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sexta-feira, 23 de março de 2018

Medo. Muito medo!*

Quinta Emenda

Tenho o direito de ficar calado. Mas não fico.

Eduardo Louro

  • 23.03.18

Resultado de imagem para caos democracia medo

Há muito que muita gente desconfia das novas tecnologias e em particular das redes sociais. Uns por cepticismo militante, desconfiam de tudo e desconfiam mais de tudo o que é novidade. Não é a esses que me refiro, até porque os coloco no mesmo saco dos outros, no outro extremo, que nunca desconfiam de coisa nenhuma e se entregam acriticamente, de alma e coração, a tudo o que de novo lhes apareça pela frente.

Outros porque vêm outros utilizá-las como janelas escancaradas para a sua vida, mesmo que para lá espreitem como espreitariam por qualquer buraco de fechadura. E outros porque, reconhecendo-lhe um potencial inesgotável, desconfiam da utilidade que a perversidade, nas suas mais diversas formas, lhe possa dar.

Notícias dadas esta semana por dois jornais de referência mundial, o New York Times e o London Observer, a partir de investigações que levaram a cabo, fizeram disparar todos os alarmes destes últimos.

Não deixaram apenas o Facebook em alvoroço. Em alvoroço e sem umas larguíssimas dezenas de milhares de milhões de dólares. Deixaram-nos com medo. Com muito medo. E no entanto apenas confirmavam aquilo que há muito corria: que o Facebook tinha sido usado para eleger Donald Trump, no ano passado, na América. A novidade, nestas notícias, é que identificou quem e como – uma empresa inglesa, a Cambridge Analytica, já a espalhar o negócio pelo mundo fora, pronta a intervir na manipulação de tudo o que seja eleições por todos os continentes – e através da apropriação dos dados de 50 milhões de americanos, utilizadores da rede, com o envolvimento de gente da ciência e da Universidade.

Sabe-se que o mesmo já tinha acontecido no Brexit. Que os catastróficos resultados do referendo à continuidade britânica na União Europeia tinham sido manipulados a partir das redes sociais. Que o mesmo aconteceu mais recentemente nas eleições no Quénia, ou acabou de acontecer em Itália. Disse-nos Matteo Salvini, o líder da extrema-direita italiana, quando, conhecidos os resultados, se apressou a agradecer: “Graças a Deus internet, graças a Deus redes sociais, graças a Deus Facebook.”

Olhamos para este fabuloso mundo da conectividade digital e vemos Trump, brexit… Rússia, Putin, cibercrime e ciberespionagem … Fake news… E temos medo. Muito medo…

Porque jornalismo sério, como este do New York Times e do London Observer, capaz de denunciar estes crimes contra a humanidade, a liberdade e a democracia, não passa já de um simples e raro resquício do passado…

* A minha crónica de hoje na Cister FM

Quando a pertença política do utilizador determina se estamos perante um escândalo ou perante um notável progresso

por helenafmatos

2008: a campanha de Obama era apresentada como o paradigma do futuro.  A Blue State Digital era um caso de sucesso e o activismo online uma aŕea nobre da tecnologia e da política. Obama ganhava pq tinha consigo  Chris Hugues um dos criadores do facebook e a todos isso ouro osbre azul: os jornais encheram-se de artigos que descreviam fascinados a forma como a campanha do cadidadato democrata soubera usar as novas tecnologias: «O site da campanha de Obama contou com mais de 1.400.000 endereços de email dos simpatizantes e sobre essa informação criaram-se aproximadamente 100.000 perfis de utilizador, escreveram-se mais de 50.000 entradas de blogs e escreveram-se aproximadamente 20.000 eventos relacionados com a campanha, a que outros entusiastas assistiram depois de tomarem conhecimento deles e de se informarem sobre os mesmos através deste meio. Se se somar a eficácia na criação e gestão da rede social, o resultado é uma poderosa máquina que funcionou quase por si mesma e constituiu um dos aliados mais importantes da campanha de Obama.»

Ladrões de Bicicletas

São eles que dizem

Posted: 22 Mar 2018 02:57 PM PDT

O europeísmo, que ainda domina uma certa social-democracia desta forma em franco declínio no continente, é uma máquina de fabricar ilusões políticas, de resto altamente complementar com a máquina europeia de fabricar liberalizações económicas com profundos impactos políticos.
Há quantos anos andam, sobretudo a partir do sul, com a história da mudança na Alemanha, da qual dependeria sempre tudo, incluindo a última hipótese de reformar o euro? Agora é que é: a repetição do mesmo, ou seja, a coligação das duas alas do partido exportador alemão, produzirá resultados diferentes.
Entretanto, reparem na fraude que foi a ideia de que o aprofundamento da integração equivaleria a uma partilha da soberania, incluindo no decisivo plano da política económica. Creio que são cada vez menos os que têm o topete de repetir tal ideia.
Enfim, o novo Ministro das Finanças alemão, oriundo do politicamente moribundo e ideologicamente colonizado SPD, já veio dizer ao que vem e de forma bastante clara: “um Ministro das Finanças alemão é um Ministro das Finanças alemão, a filiação partidária não tem qualquer papel”.

