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sexta-feira, 23 de março de 2018

Uma versão “cinematográfica” no “campo do incrível”. O que dizem as 300 páginas do acórdão do caso Pedro Dias

23 Março 2018

Cátia Bruno

Rita Porto

Uma versão "no campo do incrível", provas e testemunhos essenciais e "premeditação" que agravou penas dos civis. O Observador analisou à lupa o acórdão do tribunal que condenou Pedro Dias.

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São mais de 300 páginas. E estão cheias de análises e considerações ao que aconteceu em Aguiar da Beira, entre os dias 11 e 16 de outubro de 2016 — e que levaram à morte três pessoas. Os juízes Marcos Gonçalves, Olga Maciel e Carlos Marques, do Tribunal da Guarda, recorreram a termos como “crueldade”, “frieza”, “calculismo”, “indiferença”, “desprendimento” e “desprezo pela vida humana” para descrever as ações do arguido, condenado à pena máxima de 25 anos de prisão em cúmulo jurídico. Os magistrados não têm dúvidas de que Pedro Dias é o autor dos múltiplos crimes, que incluem homicídios qualificados, sequestros, furtos e detenção de armas proibidas.

O Observador leu todo o acórdão, focando-se essencialmente nos crimes de homicídio, e encontrou incredulidade perante a versão do homem de Arouca, sustentação em múltiplas provas e testemunhas e justificações para as penas aplicadas.

Versão de Pedro Dias arrasada pelos juízes

Uma das conclusões mais reveladoras do documento é o facto de deixar claro que o coletivo de juízes não acredita de todo na versão apresentada por Pedro Dias, pontuando até com ironia determinados comentários às declarações do arguido. Recorde-se que, em tribunal, o fugitivo de Aguiar da Beira apresentou em último lugar a sua versão dos acontecimentos, refutando aquela que foi apresentada pela acusação: Pedro Dias afirmou que disparou sobre Carlos Caetano porque este o estava a espancar e garantiu que não matou os civis Luís e Liliane Pinto, dando a entender que esses homicídios seriam responsabilidade do militar da GNR António Ferreira.

O coletivo de juízes, contudo, considerou que essa versão não é verosímil e dedicou cerca de 20 das mais de 300 páginas do acórdão a explicar porquê. Para começar, os juízes consideram estranho que Pedro Dias tenha decidido parar para descansar, naquela noite de 11 de outubro de 2016, num local tão isolado como aquele perto do Hotel das Cavacas, em construção. Marco Gonçalves e os colegas falam em “estranheza” por Dias ter feito “um desvio tão significativo da estrada principal para descansar, ainda para mais quando já vai cansado a ponto de ter tido quase um acidente” e consideram que a justificação apresentada pelo arguido — a de que conhecia o local porque no verão tinha ido lá com a filha e afilhada para dar uns mergulhos num ribeiro próximo — não colhe, já que nas fotografias aéreas do local “não se vislumbra qualquer curso de água nas proximidades do hotel em construção”. Foi naquele local que Dias foi abordado pelos militares da GNR, que estranharam encontrar alguém numa zona tão isolada e suspeitaram que houvesse prática de alguma atividade criminosa.

Os juízes também questionam a razão apresentada por Pedro Dias para andar com uma arma: a ideia de que precisava dela para se proteger dos cães “meio selvagens” que lhe andavam a atacar os animais. O tribunal acrescenta, numa nota de rodapé, que considera que os animais que Pedro Dias criava — cavalos lusitanos e vacas — são “pouco dados a sofrer ataques de cães, ainda que ‘semi selvagens’.

"Note-se, todavia, que como o arguido depois esclareceu, a sua ocupação, para além da agricultura e do estudo da aeronáutica, era essencialmente a criação de cavalos lusitanos e vacas, animais que julgamos pouco dados a sofrer ataques de cães, ainda que 'semi selvagens'"

Acórdão do Tribunal da Guarda

Chegado à parte do relato em que Dias descreve a alegada agressão do militar Carlos Caetano, o tribunal decide elencar uma série de contradições em que diz que o arguido caiu. Primeira de todas, o facto de Pedro Dias ter referido que Caetano o revistou e não encontrou qualquer arma, já que esta estava na carrinha. Para o coletivo, tal não faz sentido, porque o próprio Dias explicou que os dois militares revistaram inicialmente a carrinha — e, se tal tivesse sido o caso, teriam encontrado a arma no chão da carrinha, por baixo do lugar do condutor.

