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terça-feira, 28 de novembro de 2017

O Pão

por Bruno Santos

©BS

Ícone indisputado do Cristianismo e corpo simbólico da sua doutrina, o Pão contém as características que fazem dele não um simples alimento, mas a representação da própria vida e do esforço da sua perpetuação, realidades que marcam toda a História da Humanidade.

O Pão constitui um último patamar da nutrição do corpo, o grau primário, mais singelo e indeclinável da sua sobrevivência orgânica. Diz-se “a pão e água” quando se quer significar os elementos básicos, simultaneamente primeiros e últimos, do sustento de um organismo que plana sobre a fronteira entre mundos, sobre a linha da falência e da morte.

Disse o Cristo, “tomai e comei, este é o meu corpo”, quando decidiu estabelecer sobre a sacralidade do grão que tombou na terra a primeira assembleia de Companheiros - precisamente aqueles que partilham o Pão - que viria a ter como desígnio a transmissão da Palavra. Do Pão da Palavra Pedra. Do Pão nosso de cada dia.

Depois veio o dia em que o preço do Pão material atingiu o patamar da brutalidade e os patrões dos padeiros - eternizados no século, antes do almoço, por Pinheiro de Azevedo - decidiram aumentar não o peso do Trigo ou do Centeio em cada molete, mas vinte por cento o preço da carcaça. Vinte por Cento.

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Uma erva daninha com forma humana

por Ana Moreno

Manifestante contra o glifosato. Foto: Reuters

Ora pronto, acabou a dança, via livre para dar continuidade à destruição da biodiversidade vegetal e animal, à contaminação dos lençóis freáticos, à redução da fertilidade natural do solo, à agricultura intensiva e ao ataque à saúde pública: O Comité de Recurso da União Europeia (UE) deu ontem "opinião positiva" à proposta de renovação por cinco anos do uso do glifosato, com uma maioria qualificada de 18 Estados-membros a favor e a abstenção de Portugal.

Era de esperar? Sim, era de esperar que os lobbiistas pudessem ontem fazer estalar a rolha das garrafas de espumante brindadas pelos chefes. Mas ainda assim... como ocorreu esse prodígio, se ainda há cerca de duas semanas não tinha sido possível conseguir uma maioria favorável para aprovação do prolongamento da licença???   Ler mais deste artigo

Homens e mulheres vendidos a €336: sim, esta é uma notícia de 2017 e as nações reuniram-se de emergência

por estatuadesal

(Joana Azevedo Viana, in Expresso Diário, 28/11/2017)

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Manifestantes junto à embaixada da Líbia em Marrocos em protesto contra a escravatura

Leilões de seres-humanos parece acontecimento de séculos obscuros de outrora mas a realidade é que são evidência também de 2017: uma reportagem da CNN alarmou o mundo e já chegou ao conselho de segurança da ONU, que se reuniu esta terça-feira para resolver o que Guterres considera ser “escandaloso” - há migrantes e refugiados a serem vendidos na Líbia para trabalho escravo. O mundo está doente.


António Guterres não poupou críticas quando, há uma semana, falou dos “horrendos” vídeos divulgados pela CNN a 14 de novembro, onde se veem migrantes africanos a serem leiloados na Líbia, alguns por 400 dólares (cerca de €336), para trabalharem como escravos em campos e plantações do país. Os leilões, que segundo o canal americano têm decorrido em pelo menos nove zonas da Líbia, “estão entre os abusos de direitos humanos mais escandalosos” da atualidade, declarou o secretário-geral da ONU. “Alguns podem corresponder a crimes contra a Humanidade.”

O embaixador de França nas Nações Unidas também manifestou esta terça-feira a sua indignação, após o conselho de segurança da ONU se ter reunido de emergência a pedido de Paris (o encontro começou ao cair da noite em Lisboa). “Temos de ir mais longe, muito mais longe para dizer ‘não’ a esta situação inaceitável”, declarou François Delattre em Nova Iorque. Questionado sobre possíveis sanções contra os responsáveis, garantiu: “Estamos focados em todo o tipo de medidas concebíveis para lutar contra este flagelo. Não excluímos nenhuma hipótese”.

Quem serão os alvos das potenciais sanções não se sabe para já. Sabe-se, em primeiro lugar, que os responsáveis diretos pelos leilões são os traficantes de humanos que se instalaram no país em ruínas de onde milhares de requerentes de asilo têm tentado partir para a Europa desde o início de 2016, quando Bruxelas fechou um acordo com a Turquia para desincentivar a ida de refugiados para o território comunitário.