Dica

Posted: 22 Mar 2018 02:37 PM PDT

INE: Estatísticas da Saúde

Conselho a todos os jornalistas: de cada vez que ouvirem alguém propor alguma medida que implique recursos orçamentais públicos, perguntem-lhe duas coisas:
1) se fez ou consultou algum estudo de impacto dessa proposta e, se não, como é capaz de a propor assim, sem mais nem menos;
2) (no caso de ser um político de direita ou do PS) como se compatibiliza essa proposta com a sua concordância com o Tratado Orçamental - e a consequente obrigação de redução da dívida pública para 60% do PIB num curto espaço de tempo, o que obriga à existência de saldos orçamentais positivos.
É que, da última vez que se tentou compatibilizar os objectivos contraditórios, nomeadamente no que toca aos enfermeiros - hoje e amanhã em greve - as coisas não correram bem.
Veja-se os dados apurados pelo INE. Dos 1463 enfermeiros que, de 2012 a 2015, saíram do Serviço Nacional de Saúde, apenas 394 foram incorporados no sector privado. Os mais de mil enfermeiros restantes deverão ter abandonado o país, depois de formados com os nossos recursos. E vamos ver se voltam. Sobre a evolução recente do emprego público, consultar os dados da Direcção Geral da Administração e do Emprego Público. De Dezembro de 2011 a Dezembro de 2015, o sector perdeu quase 3500 pessoas, mas daí e até junho de 2017 ganhou mais de oito mil. E ainda fazem falta.  
Mas esta lógica aritmética pode ser enganadora. A constante supressão de recursos acarreta efeitos cumulativos que se reflectem em desarticulação de equipas, de serviços, de valências, com efeitos a prazo bem mais gravosos. Os cortes no passado ainda se reflectem na actividade de hoje, mal recuperadas. E essa avaliação cumulativa geralmente escapa à análise de curto prazo dos políticos.
E também aos jornalistas, que aceitam como boa qualquer declaração de políticos. Mesmo que sejam asneiras. Talvez o debate político suba de nível.

Hoje, no ISEG: «A crise vista pela Sociologia»

Posted: 22 Mar 2018 06:15 AM PDT

Primeira sessão do ciclo promovido pelo Colectivo Economia Plural e organizado pela Cultra e a Lisbon School of Economics & Management, hoje com João Carlos Graça. É a partir das 17h00, no Auditório 2 do Edifício da Rua do Quelhas (ISEG). Apareçam.

Um dia a limpar matas em Mação. Dúvidas, guerras com vizinhos e muito trabalho: valerá a pena?

22 Março 2018181

Vera Novais

João Porfírio

Capitão está em guerra com o vizinho, Felizardo cortou os eucaliptos e vai plantar cerejeiras, a mulher de Luís não quer ficar sem pinheiros. Em Mação, a lei da limpeza das matas mói mais que a chuva.

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— Porque é que está aqui a cortar estas árvores? — pergunta Luís Jana, técnico do Gabinete Técnico Florestal (GTF).

— Mandaram-me para aqui cortar. Acho que é por causa da limpeza das matas — responde Diamantino Nobre.

Não fosse a motosserra na mão e dificilmente se perceberia o que está ali a fazer aquele homem, porque não tem qualquer equipamento de segurança, à exceção de umas botas que quase lhe mostram os dedos dos pés de tão velhas que são. “Aqueles eucaliptos ali também são para cortar”, diz o técnico, apontando para as árvores junto à casa. Diamantino Nobre sabe disso. “Isto é de um”, diz, apontando para uma parcela de terreno. “Aquilo é de outro”, continua, apontando desta vez para a parcela ao lado. “Vou cortar tudo, mas não posso misturar a madeira.” Tudo, tudo, não, nos sobreiros não vai tocar, sabe que a lei não o permite.

A chuva voltou. Primeiro só umas gotas aqui e ali, depois uma chuva intensa. Diamantino Nobre continua o seu trabalho, com a motosserra o roçar no casaco todo roto. Podia ir embora se quisesse, trabalha por conta própria, passa as suas próprias faturas. Mas a chuva não parece intimidá-lo e por isso segue sozinho cortando eucaliptos que, embora altos, podem ser abraçados por um só adulto.



Diamantino Nobre faz os trabalhos que lhe pedem. Se em vez de cortares árvores lhe pedissem para apanhar azeitona também o fazia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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A motosserra de Diamantino Nobre é das poucas que se ouvem naquele lugar. A chuva dos últimos dias não tem deixado avançar o trabalho a um ritmo mais célere. Apesar de 15 de março ser o último dia do prazo imposto pelo Governo para a limpeza das matas, era claro que “o grosso do trabalho ainda está por fazer”, admite Luís Jana, durante a visita à várias aldeias do município.

Do cimo daquele pequeno monte é possível ver uma boa parte de Chão de Lopes, aldeia de Amêndoa, uma das freguesias de Mação, considerada prioritária no que diz respeito à limpeza das matas. Dali percebe-se o quão irregular é a paisagem: avistam-se espaços já limpos ao lado de espaços por limpar e muitas faixas de 50 e 100 metros, definidas pelo Governo (no Decreto-Lei nº 10/2018), ainda por tratar.

Uns metros mais abaixo do ponto onde nos encontramos, uma propriedade destaca-se. Dentro de um espaço murado um conjunto de pinheiros, todos da mesma altura, todos com a ramagem cortada até meia altura (como manda a lei) e com os matos limpos por baixo. “Parece um espaço ajardinado”, diz Luís Jana.

Descemos para ver de perto o trabalho feito. Luís Jana conhece o proprietário, mas o trabalho está concluído e não se encontra ninguém no local. É, aparentemente, um espaço perfeitamente cuidado, mas está rodeado de outras árvores menos cuidadas. Se lhe chegar um fogo de copa (que se propaga pelas copas das árvores e não junto ao solo), dificilmente se conseguirá salvar, lamenta o técnico.

Um pequeno pinhal que mais parecia um espaço ajardinado, com os matos limpos e os ramos cortados até meia altura do tronco — João Porfírio/Observador

Ver o fogo correr nas matas e aproximar-se de forma ameaçadora das aldeias não é novidade para a população do município de Mação. Pelo menos desde os anos 1980 que é assim. No ano passado a situação foi grave, mas já em 2003 tinham enfrentado um grande incêndio, que queimou metade do concelho. Desde aí que a Câmara Municipal tem criado uma série de iniciativas que incluem também limpar as matas. Assim, é fácil perceber que a maior parte das pessoas não precise de muita pressão para fazer as limpezas.