Mas é quando chegam às cenas de confronto — quer primeiro com Caetano, quer depois com António Ferreira e os civis — que o coletivo destrói a versão de Pedro Dias, chegando mesmo a recorrer à ironia.

Segundo o arguido, Caetano começa a agredi-lo, aparentemente sem razão, junto à porta do condutor e é nesta circunstância que Pedro Dias pega na arma e dispara. “A forma como o arguido descreve o disparo é que estando aquele de joelhos, curvado, ou apenas inclinado junto à porta do condutor, enquanto está a ser agredido, é dificilmente equacionável que consiga ter tempo para, sem reação de quem está tão próximo de si, retirar uma arma debaixo de uma ‘mantinha’, virar-se e disparar um só tiro precisamente na face do agressor (que tinha 1,88m)”, escrevem os juízes.

Para além disso, o tribunal acrescenta que as provas físicas desmentem a versão do arguido, já que as perícias concluíram que o disparo que atinge Caetano teve um trajeto “sensivelmente horizontal”, o que “pressupõe o arguido numa posição erigida ou, pelo menos, na linha da face do seu agressor, que não foi descrita”, diz o tribunal, acrescentando que o arguido referiu “mais que uma vez” que estava ajoelhado aquando do disparo.

Depois da morte de Caetano — e a seguir a um momento inicial em que Pedro Dias obriga o outro militar, António Ferreira, a fugir com ele num dos carros –, o arguido admite que regressaram ao local do crime e que mandou Ferreira colocar o corpo de Caetano na bagageira do carro. Nesse momento, conta o arguido, Ferreira respondeu-lhe que não queria fazê-lo porque podia perder o emprego — uma referência que o tribunal classificou como “de tal forma inverosímil que não merece comentários adicionais”. Inverosímil foi também a forma como o coletivo classificou a ideia proposta por Pedro Dias de que andaram às voltas por várias estradas porque o arguido estava à procura de uma mota que deixou no mato, já que diz sofrer de problemas de coluna (mais concretamente hérnias).

A versão de Dias sobre o encontro com os civis Luís e Liliane Pinto chocou ainda mais o tribunal. O arguido afirma que seguia no lugar do passageiro e Ferreira no do condutor quando foram abordados pelo casal, que lhes pediu para parar. Aí, Luís ter-se-á dirigido à janela do passageiro em vez da do condutor. Nesse momento, Ferreira conseguiu em poucos segundos tirar uma das Glocks do banco de trás e tentar disparar sobre Dias, acertando antes em Luís Pinto, disparando depois outros tiros, que o arguido não viu para onde se dirigiram porque ia a fugir.

De seguida, conta o homem de Arouca, volta atrás rastejando, apanha Ferreira por trás, aponta-lhe a arma à cabeça e diz-lhe para deixar cair a pistola, recuperando o controlo da situação — uma descrição que o tribunal classifica como estando “no campo do incrível”, para além de por vezes expressar a sua incredulidade recorrendo a pontos de exclamação e de interrogação, entre parêntesis.

Os juízes acrescentam que tal sequência é “mais própria da ficção cinematográfica”, já que tem “como protagonista um militar da GNR” que, “depois de todo este (inimaginável) stress”, em vez de, “de imediato, solicitar auxílio (via rádio da viatura ou por telefone) ou tentar prestar assistência às pessoas que acidentalmente havia baleado, parece ir no encalço do arguido armado e acaba por ser por este surpreendido (por trás e com contacto físico) e desarmado sem violência!”

Depois de explanar o quão improvável considera ser a versão do arguido, o coletivo de juízes ainda remata com um reparo, não deixando margem para dúvidas sobre a sua posição quanto a esta versão: “Este incrível twist de acontecimentos”, escreve o tribunal, “não mostra sustentação na prova documental e pericial acima analisada, antes pelo contrário”.

Também no que toca à versão dos acontecimentos do arguido relativamente ao disparo sobre António Ferreira, o coletivo não se mostra convencido. Pedro Dias, recorde-se, diz que foi atacado por Ferreira e que acabaria por disparar sobre o militar sem intenção. Uma sequência que o tribunal classifica de “inusitada” e que, “na sequência do relato que a antecede, torna qualquer apreciação adicional sobre a sua inverosimilhança despicienda”.