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Manifestação na Suécia contra os leilões na Líbia

Falhanços

Desde 2015, mais de 1,5 milhões de pessoas do Médio Oriente e do corno de África chegaram ao continente em busca de asilo, empurrando os Estados-membros para braços-de-ferro diplomáticos; a Alemanha acolheu grande parte dos refugiados, cerca de um milhão de homens, mulheres e crianças, mas países como a Hungria e a Polónia rejeitaram as quotas de redistribuição propostas pela Comissão de Jean-Claude Juncker para aliviar a carga sobre os países de entrada na UE, Grécia e Itália. A isto juntou-se o Brexit, cuja campanha foi dominada pela crise de refugiados e migrantes.

As pessoas que já tinham chegado às ilhas gregas antes do acordo com a Turquia por ali ficaram até hoje, num cenário de corda bamba que piorou em julho, quando as regras de financiamento das organizações não-governamentais foram alteradas. Até então, os grupos a prestar apoio no terreno recebiam fundos do programa humanitário da UE, o ECHO; a partir de julho, passou a caber ao governo da Grécia, um país ainda na ressaca da crise financeira de 2008, encontrar meios para os financiar.

Isto aconteceu a par da multiplicação de chegadas à Líbia desde o início deste ano. Para arriscarem a perigosa travessia do Mediterrâneo central, na tentativa de entrarem na Europa através de Itália, muitas famílias do Senegal, Mali, Níger, Nigéria e Gâmbia têm estado a rumar até ao país. A maioria fica ali presa. As que têm dinheiro para pagar aos traficantes, uma minoria, arriscam-se a morrer em mar alto — em setembro, a rota Líbia-Lampedusa foi considerada a mais perigosa do mundo para refugiados; entre janeiro e julho, o mar já tinha engolido mais de duas mil pessoas.

“Se a segunda metade deste ano for igual à segunda e não forem tomadas medidas urgentes”, avisou na altura a Amnistia Internacional, “2017 será o ano mais letal na rota mais letal de refugiados do mundo. A UE está a falhar no que toca a recursos adequados e a operações humanitárias perto das águas territoriais da Líbia. Em vez disso, está a focar-se no reforço das capacidades da guarda costeira líbia para impedir partidas e interceptar [botes com refugiados].”

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Pressões

Como apontava a AFP esta terça-feira de manhã, os leilões como aquele que a CNN filmou em Tripoli “estão a levantar questões sobre se os acordos de migração da UE destinados a reduzir as travessias do Mediterrâneo estão, na verdade, a transformar os traficantes de humanos em mercadores de escravos, à medida que crescentes números de migrantes dão por si encurralados na Líbia, sem dinheiro, desesperados e vulneráveis”.

Desde o início deste ano, os Estados-membros da UE têm concentrado esforços em treinar a guarda costeira líbia — não sem críticas, com a ONU a denunciar no início deste mês o facto de esse treino estar a resultar no retorno forçado de migrantes a prisões “horríficas” do país. Também têm tentado alcançar acordos bilaterais com os países de origem destas pessoas ao estilo do acordo com a Turquia, através de negociações com a União Africana.

Esta semana, os 55 países africanos vão estar reunidos com as 27 nações da UE na Costa do Marfim para uma cimeira dedicada à migração, que contará com a presença de Guterres e que deverá ser dominada pela recente denúncia da CNN. Com a Líbia já a investigar o caso — após o secretário-geral da UA, Alpha Conde, ter manifestado a sua “indignação” com as imagens —, ONG e analistas estão a aproveitar para lembrar os dirigentes que o assunto não é novidade.

Na sexta-feira, em declarações à AFP, uma analista senegalesa do think-tank L’Afrique des Idées sublinhava que, “aparte as pessoas comuns, toda a gente sabia disto — governos, organizações internacionais e líderes políticos”. A crítica de Hamidou Anne foi repetida no mesmo dia por Alioune Tine, diretor do programa da Amnistia para a África Ocidental: “Estamos a alertar para estes episódios de escravatura na Líbia há muito tempo”.

Uma traição. Uma nódoa. Um sinal

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/11/2017)

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Em março de 2012, Henrique Gomes demitia-se do governo de Passos Coelho. O secretário de Estado da Energia tinha defendido a introdução de uma contribuição especial sobre as rendas excessivas na produção de energia. A sua proposta foi inviabilizada e ele percebeu até que ponto a austeridade tinha só alguns destinatários e a EDP era capaz de travar qualquer vontade de mudança. António Mexia não teve, aliás, qualquer problema em deixar passar a ideia de que tinha sido a EDP a travar os ímpetos reformistas do temerário secretário de Estado.