“Muitas pessoas já andavam a fazer a limpeza antes, mas assim que se falou na data de 15 de março passaram a ser mais”, disse Luís Jana. O problema foi que a imposição da data e a comunicação das regras levantou muitas dúvidas entre os proprietários. O GTF recebe telefonemas todo o dia, tenta ir aos locais, mas é praticamente impossível aceder a todos os pedidos. Além dos esclarecimentos por telefone, a equipa tem feito sessões de esclarecimento nas freguesias, publicado editais que afixa nos locais mais frequentados da aldeia e fez acompanhar as cartas da conta da água com folhetos de esclarecimento.

Além das dúvidas, os proprietários têm outras dificuldades. É praticamente impossível a muitos deles fazerem cumprir a lei: ou porque são idosos, ou porque não têm posses, ou porque a limpeza devia ser feita pelo vizinho e este não está sensível à questão. Luís Jana acredita que “a maior parte das denúncias [que chegar à câmara ou à GNR] vai partir dos vizinhos”.

“A maior parte das denúncias [que chegar à câmara ou à GNR] vai partir dos vizinhos.”

Luís Jana, do Gabinete Técnico Florestal

José Capitão e o vizinho que não quer limpar o terreno

É a principal queixa de José Capitão. A casa que tem na aldeia de Chão de Lopes há 15 anos está praticamente no meio das árvores. A faixa de 50 metros que a rodeia — que tem de ser limpa de matos e ter as árvores desbastadas — entra na propriedade de vários vizinhos. O homem de ar simpático conseguiu mobilizar todos os proprietários dos terrenos à sua volta a cumprir a lei, exceto um: o seu primo.

Entre o terreno onde está localizada a moradia de três andares do casal Capitão e outra parcela de terreno que lhes pertence, está o terreno do primo. Já em agosto de 2017, o casal tinha mandado abater os eucaliptos do terreno alheio com medo do fogo — tinha havido incêndios no concelho de Mação em julho. Cortaram, mas não os tiraram. E a lenha no terreno também tem de ser limpa, porque se mantém o risco de incêndio. Mas nem o terreno, nem a lenha pertencem a José Capitão, por isso não está disposto a gastar dinheiro para a tirar dali.



Maria Fernanda e José Capitão não querem árvores perto de casa e já falaram com os vizinhos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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“Perguntei ao primo se queriam vender ou trocar com o meu terreno. Mas o filho mandou responder que ficava tudo como estava”, conta José Capitão. Avisou o primo que vive em Lisboa quais as obrigações da lei, mas a resposta foi: “Levem-me para a prisão e tomem-me conta da mulher”.

José Capitão acabou de gastar 912 euros — diz-nos com precisão —, por 123 horas de trabalho a limpar e traçar a lenha dos cerca de quatro mil metros quadrados que possui. Moer o material cortado ficou mais caro, mas não teve alternativa. Os sapadores recusaram-se a fazer uma queimada e pagar aos bombeiros para o fazer poderia ficar ainda mais caro. A queima de sobrantes (os restos das limpezas) pode ser feita pelos proprietários, mas não está isenta de riscos. No dia 9 de fevereiro morreu uma pessoa no concelho de Mação na sequência de uma queima destas, contaram os técnicos, sem adiantarem mais pormenores.

Depois dos quase mil euros gastos, o homem de 66 anos não está disponível para gastar mais dinheiro num terreno que não é seu — o do primo —, mas teme que o fogo lhe chegue perto de casa. “Todo o verão, nunca saí daqui com medo que chegasse o lume”, recorda. “Nunca tinha visto o lume de perto. No ano passado fui ver e ia desmaiando.”

O primo de Maria Manuel que quer deitar fogo às silvas

Os técnicos da Câmara aconselham o casal preocupado a fazer uma participação ao município ou à GNR. Mas nem todas as queixas conseguem ter resolução. Que o diga Maria Manuel Bragança que vive perto de uma casa abandonada cheia de silvas. Se lhe chegar o fogo, arde tudo, mesmo à porta da mulher de 60 anos. Já avisou o proprietário, seu primo, que devia limpar aquilo. “Ele pediu um orçamento, mas não gostou do preço e disse que não gastava ali nem um tostão”, conta Maria Manuel Bragança enquanto nos serve ao balcão do café “O Zé Carlos”, em Aldeia de Eiras.



Maria Manuel Bragança tem medo que a casa do vizinho, em frente à sua, arda por causa das silvas que crescem sem regra

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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“Disse-me que em abril vinha cá e que deitava fogo a tudo. Mas eu já disse ao meu filho que se vir deitar fogo chamo a guarda”, diz a mulher, tão assustada quanto revoltada. “Ninguém na aldeia se tem recusado a limpar. Eles são os únicos.” Os habitantes da aldeia já estão habituados a limpar os matos e foi isso que salvou as casas quando o fogo andou lá perto noutros anos, garante Maria Manuel.

O problema é que a casa abandonada está localizada dentro da aldeia e a legislação de limpeza das matas só inclui a limpeza de 50 metros à volta de casas isoladas ou de 100 metros à volta dos aglomerados populacionais (com mais de 10 casas). Como a lei nada diz sobre os matos que crescem dentro dos aglomerados a câmara ou a GNR não têm mecanismos legais para atuar.



A casa está abandonada e as silvas crescem descontroladamente

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Luís Jana diz que a lei foi claramente feita por alguém que está sentado num escritório na metrópole e que nada sabe sobre as aldeias do interior — assim, como não entende que a maior parte das pessoas são idosos, têm dificuldade em compreender a lei e não têm acesso à internet. Neste caso, e noutros semelhantes, os técnicos da Câmara vão tentar aplicar a lei da salubridade, porque um espaço abandonado onde se deixe crescer mato é local ideal para se esconderem ratos e cobras e isso pode trazer problemas para a saúde pública.