As perícias, os testemunhos e outras provas essenciais

O coletivo de juízes, liderado por Marcos Gonçalves, teve em conta na sua decisão as várias provas documentais e periciais deste caso e que se revelaram decisivas na atribuição dos crimes a Pedro Dias.

Os vestígios de ADN encontrados em vários objetos que estavam nos carros utilizados na fuga do homem de Arouca colocam-no “claramente como utilizador daqueles objetos”, nomeadamente a arma Glock de Carlos Caetano e utilizada para disparar sobre o casal Pinto. “O relatório do LPC [Laboratório de Polícia Científica], na área da Biotoxicologia, conclui que o vestígio hemático [sangue] que consta na face exterior [da pistola] é do arguido”, lê-se no acórdão.

Os exames balísticos efetuados, por exemplo, na arma de calibre 7,75mm — que pertencia a Pedro Dias — confirmaram que essa era “a arma que o arguido tinha quando foi abordado junto ao Hotel da Cavaca e que utilizou para balear Carlos Caetano”.

Os juízes tiveram também em conta “a localização e percursos dos veículos envolvidos”, nomeadamente a georreferenciação do carro da GNR que permitiu fazer a reconstituição dos passos do arguido entre a morte de Caetano e o disparo contra Ferreira, e as localizações dos telemóveis dos envolvidos, que permitiram perceber que “os telemóveis dos dois militares, um com vida e outro morto, cobrem as mesmas antenas e localizações celulares em quatro momentos distintos” — o que prova que Dias e Ferreira andaram vários quilómetros com o corpo de Caetano na mala do carro.

“O relatório do LPC [Laboratório de Polícia Científica], na área da Biotoxicologia, conclui que o vestígio hemático [sangue] que consta na face exterior [da pistola] é do arguido”

Acórdão do Tribunal da Guarda

Os relatórios das autópsias das vítimas mortais e das lesões de António Ferreira e de Maria Lídia da Conceição ajudaram também o tribunal a formar a convicção da culpa de Pedro Dias. No acórdão, o coletivo fala mesmo num “padrão nas vítimas atingidas, três na área da cabeça e a outra nas proximidades”.

O “enquadramento socioeconómico do arguido e seus antecedentes criminais” também foram tidos em conta. Apesar de ter crescido “num meio coeso e afetivamente gratificante”, o tribunal não ignorou o facto de Pedro Dias já ter sido condenado, em 2010, por um crime de ofensa à integridade física e, um ano mais tarde, por violência doméstica contra a ex-mulher.

“Aliás, a reconstituição que é possível fazer tendo apenas em conta os sobreditos elementos documentais e periciais evidencia claramente uma nítida espiral de violência, sempre com cuidados e propósitos de ocultação do rasto, incompatíveis com quem apenas pretende fugir para acautelar a sua integridade física ou vida (e, acrescente-se, incompatível com a própria versão do arguido)”, lê-se no acórdão.

Quanto aos testemunhos prestados em tribunal, o coletivo valorizou o depoimento do inspetor da Polícia Judiciária, António Fernandes da Cruz, descrevendo-o como “rico em detalhes e denotando grande objetividade e isenção”, bem como as declarações de António Ferreira. “Tratou-se, pois, de uma descrição sentida e detalhada do sucedido, cuja conjugação com os demais elementos probatórios não deixa dúvidas quanto à veracidade de tal relato”, escreve o coletivo de juízes sobre o testemunho do militar.

"Num depoimento rico em detalhes e denotando grande objetividade e isenção, a testemunha descreveu as diligências a que procedeu e correlacionou muita da prova recolhida no inquérito (...)."

Acórdão do Tribunal da Guarda

Mais anos de prisão pela morte de civis do que pela morte de Caetano. Porquê?

O Tribunal da Guarda condenou Pedro Dias a 21 anos de prisão pelo homicídio qualificado agravado do militar da GNR Carlos Caetano e pelos homicídios qualificados agravados de Luís e Liliane Pinto a 22 anos. O próprio homem de Arouca confessou à irmã, após a leitura da sentença, que estranhou ter uma pena mais gravosa pelos homicídios dos civis, que imputou ao militar da GNR António Ferreira.

A verdade é que o homicídio de Caetano foi testemunhado por Ferreira —  o coletivo sublinhou que as declarações do militar, em tribunal, batem certo com as perícias — enquanto ninguém viu o que se passou entre Pedro Dias e casal Pinto, no quilómetro 45 da EN229. Por que foi então o arguido condenado a uma maior pena de prisão no caso de Luís e Liliane Pinto e não de Carlos Caetano? A decisão pode resumir-se numa palavra: premeditação.