A Contribuição Extraordinária para o Sector Energético (CESE) acabou por ser criada em 2013, por imposição da troika. Face à crise financeira, até os sisudos visitantes se aperceberam que as rendas das empresas de energia oneravam os consumidores de uma forma despropositada e injusta. Com efeitos na economia. Aliás, quando se fala dos custos de trabalho para as empresas, dos mais baixos da Europa, lembro-me sempre de custos de contexto como os da energia, dos mais altos da Europa. Depois da partida da troika, a GALP e a REN foram para tribunal para tentar extinguir esta contribuição e, em 2017, perante a irredutibilidade do governo, a EDP decidiu fazer o mesmo. A CESE mantém-se porque ela nada tem a ver com a crise financeira. Ela pretende recuperar parte das rendas que as antigas empresas públicas arrecadam. No entanto, as energias renováveis, as mais subsidiadas de todas, ficaram de fora.

Neste Orçamento de Estado o Bloco de Esquerda quis alargar a CESE às renováveis. Esta era pelo menos a sua proposta inicial. Acabou por propor um corte no subsídio, o que até teria um efeito mais automático na fatura paga pelos consumidores, já que ele é incorporado na tarifa quando o regulador define o preço final.

Ao dar o dito por não dito sobre uma proposta já acordada o governo traiu um aliado, pondo em causa acordos futuros. Esta cedência a uma empresa de energia milionária e subsídio-dependente é especialmente lamentável no momento em que se aprovou um orçamento globalmente positivo

Numa fase inicial, este tipo de energia precisou de fortíssima subsidiação pública. Preferia que esse tipo de apoio se tivesse feito com uma EDP totalmente pública. A necessidade dele existir em larguíssima escala prova, aliás, que Portugal devia ter empresas de energia do Estado. Assim não sendo, esta foi a única forma de garantir um investimento indispensável para o nosso futuro. Mas essa necessidade esgotou-se. A energia renovável é hoje bastante rentável. Tão rentável que gera um lucro de quase 60 euros por MWh, que contrasta com os 14 em Espanha ou os 19 nos EUA. Tomando os preços da EDP-R como referência para todo o sector, se pagássemos os valores médios cobrados pela EDP-R nos mercados em que atua, sairiam das faturas 400 milhões de euros em cada ano.

Os novos investimentos nesta área já não têm direito a subsídio público. E isso não impede que haja interessados e que este negócio seja florescente. Pior: o governo anterior permitiu em 2013 que, mediante uma modesta “contribuição” antecipada por parte das empresas, a subsidiação dos preços se estendesse por mais 7 anos, com perdas futuras globais de 800 milhões de euros para os consumidores. Além disso, há várias licenças concedidas há vários anos, ainda por implementar e sem prazo para extinção, que contarão com este apoio. De cada vez que um projeto destes avança a nossa fatura fica mais alta. A mais alta de toda a Europa. Em resumo: nem as renováveis precisam deste apoio nem o país se pode dar ao luxo de pagar a uma das mais lucrativas empresas portuguesas uma renda milionária. A EDP está a estrangular, com esta mesada, a economia nacional e o bem estar dos portugueses. A proposta do BE permitiria canalizar 250 milhões de euros que são gastos a apoiar o que não precisa de apoio para a redução das tarifas e do défice tarifário.

A proposta do Bloco de Esquerda não surgiu do nada. Não foi uma surpresa. Foi consensualizada com o Governo. E, resultado dessa negociação, aprovada na especialidade por PS, BE, PCP e PEV, com a abstenção do PSD. Até que, já fora do prazo, o PS a fez voltar ao Parlamento para a retirar do Orçamento.

Nem precisaria de debater a bondade da proposta apresentada pelo BE para considerar miserável o comportamento do Governo. Devo dizer que considero que o BE até foi manso. Não é possível ter um compromisso com quem é incapaz de manter a sua palavra. A justificação dada – que tinha havido um engano na votação – é pura e simplesmente falsa. Houve negociação, acordo e recuo. Depois disso não houve um engano, houve outra coisa qualquer. No PS fala-se de terem subitamente descoberto que tal medida levaria a perdas em tribunal, como levou em Espanha. Se assim foi, o amadorismo começa a assustar-me. Mas isso levaria, quanto muito, à busca de uma outra solução, e não a esta monumental e desleal cambalhota.