O eucaliptal que se vai transformar num cerejal

A lei é clara na atribuição da responsabilidade da limpeza na faixa dos 50 metros à volta das casas ou na faixa de 100 metros à volta dos aglomerados populacionais: são os proprietários dos terrenos quem tem de limpar. “As pessoas têm de proteger aquilo que é delas”, concordou Sónia Oliveira, geógrafa da Câmara Municipal de Mação. “No ano passado, [durante o levantamento das situações prioritárias] percebemos que muitas pessoas achavam que era a câmara que tinha de fazer isso.”

Eucaliptos e pinheiros devem distar 10 metros entre as copas (1), para as restantes árvores basta quatro metros (2). Áreas agrícolas, jardins e outras árvores devem estar a cinco metros da casa — ICNF

Agora já sabem a quem cabe a responsabilidade. Mas, muitas vezes, os proprietários dos terrenos não têm nenhuma casa para proteger e quem teme o fogo são os donos das casas nos terrenos contíguos. E os problemas surgem quando os vizinhos não se entendem quanto à questão das limpezas. Que o diga Carlos Felizardo, que passou anos a fazer denúncias à Câmara de Mação sobre o eucaliptal do vizinho que não era tratado. Até que lhe caiu um eucalipto em cima da casa.

Agora, o comerciante de 50 anos está mais satisfeito. Conseguiu comprar o terreno ao vizinho, cortou todos os eucaliptos e já está a arrancar os cepos. Vai plantar cerejeiras. “Porque o meu primeiro negócio foi vender cerejas.” Só não lhe agrada a chuva, porque não deixa continuar com os trabalhos. “Pago 500 euros por dia pela máquina para tirar cepos que está ali parada.” Ainda antes de arrancarmos, queixa-se do terreno mais abaixo que ainda está dentro da faixa dos 50 metros. Mas aos técnicos da Câmara essa não parece ser uma situação preocupante.

“As pessoas têm de proteger aquilo que é delas.”

Sónia Oliveira, geógrafa da Câmara Municipal de Mação

Para Luís Jana e Sónia Oliveira, a lei como foi criada não faz sentido, as situações deviam ser analisadas caso a caso. Há proprietários que têm todo o terreno dentro das faixas de limpeza e que vão ficar sem nada. E, em algumas situações, isso não faz sentido. “Mas a Câmara aconselha a fazer a limpeza, porque a fiscalização não depende de nós e não sabemos como é que a GNR vai fazer”, diz o técnico do GTF.

Os pinheiros de Luís Aparício

A propriedade de Luís Aparício, na Aldeia de Eiras, é um destes exemplos. A casa tem pinheiros a quase toda a volta, mas nenhum a menos de cinco metros do edifício e nenhum com a copa sobre o telhado da casa — dois pontos frisados na legislação. O que os pinheiros não estão é a 10 metros uns dos outros. Luís Jana não vê necessidade de cortar os pinheiros mais antigos, com cerca de 30 anos, e que até já sobreviveram a dois incêndios que por ali passaram. Já os pinheiros jovens a rebentar ou aqueles que estão tortos e podem cair, esses sim, devem ser cortados.

Se o proprietário cortar as árvores jovens e tortas, limpar os matos por baixo destas e limpar as agulhas dos pinheiros caídas no telhado, já faz um bom trabalho para reduzir o risco de incêndio. Luís Aparício quer fazer mais: vai limpar uma faixa de 30 metros nos limites do terreno para proteger as árvores que estão junto à casa. “Este é um núcleo de pinheiros isolado e não se coloca o problema do fogo de copa”, acrescenta Luís Jana.

“A minha mulher já me disse que se cortarmos os pinheiros se vai embora daqui, que vai embora para Abrantes”, diz Luís Aparício, reformado no final do ano passado.



Luís Aparício mantém o espaço limpo e as árvores bem tratadas, mas a legislação é mais exigente

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No outro extremo estão as pessoas que estão satisfeitas com a possibilidade da limpeza e até limpam mais do que era preciso. “As pessoas têm medo”, dizem os técnicos. A própria Câmara Municipal, responsável por limpar uma faixa de cada lado das estradas municipais, limpa mais do que os 10 metros impostos pela lei. Já antes da publicação da lei de 2006 (Decreto-Lei nº 124/2006), o município de Mação tinha definido no seu Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios que as faixas a limpar seriam de 15 metros. Neste momento ainda não estão todas limpas, mas o município tem até final de abril para o fazer.

A limpeza da faixa ao longo das estradas é sempre da responsabilidade do município, ainda que isso implique entrar dentro de um terreno privado. Mas nem todos os proprietários sabem disso.



Alguns locais já têm um trabalho bem feito, por vezes até cortaram mais do que o necessário

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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A foice ferrugenta de António Pereira

Encontramos António Pereira, de 85 anos, debaixo de chuva a tentar limpar uma pequena parte do seu já pequeno terreno. Tem na mão uma foice de cabo longo, de lâmina ferrugenta, e tenta arrancar os tojos num espaço de pouco mais de 10 metros quadrados. Os eucaliptos, garante, não os vai tirar porque não pode, quem quiser que os tire. Mais acima, ainda no seu terreno, a limpeza é da responsabilidade da EDP— sete metros para cada lado da projeção vertical da linha de média tensão. Para lá disso, o terreno ainda é seu, mas António acha que já não precisa de limpar. Na verdade, António Pereira tem todo o terreno dentro da faixa de proteção às casas seja ela de 50 ou 100 metros.

O terreno tem cerca de oito metros de largo e uma dezena de metros de comprimento. Ao lado, em faixas iguais e ao longo da mesma estrada, estão os terrenos dos irmãos, resultado das partilhas que os deixaram sem terras que valessem a pena aproveitar. “Os meus irmãos não querem saber. Não vão limpar.”



