamente: nunca os temas da banca foram discutidos em profundidade em Conselho de Ministros”, acrescenta a líder do CDS. Em “profundidade” nem pensar. E explica: “Fazia parte da visão do primeiro-ministro. O primeiro-ministro sempre teve uma visão que é esta: a banca e o pilar financeiro do resgate eram tratados pelo Banco de Portugal (BdP), que tinha as funções de supervisor independente, e o Governo não deveria meter-se nessas questões. Esta foi sempre a visão do primeiro-ministro.” Conclusão final: “Portanto, o Conselho de Ministros nunca foi envolvido nas questões da banca” e “discussão em profundidade do problema do BES, das soluções, das alternativas, das hipóteses, isso nunca aconteceu.” Nunca, nunca, repete. Recapitalização da CGD? Nunca. Outros bancos? Nem pensar. A ministra das finanças era um túmulo. O coitado do Núncio só teve que fazer o contrário do que sempre defendera, aumentar os impostos, o que lhe foi “muito doloroso”. De banca, nada, nunca.
O argumento da inocência por incompetência tem no entanto um risco e quero avisar disso a ex-ministra. É que por vezes, pelo menos algumas vezes, as pessoas não gostam de ser tomadas por parvas. Houve então um Conselho de Ministros de um país que estava controlado pela troika, que tinha um programa para a recapitalização dos bancos com 12 mil milhões, e que só usou cerca de metade. Mas todos os grandes bancos estavam sem capital, ou seja, estariam falidos se não houvesse essa nacionalização indirecta e provisória. Em quase todos os bancos multiplicava-se evidência de jogos especulativos e movimentos suspeitos em offshores. Os prejuízos do BPN e do BPP acumulavam-se nas contas públicas. Mas o governo não registava ou não queria saber de movimentos internacionais de capitais e um dos maiores bancos estava em colapso – mas “discussão em profundidade do problema do BES, das soluções, das alternativas, das hipóteses, isso nunca aconteceu,” por que haveria de “acontecer”?
O facto é que o governo PSD-CDS, sabendo o que fazia, escolheu para Secretário de Estado um advogado especialista em transferências para offshores e deu posse a um governador do Banco de Portugal que lhe adiou a resolução do BES até depois da “saída limpa”, mesmo com o risco de permitir as fraudes de um aumento de capitais e de venda de produtos do Grupo aos depositantes.
Sabemos agora que, por milagre, isto sim é um milagre, as transferências que não foram inspeccionadas pelas finanças eram quase todas do BES no ano da sua falência, quase todas para o Panamá e para o Dubai, e que muitas eram da empresa para a qual Núncio trabalhara, tudo uma coincidência cósmica. Mas não, o governo ter uma “discussão em profundidade do problema do BES, das soluções, das alternativas, das hipóteses” isso nunca, nem pensar, cruzes canhoto. Eram só 80 mil milhões de euros de depósitos, que sentido teria discutir o “problema”?
Pois, o governo está inocente por ter sido incompetente. Não queria saber, não queria resolver. Hoje Assunção “critica um bocadinho esta coisa de não termos nada que ver”, mas “a única coisa que podemos fazer é confiar”. E digam-me lá os leitores se não é de “dar o ok”?
 
Ovar, 14 de março de 2017
Álvaro Teixeira

Dispensar a “ajuda” de Marcelo

(In Blog O Jumento, 14/03/2017)