Como qualquer governo, este já cometeu muitos erros. Andamos há semanas a matraquear em assuntos menores, casos irrelevantes, episódios que ninguém recordará na memória. Mas este erro tem outra dimensão.

Ao dar o dito por não dito numa matéria já acordada o Governo traiu um aliado, pondo em causa acordos futuros. E deixou transparecer o pior do bloco central: a sua subserviência a um capitalismo rentista que impede o país de se desenvolver. Depois dos primeiros dois anos, em que este governo não teve medo de enfrentar os interesses de uma empresa de energia milionária e subsídiodependente, esta cedência é um preocupante sinal, especialmente lamentável no momento em que se aprovou um orçamento globalmente positivo.

E para isso, até eu o digo, não pode contar com o BE e o PCP. É neste tipo de assuntos que os dois partidos devem ser muito claros: se os ministros querem ser funcionários de empresas privadas mudem de ramo e não lhes peçam o voto.

Afinidades eletivas no que mais importa!

por estatuadesal

(Por Jorge Rocha, in Blog Ventos Semeados, 29/11/2017)

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Só os intelectualmente desonestos poderão discordar de ter pertencido a Pedro Nuno Santos o melhor discurso de entre os que se proferiram no último dia de discussão do orçamento para 2018. Com Cristas a escusar-se de ir a jogo, coube a Passos Coelho ficar com o palco da oposição só para si na tentativa de se despedir  - esperemos que ad eternum! - da liça parlamentar.

Foram minutos demasiado longos para debitar o testamento político, que constitui triste acervo do que significa ser um homem inevitavelmente datado, preso num tempo que julgou ser seu, mas mais não foi do que o da sua interpretação de um desempenho de que foram outros a manipularem-lhe os fios de incompetente marioneta.

Esse tempo nem sequer aos titereiros acabou por pertencer por muitos danos, que tenham feito aos bolsos de quase todos: usufruíram de uma oportunidade única para mudarem o rumo do país, e não estiveram longe de o conseguir, mas a derrota de outubro de 2015 deve-lhes ter tirado as ilusões por muito tempo. É que, se ainda têm em seu benefício as leis laborais e as rendas das grandes empresas, que o governo não pôde agora limitar, muito do que eram as suas «reformas» foram pelo cano do esgoto abaixo, e a atual maioria parlamentar demonstrou que resultam outras, as que significam melhores condições de vida para a generalidade da população, em vez dos cortes, das desregulamentações e das privatizações em que assentavam o desígnio de empobrecerem de vez a maioria para que uma minoria plutocrata pudesse florescer.

Ouvidos os discursos de Mariana Mortágua e de João Oliveira há muito neles, que merece reconhecimento de terem razão, mas estamos numa conjuntura em que não são os únicos dela detentores e, provavelmente, o argumento de Carlos César em como se quer ir ao encontro das aspirações por eles formuladas, mas não se pode avançar demasiado depressa sob pena de pôr em causa tudo quanto se conquistou, é capaz de fazer muito maior sentido.

Não enjeito o desconforto com alguns momentos menos bons verificados nas últimas semanas, mormente quanto à forma como se anunciou a transferência do Infarmed ou ter-se desdito segunda-feira o que na sexta-feira anterior era dado como certo, mas a grande questão é esta: confio ou não na lucidez de António Costa para prosseguir neste rumo que ficou tão bem rastreado no discurso de Pedro Nuno Santos? Dois anos depois confio, e mais ainda do que já o afirmava então!

Daí que não dê grande relevância à expressão fechada de Catarina Martins, nem às palavras acusatórias de Mariana Mortágua. Ou ao facto de Jerónimo de Sousa continuar a afiançar que continuam a implementar-se políticas de direita, apenas mitigadas pelas correções conseguidas graças ao PCP e ao PEV. Tais posições decorrem da retórica parlamentar envolvendo partidos, que apoiam, mas não estão no governo. Embora também julgue dispensável a exagerada profissão de fé de Carlos César nos argumentos, que deles se distingue o PS.

Continuo a acreditar e ouço muitos militantes e simpatizantes socialistas defender que, em equipa que vence não se mexe. Razão para que, chegado o fim da legislatura e recomposta a Assembleia após novo escrutínio eleitoral, faça todo o sentido que a maioria parlamentar continue a contar com os seus atuais participantes, haja ou não condições para que um ou mais de entre eles possa saltar do consenso sem prejuízo de uma maioria para governar.