António Pereira ouviu falar da legislação e acho que devia limpar o seu terreno

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Deixamos António Pereira, de foice ferrugenta na mão, a limpar a única porção do seu terreno que é da responsabilidade da Câmara por se encontrar dentro da faixa de 15 metros junto à estrada.

Limpar para tudo arder na mesma?

O Município de Mação cumpre a legislação. Aliás, três anos antes da lei de 2006 que prevê a limpeza das matas, já o concelho tinha criado um conjunto de boas práticas de prevenção, vigilância e combate aos incêndios. O vice-presidente da Câmara, António Louro, destaca algumas dessas medidas: as circulares de proteção à volta das aldeias, os equipamentos motobomba — com depósitos de 600 litros — que a população pode usar para combater os incêndios e os buldozers para combater os incêndios. Mas nem isso impediu que em 2017 ardesse 80% do concelho. “Apesar de todo o trabalho exemplar, nada disto resolve nada”, diz o autarca. A única solução é reequilibrar a paisagem, usando modelos de gestão que olhem para o território como um todo, gerindo todas as pequenas propriedades em conjunto.

O vice-presidente da Câmara Municipal de Mação é responsável pelos pelouros da da Prevenção de Fogos Florestais e da Protecção Civil — João Porfírio/Observador

Ao circular pelas estradas do concelho o cenário é sempre o mesmo: demasiadas árvores por metro quadrado e demasiado finas para terem qualquer valor. Não importa se são eucaliptos ou pinheiros, o fogo passa e queima tudo, e mais tarde tornam a nascer. Os proprietários nada fazem. Deixam-se crescer todos os pinheiros, tão juntos uns dos outros que não chegam a engrossar o tronco e ganham a alcunha de “pêlo de cão”. Chegam a estar oito mil pinheiros num hectare, em vez dos 1.500 que permitiriam uma boa produção de madeira, diz António Louro na sessão de esclarecimento na aldeia de Amêndoa. Os eucaliptos também crescem sem regra, rebentam de toiça (a partir da base) com três, quatro ou mais troncos, em vez de serem cortados para deixar só um ou dois e disso se tirar proveito.

A maioria das pessoas apenas deixa regenerar a árvore ou planta num compasso muito apertado, por isso o tronco tem um diâmetro pequeno e de fraca qualidade. “As pessoas nem sabem o que têm”, sublinha Luís Jana. “São os madeireiros que os contactam a perguntar se querem vender quando têm interesse na madeira.”

Esclarecer a população aldeia a aldeia

Dia 15 acabava o prazo para a limpeza das matas imposto pelo Governo. Acabava, mas não acabou. Logo pela manhã, o primeiro-ministro António Costa anunciou que não haveria multas até junho. Naturalmente, esta novidade é tema de conversa na sessão de esclarecimento em Amêndoa que decorre no mesmo dia. Mas o vice-presidente da Câmara avisa logo que não se pode relaxar com a novidade, é preciso continuar a trabalhar.

"Não estejam à espera de dizer que não estavam avisados porque isso não vai funcionar."

António Louro, vice-presidente da Câmara Municipal de Mação

“Não estejam à espera de dizer que não estavam avisados, porque isso não vai funcionar”, diz António Louro. Já em 2017, os técnicos do município tinham andado em todas as povoações a identificar as zonas onde haveria mais risco. Foram feitos 1.200 levantamentos e enviadas 970 notificações de limpeza aos proprietários, segundo os técnicos da câmara. Já este ano, a GNR fez um levantamento equivalente e identificou os casos muito preocupantes.

Para reforçar a imposição da lei, António Louro, responsável pelos pelouros da Prevenção de Fogos Florestais e da Proteção Civil, lembra as multas — que podem chegar aos cinco mil euros para pessoas singulares — e avisa que se a Câmara tiver de limpar terrenos que não sejam seus, os proprietários vão ter de pagar esse valor ao município.

Apesar da chuva que não pára de cair, o salão paroquial de Amêndoa enche. As mais de 90 pessoas presentes deixam os técnicos do GTF, que organizaram a sessão de esclarecimento, satisfeitos. João Fernandes, um dos técnicos, faz a apresentação mais formal, e não poupa as referências à informação que as pessoas podem encontrar na internet. António Louro, por sua vez, reforça e simplifica a mensagem para a audiência que terá uma média de idades acima dos 60 (ou 70) anos. O espaço está gelado, mas ninguém arreda pé durante a hora e meia que demora a sessão.



Juntaram-se mais de 90 pessoas no salão paroquial de Amêndoa para a sessão de esclarecimento sobre a limpeza das matas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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“A Câmara devia tratar de limpar à volta das aldeias”, diz uma das poucas pessoas presentes que interveio durante a sessão —os restantes preferem falar pessoalmente com o autarca no final. “A Câmara de Mação é a única do país onde isso já se fazia antes da legislação”, responde António Louro. “[Essa faixa] permite aos bombeiros esperar pelo fogo fora da aldeia”, diz o vice-presidente. Mas ainda há muito trabalho a fazer: das 120 aldeias do concelho só 30 a 40 têm essas circulares de proteção criadas pelo município.

O munícipe contra-ataca. Diz que essas circulares não têm os 100 metros que agora são impostos pela lei. Mas António Louro não tarda na resposta: “Tomara a muitos municípios terem conseguido pelo menos isso”. E lembra como uma destas circulares em torno de uma aldeia impediu que o fogo chegasse a uma serração. Os presentes conheciam bem a história.

Há outras duas situações que preocupam a audiência: as silvas que chegam ao telhado nas casas desabitadas (como no caso de Maria Manuel Bragança) e as árvores de fruto. Como os matos dentro dos aglomerados não estão contemplados nesta lei, o município está a tentar criar um regulamento próprio, garante o autarca. Quanto às árvores de fruto, essas não são para cortar.

António Louro dá um exemplo: “É escusado ter uma oliveira muito grande, que não esteja podada. Pode-se podar. Já cortar é um exagero. Mas se forem laranjeiras não há problema”.