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Por aquilo que se vai lendo na comunicação social e a crer nos ataques mais recentes de personalidades da direita ao Presidente da República, o governo de António Costa estará a ser levado ao colo por Marcelo Rebelo de Sousa. Como estas posições surgiram quando as sondagens do PSD entraram no vermelho, é de supor que partem do pressuposto de que o PS pode beneficiar eleitoralmente das posições públicas de Marcelo.
Se António Costa beneficia da boa relação com o Presidente da República, este também beneficia do bom relacionamento que Costa proporciona e da sua lealdade e simpatia. Tanto quanto se sabe a perigosa geringonça nunca lhe propôs para homologação presidencial qualquer diploma com normas inconstitucionais, mesmo nas chamadas questões fracturantes, pelo que não se pode afirmar que o parlamento tenha decidido algo que faça corar o Papa Francisco.
António Costa e o seu governo nada devem a Marcelo Rebelo de Sousa; nenhuma proposta parlamentar beneficiou do apoio da oposição graças à sua intervenção, o défice de 2016 não foi conseguido por medidas sugeridas pela presidência, as medidas mais duras do OE não beneficiaram de um apoio público de Marcelo e, tanto quanto se sabe, se Marcelo não sujeitou diplomas ao Tribunal Constitucional isso não se deveu a um fechar de olhos às diatribes de um governo extremista, mas simplesmente ao facto de este ser um dos governos que mais respeitou a Constituição desde que esta foi promulgada.
Quanto aos pobres que tanto parecem preocupar Marcelo de Sousa, ao ponto de o antigo conviva dos jantares nos palacetes de banqueiros famosos, de aquém e além-Mancha ter passado a ser a visita assídua dos manjares dos nossos sem-abrigo, incluindo as receitas de atum daqueles que deixaram a rua, é bom recordar que até têm beneficiado de algumas medidas deste governo, adoptadas por sua iniciativa e, nalguns casos, por pressão do PCP e do BE, sem que António Costa ande por aí a gabar-se do seu franciscanismo, a distribuir papo-secos durante a noite.
Começa a ser tempo de começar a meter os pontos nos is pois a democracia nada tem a ganhar com esta confusão a que a estratégia pessoal de Marcelo nos está a conduzir. Os governos só precisam dos presidentes quando dependem dos seus fretes, foi isso que sucedeu na relação entre Passos Coelho e Cavaco; se o Presidente e o Governo fizerem o que lhes cabe fazer, ambos têm a ganhar e acima deles o próprio país. Se os presidentes colaboram com os governos e se os governos respeitam os presidentes, mais não fazem do que cumprir com a sua obrigação, é para isso que são eleitos. É isto o normal e não andar a ver vacas a rir ou a mandar a comunicação social noticiar escutas a Belém, e não é Marcelo que é fora de série, foi Cavaco que foi mau demais.
A esquerda não precisa de “fretes” por parte de Marcelo e ninguém tem dúvidas de que se as coisas correrem mal o Presidente será o primeiro a demarcar-se do governo. Ao contrário do Presidente da República o governo tem um programa que apresentou aos eleitores e que submeteu ao parlamento e é pela forma e pela competência com que o cumpre que será avaliado pelos eleitores, tudo é mais transparente sem elogios num dia e porradinhas presidenciais no outro.
Não é saudável para a democracia, até se pode questionar se reflecte valores democráticos, ter uma oposição condicionada por um Presidente da República de quem se diz que não gosta do líder da oposição ou que esteja condicionado por alcunhas menos dignas como o “cata-vento”. Pode parecer simpático para o governo, mas se um governo é competente deve dispensar estes jogos. Em democracia um presidente não pode andar a escolher ou a derrubar governos e muito menos a condicionar lideranças partidárias. Se assim for teremos uma democracia de opereta com Marcelo armado em maestro.
Ovar, 14 de março de 2017
Álvaro Teixeira

O BES e as férias de Cristas: Catarina Martins perplexa com entrevista ao PÚBLICO

À margem da visita ao bairro Padre Cruz, em Carnide, Lisboa, a coordenadora do BE considerou “de uma extraordinária gravidade” que o anterior Governo “nunca” tivesse “discutido os problemas da banca em Conselho de Ministros”.

 
    • Catarina Martins no bairro Padre Cruz, em Lisboa.
 
Catarina Martins no bairro Padre Cruz, em Lisboa. LUSA/ANTÓNIO COTRIM
“Assunção, por favor vai ao teu email e dá o OK, porque isto é muito urgente, o BdP tomou esta decisão e temos de aprovar um decreto-lei”. De repente, durante umas férias, Assunção Cristas recebe um pedido da ministra das Finanças, quando estavam ambas no Governo e a braços com o caso BES. “Sem conhecer os dossiers”, explicou a líder centrista, a única coisa que fez foi “confiar”.
Esta é apenas uma das partes da entrevista da centrista Assunção Cristas ao PÚBLICO, que já motivou piadas nas redes sociais e que deixou a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, de boca aberta. Mas há mais: “Não há ninguém que não fique perplexo e preocupado quando uma ministra nos diz que o Governo de que fez parte, que estava no furacão de uma crise financeira, nunca discutiu os problemas da banca e do sistema financeiro no Conselho de Ministros”, disse a bloquista, nesta terça-feira de manhã, à margem de uma visita bairro Padre Cruz, em Carnide, Lisboa.
Nem BES, nem Banif, nem CGD: “O Conselho de Ministros nunca foi envolvido nas questões da banca”