No artigo 132 do Código Penal, a lei prevê que um homicídio é qualificado quando ocorre “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”. Uma dessas circunstâncias é o crime ser praticado contra “funcionário público civil ou militar” ou “agente de força pública” (alínea l)).

O tribunal deu como provado que Carlos Caetano estava “no exercício das suas funções” como militar da GNR quando foi assassinado e Pedro Dias sabia-o. Para os juízes, contudo, não houve premeditação no homicídio do guarda, tanto que o absolveu desta qualificação patente na alínea j), do artigo 132 do Código Penal. O tribunal escreveu que não há “factos provados que permitam concluir que o arguido, relativamente a Carlos Caetano, tenha procedido em moldes concretos de premeditação.” Embora não acredite na versão do arguido, os juízes consideram que “existe contudo ainda uma significativa margem de dúvida quanto ao que o terá levado a disparar sobre aquele militar”.

"Estando afastada por tudo o exposto a versão do arguido, no sentido de ter reagido a agressões de Carlos Caetano, existe contudo ainda uma significativa margem de dúvida quanto ao que o terá levado a disparar sobre aquele militar, podendo-se equacionar, atenta a ausência de explicação reiterada por parte da única testemunha presente, uma multiplicidade de situações, nenhuma todavia com sustentação suficiente na prova produzida."

Acórdão do Tribunal da Guarda

O mesmo não considerou no caso das mortes de Liliane e Luís Pinto. O tribunal deu como provado que o arguido, “com intuito de encontrar um novo veículo e de fugir para não ser localizado pela polícia”, “fez sinal de paragem a um veículo que por ali passava” — o carro onde seguiam Luís e Liliane Pinto; que disparou contra a cabeça de Luís Pinto, com a arma do militar Carlos Caetano, “com o intuito de lhe tirar a vida” e revelando “indiferença, desprendimento e desprezo pela vida humana”; e que efetuou dois disparos contra Liliane Pinto “com intuito de lhe tirar a vida”, “em zonas do corpo que alojam órgãos e estruturas vitais”, ainda que “numa sequência que não foi possível apurar”.

Para o coletivo, estes homicídios “claramente” inserem-se “numa lógica em que o sangue-frio e a premeditação são notas dominantes (e impressionantes) na conduta protagonizada pelo arguido”. O tribunal resumiu a conduta de Pedro Dias, no que diz respeito a estas mortes, como tendo “o intento de encobrir outros crimes, facilitar a fuga e garantir a sua impunidade“. E não teve dúvidas em afirmar que este andou “invulgarmente de mão dada com uma calma e sangue-frio quase imperturbáveis, que não podem deixar de surpreender”.

Entre as brumas da memória


Busan?

Posted: 23 Mar 2018 01:55 AM PDT

Podemos continuar escandalizados porque não europeus desconhecem cidades que consideramos importantes, mas é bom que nos habituemos a saber da existência de alguns dos novos centros do mundo.

É o caso de Busan, segunda cidade da Coreia do Sul, que já foi capital do país durante alguns anos durante a terrível Guerra da Coreia e que tem hoje 3,5 milhões de habitantes, um porto gigantesco (o 9º do mundo em termos de movimento e o 1º em número de contentores transaccionados), uma situação geoestratégica invejável no Sudeste da parte continental e um desenvolvimento turístico importante (sem tuc tucs…)

Percorri a cidade, vi muitas coisas, fui a um museu, mas realço o enorme Mercado do Peixe, onde se pode comprar um sem número de variedades do dito cujo e de marisco, mortas ou de preferência vivas, e levá-las para casa ou a um restaurante situado no andar de cima do Mercado, que o cozinhará imediatamente para o almoço.

Outros mundos, outras vidas… Está Sol, o mar acalmou e ficarei pela Coreia mais uns dias. Portugal está mesmo muito longe.