Assim que a sessão termina, José Capitão junta-se a Luís Jana e Sandra Oliveira. A propriedade do primo cheia de eucaliptos ao lado da sua casa e a possibilidade de poder fazer uma denúncia da situação parecem ter estado o dia todo na sua cabeça. Quer saber onde é que pode encontrar a identificação do terreno e a quem se deve dirigir para fazer a denúncia. Os técnicos explicam-lhe que o mais fácil será encontrar a informação online e fazer a denúncia também pela internet. José Capitão não sabe usar esta tecnologia, mas é um homem desenrascado e já sabe a que vizinho vai pedir ajuda.

Corrigido: o tamanho do terreno de José Capitão

As 5 contradições entre o ex-secretário de Estado Jorge Gomes e os peritos dos fogos

23/3/2018, 0:19

A defesa que o ex-secretário de Estado Jorge Gomes fez das suas decisões - sem informar o Governo - obrigou a comissão técnica a recuar. Veja as 5 contradições entre o ex-responsável e o relatório.

PAULO NOVAIS/LUSA

Autores

João Guerreiro diz que está a “analisar” a nota de esclarecimento que o próprio ex-secretário de Estado lhe fez chegar por e-mail, na quarta-feira à noite, e considera que, “logo que possível”, a comissão de especialistas vai voltar a olhar para as conclusões que ficaram plasmadas no relatório apresentado esta semana na Assembleia da República. Jorge Gomes queixa-se de não ter sido ouvido pela comissão técnica independente na elaboração deste relatório, quando era ele que na altura dos incêndios de outubro estava no terreno a comandar as operações enquanto secretário de Estado da Administração Interna.

“Não tem sentido um documento destes estar em discussão pública quando foram levantadas estas questões” sobre as sucessivas recusas do Governo para alocar mais aviões e helicópteros e convocar mais bombeiros para o combate às chamas, diz o presidente da comissão técnica. João Guerreiro admite que alguma da informação do relatório “não esteja totalmente correta” mas garante que todos os dados se baseiam em “informação oficial”cedida aos especialistas pelos diversos intervenientes e entidades envolvidas no combate aos incêndios.

Em cima da mesa está a possibilidade de o grupo de peritos rever as suas conclusões sobre este ponto do relatório.

Tudo o que sejam questões que possam não estar bem esclarecidas no relatório, acho que temos o dever de clarificar isso rapidamente para não complicar a discussão sobre os reais problemas que estão presentes, porque esses é que interessam”, acrescentou o presidente da comissão independente, em declarações à agência Lusa.

As declarações que surgiram ao fim do dia, bem depois do deadline que Jorge Gomes tinha dado à comissão técnica para que corrigir aquilo que classificou de “dados falsos”. O ex-secretário de Estado só falou depois de perceber que João Guerreiro continuava sem retificar os números divulgados. Avisou o grupo parlamentar socialista, questionou a direção da bancada sobre a sua decisão e, não tendo sido levantados obstáculos, avançou com declarações aos jornalistas que vieram pôr diretamente em causa uma das principais conclusões do relatório técnico: a falta de resposta do Governo face aos pedidos da Proteção Civil.

O ex-secretário de Estado avançou com as declarações públicas a contestar o relatório depois de ter explicado as suas razões na reunião da bancada socialista. Mas fê-lo sem antes contactar o Governo, que soube das suas declarações depois de o próprio ter dito aos colegas de bancada que ia pôr o documento em causa. Nessa reunião de deputados do PS, a ex-ministra da Administração Interna também entendeu falar do relatório técnico, evidenciando um tom crítico, ainda que apontando um ponto diferente.

Constança Urbano de Sousa não fez declarações públicas sobre o assunto, mas na reunião do grupo parlamentar interveio debruçando-se principalmente sobre dados que surgem na página 107 do relatório e que referem situações em que o tempo de resposta ao incêndio de 15 de outubro terá ficado aquém das necessidades. Nessa página, o documento conclui que “atendendo ao desfasamento entre os momentos de eclosão e de deteção do fogo, o ataque inicial terá na maioria das situações decorrido quando a cabeça do incêndio não podia já ser controlada, independentemente da capacidade e quantidade de meios empregues”. E isto devido às condições meteorológicas que faziam com que em cerca de 17 minutos a “intensidade da cabeça do incêndio” tivesse já superado “a capacidade de controlo por meios aéreos”.

A ex-ministra tentava, assim, fazer vingar o ponto que tem defendido: que independentemente dos meios, foram as condições meteorológicas em que ocorreram os fogos de outubro que os tornaram incontroláveis. Contactada pelo Observador sobre a posição que foi tomada por Jorge Gomes e sobre a sua própria opinião sobre o relatório, Constança Urbano de Sousa recusou fazer qualquer comentário.

Especialistas não cruzaram informações com o Governo

Questionado pelo Observador sobre as questões levantadas pelo ex-secretário de Estado da Administração Interna, João Guerreiro desvaloriza o impacto que essas eventuais incorreções tenham no documento. “O relatório foi publicado e há dúvidas e comentários que são feitos, tal como aconteceu com o primeiro relatório” sobre o incêndio de Pedrógão Grande (elaborado pelo mesmo grupo), diz o ex-reitor da Universidade do Algarve, que também coordenou esse trabalho. Os pontos contestados vão ser “analisados sem qualquer tipo de problema”, garante.

João Guerreiro não vai mais longe. Mas uma fonte do conselho dos 12 especialistas que funcionam junto da Assembleia da República ajuda a clarificar este ponto:

Fizemos fé nas declarações e na documentação que nos foi apresentada pelo segundo comandante” de operações, Abílio Tavares, diz um perito ao Observador.