“É de uma extraordinária gravidade que PSD e CDS, que impuseram todo o tipo de sacrifícios à população por causa de uma crise financeira e do sistema financeiro que o país atravessava, nunca tivessem discutido os problemas da banca em Conselho de Ministros”, insistiu.
A deputada bloquista comentava a entrevista de Assunção Cristas ao PÚBLICO, na qual a ex-ministra do anterior Governo de direita afirmou ainda que “o assunto BES nunca foi discutido em Conselho de Ministros com profundidade”. Acrescentou que foi apenas referido e que “discussão em profundidade do problema do BES, das soluções, das alternativas, das hipóteses, isso nunca aconteceu”.
Mas Catarina Martins está também estupefacta com o episódio das férias: “Confesso que é também com muita estupefacção que alguém que foi ministra diz que assinou de cruz, ou seja, sem ler, sem conhecer algo de uma importância tão grande e com custos tão grandes para o país como a resolução do BES. Eu acho que sobre a natureza do anterior Governo estamos conversados. Quando o problema era a banca, nunca discutiram a banca em Conselho de Ministros”, continuou a bloquista.
A deputada do BE não compreende como pode uma ex-ministra mostrar esta “irresponsabilidade” num caso como o do BES: “Quando a decisão mais cara que tomaram para o país foi a resolução do BES, houve ministros que assinaram de cruz sem sequer ler o documento. O problema é que o Governo já passou e nós continuamos até hoje a pagar os custos desta enorme irresponsabilidade e incompetência”, afirmou, garantindo que o Bloco de Esquerda estará atento ao que se passa no sistema financeiro em Portugal, nomeadamente ao alerta da auditora KPMG para o facto de a Associação Mutualista Montepio Geral, dona da Caixa Económica (banco Montepio), ter capitais próprios negativos e necessitar de ser recapitalizada.
Na entrevista ao PÚBLICO, quando questionada sobre se repetiria a resolução tomada no caso BES, Assunção Cristas voltou a insistir que o anterior executivo não discutiu “os cenários possíveis” no Conselho de Ministros. E foi nessa passagem que contou que estava de férias quando recebeu um telefonema de Maria Luís Albuquerque: “Eu estava no início de férias e recebi um telefonema da ministra das Finanças a dizer: ‘Assunção, por favor vai ao teu email e dá o OK, porque isto é muito urgente, o BdP tomou esta decisão e temos de aprovar um decreto-lei’. Como pode imaginar, de férias e à distância e sem conhecer os dossiers, a única coisa que podemos fazer é confiar e dizer: ‘Sim senhora, somos solidários, isso é para fazer, damos o OK.’ Mas não houve discussão nem pensámos em alternativas possíveis — isto é o melhor ou não —, houve confiança no BdP, que tomou uma determinada decisão”.
 
Ovar, 14 de março 2017
Álvaro Teixeira

O que se passa agora na Holanda?

 

A opinião de
Francisco Sena Santos
Francisco Sena Santos

Ninguém na Europa estaria a ligar às eleições desta quarta-feira na próspera, pacífica e tradicionalmente libertária Holanda e a ficar nervoso à espera dos resultados se não fosse esta personagem com cabeleira que faz lembrar os compositores clássicos do século XVIII: Geert Wilders. A única conhecida ligação dele à música passa por ter sido membro fugaz de uma banda punk. O que inquieta em volta desta figura é o facto de num país com história de enorme tolerância, ele agitar a intolerância dos eleitores ao ponto de o seu xenófobo Partido para a Liberdade (PVV), de ultradireita anti-sistema, aparecer creditado com a probabilidade de ser o mais votado nestas eleições.

A Holanda é um país no topo dos padrões de qualidade de vida na Europa. A maioria dos holandeses vive sem grandes preocupações económicas. O país tem invejável sistema de segurança social, emprego bem remunerado e desemprego à volta de 5%, e a economia a recuperar bem da crise financeira e a crescer 2,3%. Amesterdão tem sempre sido uma das metrópoles mais cosmopolitas da Europa, um paraíso para os consumidores de erva. A Holanda, progressista nos costumes, é pioneira na igualdade de género, na emancipação gay e lésbica, no direito à eutanásia e foi terra de acolhimento de refugiados e migrantes em geral de tantas partes do mundo. Tantos cabo-verdeanos têm tido a Holanda de braços abertos para os acolher. A Holanda é um país de mercadores, virados para o comércio – o porto de Roterdão é porta principal de entrada na Europa a partir do mar. Um povo maioritariamente protestante mas com tradição de grande abertura às outras religiões.