Não houve, portanto, confrontação daqueles dados com outros intervenientes do Governo, tal como não foi ouvido o ex-secretário de Estado, diretamente envolvido naquelas decisões. A mesma fonte da equipa que elaborou o relatório admite algumas hipóteses para explicar eventuais “falhas”: ou a informação apresentada pelo segundo comandante não estava completa, ou a informação que chegou às mãos dos especialistas não foi analisada na íntegra.

O Observador tentou saber junto da ANPC e também do Ministério da Administração Interna que propostas — daquelas que o relatório menciona — tinham chegado ao Governo e que resposta tinha sido dada pela tutela. Mas nem um nem outro interveniente responderam às questões.

Ministro Eduardo Cabrita não pôs relatório em causa

A defesa pública das decisões do Governo antes e durante o combate ao incêndio coube a Jorge Gomes. Mas não foi por falta de oportunidade que o executivo ficou em silêncio. Esta quarta-feira, um dia depois de o relatório ter sido entregue na Assembleia, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, convocou uma conferência de imprensa para falar sobre as conclusões do relatório. Mas fugiu à pergunta sobre a posição do seu ministério quanto ao reforço de meios. E nunca pôs em causa as conclusões do documento como fez o ex-secretário de Estado Jorge Gomes.

Questionado diretamente sobre esse ponto do documento pelos jornalistas, Eduardo Cabrita voltou a sublinhar a importância de tirar lições para o futuro.

Não cairei na tentação de dizer ‘se eu cá estivesse como teria feito’. Analisarei, como analisamos no Governo, com toda a atenção aquilo que é a ação objetiva de desempenho e aquilo que são as recomendações de ação para futuro, sem tentações” de fazer uma análise “póstuma, que é um exercício, nesta matéria, votado a um claro insucesso”, disse o ministro.

À noite, em entrevista à SIC, o ministro da Administração Interna não foi mais longe, mesmo perante um relatório que põe em causa as decisões tomadas nos dias de 14 a 16 de outubro por quem representava aquele que, agora, é seu ministério .

Governo recusou reforçar aviões. “É falso”, diz ex-secretário de Estado

Na página 148 do relatório em que se faz a “avaliação dos incêndios ocorridos entre 14 e 16 de outubro de 2017 em Portugal continental”, o conselho de especialistas nomeados pela Assembleia da República enumerou sete pedidos de reforço de meios que a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) teria apresentado à tutela. Os pedidos eram dirigidos a Jorge Gomes, secretário de Estado com poderes de decisão sobre aquela matéria. Todos teriam sido negados total ou parcialmente, de acordo com a informação vertida no documento.

Jorge Gomes era o mais direto responsável político a quem cabia dar resposta às solicitações dos dirigentes da Proteção Civil. Esta quinta-feira, no Parlamento, o agora deputado surgiu inesperadamente a contestar a validade do relatório: “É falso”, garantiu,  negando os vários pontos apresentados pela comissão técnica sobre os pedidos da ANPC para que houvesse um reforço de meios, de março a outubro.

Um desses sete pontos refere que, em março de 2017, a Proteção Civil teria apresentado uma “proposta de reforço de uma parelha de aviões anfíbios médios” para o combate aos fogos do verão, de acordo com a informação n.º 3494/CNOS/2017. Na resposta, o Governo teria considerado que se tratava de um pedido “sem fundamento legal”. A resposta? “Não autorizado.”

Noutro ponto, o documento faz referência ao pedido de “reforço de 200 horas de voo suplementares para duas parelhas de aviões anfíbios médios”, formalizado a 8 de setembro. Foi cerca de três semanas antes do “pior dia do ano” em matéria de incêndios florestais, como definiu a porta-voz da Proteção Civil, Patrícia Gaspar. A resposta teria sido a mesma que meio ano antes: “Não foi autorizado.”

Tudo isto é negado pelo ex-secretário de Estado. “Foi solicitado um reforço de horas que foi concedido”, diz o documento que Jorge Gomes preparou para a sua defesa. “Não foi solicitada pela ANPC qualquer parelha adicional de aviões médios anfíbios”, garantiu. Em causa, neste ponto, está não apenas o pedido de contratação de mais dois aviões anfíbios médios mas também o reforço de 200 horas de voo destes aparelhos.

O ex-secretário de Estado garante que “esta parelha de aviões esteve plenamente operacional durante todo o período de vigência do dispositivo de combate a incêndios florestais de 2017” e que, a 17 de agosto, “foram contratadas 300 horas adicionais”, com um custo de 664 mil euros. Dois meses mais tarde, acrescenta Jorge Gomes, “foram contratadas mais 70 horas adicionais, de modo a assegurar a operação até 31 de outubro”. Valor da despesa: 155 mil euros.

Entretanto, nesta quinta-feira à noite, a Lusa avançou com mais informações sobre estas contradições, depois de ter tido acesso a documentação que reforça a tese de Jorge Gomes. Os dados são os seguintes: a 9 de outubro, a ANPC enviou à tutela um pedido para alargar a fase Charlie até ao final desse mês; cinco horas depois, já na madrugada de dia 10, a primeira resposta positiva de aprovação era dada pelo MAI; mas os aviões que a Proteção Civil tinha pedido só ajudaram no combate às chamas seis dias mais tarde.

Na resposta às solicitações da ANPC, segundo os documentos a que a Lusa acedeu, o Governo terá concordado com um acréscimo de 70 horas de serviço para dois aviões anfíbios médios, com o prolongamento do contrato de aluguer de dois aviões anfíbios pesados e de oito helicópteros médios, todos eles até 31 de outubro. No caso dos anfíbios médios, o contrato já tinha sido prolongado com mais 300 horas a 14 de agosto. [Sobre os helicópteros ver o ponto 5]

Para adensar as dúvidas, não se percebe ainda porque não foram usados os meios de imediato pela ANPC logo após a autorização ministerial. A luz verde para a despesa da contratação de meios aéreos adicionais foi dada a 13 de outubro, mas estes entraram ao serviço a 16 de outubro, no mesmo dia em que foram controlados os piores incêndios do ano, que tinham começado no dia 14 — e que atingiram oito distritos do centro e norte do país e provocaram 48 mortos.

Governo só autorizou metade das equipas de bombeiros pedidas pela Proteção Civil?

No relatório da comissão independente é feita referência a uma “proposta de reforço do dispositivo para a fase Delta para o período de 1 a 15 de outubro”, constante da  informação 1224/CNOS/2017, de 27 de setembro. A ANPC pedia 105 equipas de combate aos incêndios mas a tutela teria apenas autorizado 50.

Ponto por ponto, o ex-secretário de Estado prossegue a sua contestação ao relatório da Comissão Técnica Independente. Sobre o pedido de 105 novas equipas de bombeiros para o período de 1 a 15 de outubro (e o facto de terem sido autorizadas apenas 50), Jorge Gomes diz que “a ANPC propôs o reforço de 525 bombeiros” e que “foram aprovados 250 a partir de 1 de outubro”. Mas, “face ao agravamento das condições meteorológicas”, nove dias depois chegavam “mais 570” elementos ao terreno.

“Foi superada a proposta inicial da ANPC”, com um “reforço total de 820 Bombeiros”, correspondentes a 164 equipas (mais 59 que aquelas pedidas pela Proteção Civil), contrapõe o ex-governante.

Naquele momento, foram incorporados no reforço do dispositivo todos os bombeiros disponíveis e foi também reativada a 11 de outubro a rede primária de postos de vigia”, com 72 postos e 288 vigilantes ativos, enumera Jorge Gomes.

O dispositivo total teve 6.626 operacionais empenhados no combate aos incêndios, mais 1.108 do que seria de esperar para uma fase Delta sem reforço de meios, diz o ex-secretário de Estado.

Quatro aviões ligeiros. Pedido era “ilegal”, diz Jorge Gomes

Há ainda um pedido da Autoridade Nacional de Proteção Civil para que fosse aprovado o “reforço de quatro meios aéreos ligeiros”, feito a 13 de julho (informação n.º 8223/GPATRP/2017), rejeitado pelo Governo por não ter “fundamento legal”. Aqui, há sintonia. Jorge Gomes assume a recusa, mas dá mais pormenores sobre os contornos do pedido.

Quase um mês depois do início do incêndio de Pedrógão Grande, a ANPC pediu à tutela um reforço dos meios aéreos ligeiros. Jorge Gomes divulga a informação que a Proteção Civil fez chegar ao Governo, com base no pedido do Comandante Operacional Nacional (CONAC), Abílio Tavares. E acusa a ANPC de pretender que o MAI “submetesse à apreciação do Conselho de Ministros uma proposta ilegal”.

De acordo com o ex-governante, a própria proposta da Proteção Civil assumia que não estavam preenchidos “todos os requisitos cumulativos” do Código de Contratação Pública. “Afinal, como se explicará que estas necessidades adicionais apenas surgiram agora? Afinal, porque não foram previstas anteriormente? Dos elementos fornecidos (correio eletrónico do senhor CONAC, de 10 de junho de 2017) não consta nenhum elemento ou documento que permita objetivar e fundamentar, do ponto de vista jurídico, a presente aquisição”, dizia a nota da Proteção Civil.

Aqui, o ex-secretário de Estado é direto:

A proposta foi devolvida à ANPC por ser manifestamente ilegal.”

Mais homens para a Força Especial de Bombeiros

Outra proposta apresentada no relatório, cuja data não foi divulgada, faz referência a um “reforço de 40 operacionais para a Força Especial de Bombeiros (informação n.º 3341/DORH/2017). Decisão: “Não foi autorizado.”

Jorge Gomes não contesta a recusa do pedido. O ex-governante diz que foram pedidos, não 40, mas apenas nove elementos novos, “ficando os outros numa bolsa de recrutamento”. Argumenta, ao mesmo tempo, que “não faria qualquer sentido estar a regularizar uma parte da Força Especial de Bombeiros de um lado e a criar mais precários do outro”, uma vez que, nesse momento, estava em curso o processo de “integração” desta força especial na administração central, no âmbito do programa de regularização dos vínculos precários no Estado.

De acordo com Jorge Gomes, e por outro lado, ele mesmo, enquanto secretário de Estado da Administração Interna, deu orientações à GNR para reforçar o Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) com mais 40 militares, “suprimindo e respondendo à carência identificada”.

ANPC pediu helicópteros? Jorge Gomes diz que não

O relatório também aponta uma nega do Governo ao pedido da ANPC para a “locação de quatro aviões anfíbios médios de 13 a 31 de outubro”, que só teria sido autorizado a 17 de outubro, mas nesse caso para “a locação de 15 helicópteros ligeiros”, válida a partir desse mesmo dia, já depois de a fase crítica dos fogos ter sido ultrapassada.

Jorge Gomes assume que o dispositivo aéreo não foi reforçado para a fase Delta e que “o que se verificou foi o prolongamento dos contratos de meios aéreos entre o dia 16 e o dia 31 de outubro”, uma decisão de 10 de outubro e comunicada à ANPC nesse mesmo dia.

Jorge Gomes continua a defesa em nome próprio e diz que o dispositivo aéreo não foi reforçado para a fase Delta e que “o que se verificou foi o prolongamento dos contratos de meios aéreos entre o dia 16 e o dia 31 de outubro”, uma decisão de 10 de outubro que foi comunicada à ANPC no mesmo dia”. [ver ponto 1]

“Até ao dia 18 de outubro, a ANPC não propôs à tutela a contratação de 15 helicópteros ligeiros”, diz o ex-secretário de Estado, numa versão que choca com o relatório da Comissão Técnica Independente. No documento lê-se que já depois dos incêndios, o Governo teria autorizado a locação de 15 helicópteros ligeiros com efeitos a partir de 17 de outubro.