O que se passa agora para que um chefe político isolacionista que quer acabar com a moeda e a união dos europeus apareça no topo das preferências? Os holandeses estarão a perder o espírito de abertura e convivência?
É reconhecido o problema de identidade. Muitos holandeses temem que a sua velha cultura burguesa seja engolida pelos costumes de outras paragens. Temem que o Islão passe a ter demasiado peso na sua terra. Os holandeses não se tornaram subitamente xenófobos e racistas. O problema é que o número de imigrantes cresceu demasiado e um número significativo não conseguiu integrar-se na vida holandesa.
O começo deste século tem um momento marcante na Holanda: às 8 da manhã de 2 de novembro de 2004, Theo Van Gogh foi assassinado à porta de casa com oito tiros de pistola. Este Van Gogh, descendente de um irmão do genial pintor, tinha realizado um filme de denúncia do fundamentalismo islâmico. Foi assassinado por um fundamentalista com dupla nacionalidade, marroquina e holandesa. Ficou aberta a ferida da intolerância no país da tolerância.
Agora, chefes políticos como Wilders associam os migrantes do sul muçulmano a ameaças de criminalidade. Invocam o número desproporcionado de magrebinos com envolvimento em crimes. Esse discurso, uma versão Trump antes ainda de Trump, cavalgou sobre uns 20% do eleitorado holandês. Colou-se ao descontentamento generalizado com o funcionamento da União Europeia: onde está a Europa social? Onde está a eficácia no controlo democrático das decisões da Europa de Bruxelas? Onde está a defesa dos valores da cultura europeia? Onde está a Europa dos cidadãos? Onde está o combate por mais igualdade? Os resgates dos bancos estão a ser pagos pelas pessoas, as crises sucedem-se, o sentimento de pertença esvai-se. O desprestígio das elites políticas alastrou pela Europa e vários partidos tradicionais em diferentes países aparecem carcomidos pela corrupção interna. A Europa política parece uma terra de ninguém.
Assim está a crescer por toda a Europa a tendência para o voto de protesto. Num ano de cruciais eleições na Europa os holandeses são os primeiros a pronunciar-se, cinco semanas antes dos franceses e cinco meses antes dos alemães.
Os holandeses inauguram um ciclo político que no espaço de meio ano vai medir o peso dos que querem a implosão da União Europeia. Está no ar o temor de que o auge de uma força política como o partido de Wilders num país que é pátria de Erasmo e Espinosa possa marcar tendência, alentada por Trump nos EUA, e ser prenúncio para a reversão do sistema liberal que tem funcionado na Europa. Subestimar a ameaça é impensável, a questão é para ser levada a sério mas o medo talvez seja excessivo.
Do voto holandês, implicando 28 partidos, como sempre, resultará um governo de coligação. Nenhum partido vai ter mais de 30 lugares no fragmentado parlamento com 150 assentos. Parece seguro que Wilders não tem qualquer possibilidade de chegar ao governo da Holanda porque ninguém quer coligar-se com ele. Aliás, percebe-se que Wilders prefere a ideia de permanecer como partido de protesto sobrepondo-a à hipótese de qualquer compromisso. O que sobressalta é o facto de tanta gente poder aderir ao discurso ultranacionalista do populista de um chefe político que ambiciona o retorno ao estado-nação. Ele quer o regresso das fronteiras, fechar as mesquitas, proibir o Corão e limitar o número de estrangeiros no país, a par da redução da muito expressiva solidariedade e ajuda externa holandesa.
Mas o partido de Wilders está isolado no parlamento e assim vai continuar.
Depois do anunciado divórcio entre o Reino Unido e a Europa e da eleição de Trump, este 2017 chegou com a ameaça de ser o ano em que os populismos levam a melhor. Talvez, afinal, haja boas notícias: em França, Le Pen está a ficar para trás, na Alemanha, os movimentos ultra caem nas sondagens que, por outro lado, dão crescimento ao social-democrata Schulz que poderá redimensionar a austeridade de Merkel. Na Holanda, a relevância de Wilders é evidente e incontestável, mas nas últimas sondagens ele está a ser apanhado pelo candidato liberal que lidera o governo e que tende a continuar como primeiro-ministro numa coligação de quatro ou cinco partidos onde os verdes serão quem mais cresce em peso político.
Wilders agita o fantasma de muitos medos. Talvez essa alguma perda de fôlego de Wilders também seja o resultado de um outro medo, o medo de que o voto de protesto leve ao desastre, e a Europa tem na memória demasiados desastres.
 
Ovar, 14 de março de 2017
Álvaro Teixeira