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O triunfo dos ecrãs

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 23/03/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

CENA 1. Um amigo meu e ex-colega enviou-me um e-mail para me dar um recado e acrescentava que se tinha esquecido do telemóvel na sua casa de fim-de-semana, numa zona rural. Não parecia impaciente e até dizia com descontracção: “Eu e os telemóveis!”, insinuando a existência de uma velha inimizade. A sua exclamação atingiu-me,e obrigou-me imediatamente a elaborar esta interrogação envergonhada: “E eu e os telemóveis?”. Respondo: regressaria ao lugar onde o deixei, tornaria a fazer todo o percurso de ida e volta, mais de duzentos quilómetros. Pensei: sem telemóvel, iria tornar-me um pária durante toda a semana, angustiado, com a vida quotidiana e pragmática em suspenso. Entraria na condição da pós-história. Devo a esse amigo esta verificação dolorosa: atingi um grau de dependência em relação aos telemóveis e aos ecrãs que não tem recuo. Hoje, a maior parte das pessoas recusa mesmo fazer a pergunta que obriga a tomar consciência do que se passa consigo. De resto, a pergunta, tal como eu a fiz, só tem sentido para quem conheceu ainda o mundo sem telemóveis, sem computadores, sem Internet. Para os outros, tudo isso é uma segunda pele e, evidentemente, interrogá-la é uma prerrogativa reservada a espíritos filosóficos. É como formular o princípio da razão suficiente: “Porque é que há o ser em vez do nada?”.

CENA 2. Há dias, numa sala de cinema de um centro comercial, as luzes acenderam-se uns minutos antes de o filme acabar. Nada de excepcional: sabemos bem que nas salas comerciais, mal aparece o genérico, os espectadores são convidados a sair. Mas neste caso o filme prolongava-se para além do genérico e detinha o espectador apressado. Mas aquilo que o filme fazia, os exibidores desfaziam. Fui queixar-me, quis deixar o meu protesto escrito num livro de reclamações. Recuei quando o gerente justificou a exibição amputada do filme com razões de segurança: na semana anterior, alguns espectadores, mal começava a passar o genérico, saíam da sala mesmo às escuras e alguns caíram nas escadas e magoaram-se. Adorno, que escreveu um célebre ensaio sobre a “regressão do ouvido”, e que foi um puritano até mais não em tudo o que diz respeito aos efeitos da “indústria cultural” sobre a própria produção artística, gostaria talvez de saber que a maior parte das pessoas, hoje, sofrem de uma “regressão da visão”, não se ajustam ao modo e ao tempo de exibição pública de uma filme numa sala escura. A impaciência manifesta-se muito antes do fim do filme: há sempre focos de luz na sala, vindos dos ecrãs dos telemóveis, gente que envia sms, que lê as mensagens, que vê as horas. Quem tem a experiência das salas de aula, reconhece perfeitamente a situação no cinema. Há hoje uma discussão sobre as vantagens e desvantagens da informatização e digitalização da escola que já levou a reclamar “uma escola sem ecrãs”. Em favor deste regresso ao passado, ergue-se até um poderoso argumento: muitos dirigentes de Silicon Valey põem os filhos a estudar em escolas de onde os ecrãs foram banidos.

CENA 3. Há dias, vi um professor com mais de cinquenta anos exibir com algum snobismo a sua ignorância em questões técnicas: como ligar um projector, como inserir um DVD no computador, como iniciar a sessão. A inabilidade que ele ostentava sem pudor e até com alguma presunção era claramente percebida pelos alunos (alguns dos quais lhe resolveram imediatamente todos os problemas técnicos) como uma prova de incompetência que nenhum outro saber conseguiria resgatar.

A escola, hoje, com um corpo docente muito envelhecido, é o lugar de uma luta sem tréguas entre duas culturas: a dos alunos e a dos professores.

O CDS “moderno” – a sério?

por estatuadesal

(Por Isabel Moreira, in Blog Aspirina B, 23/03/2018)

adolfo

O CDS adotou uma estratégia que poderá ter algum sucesso (para além da estratégia, o PSD está como se sabe).
Assunção Cristas afirmou-se como líder no seu Partido, sem se prestar a ser sombra de Paulo Portas, é jovem e é mulher.
Optou por apostar no “pragmatismo”, isto é, optou por renegar à ideologia para fins eleitorais.
Por quê? Porque a líder do CDS sabe que há um eleitorado flutuante – que vai da direita ao BE – que, precisamente, não é ideológico.
Assim, junta tudo no seu projeto de “pesca de votos a qualquer custo”: democracia-cristã; a direita de sacristia que está lá, mas que Cristas não evidencia; e, finalmente, as caras da “modernidade”.
Como o meu amigo Adolfo Mesquita Nunes: jovem, inteligente, liberal, com um historial de defesa, no Parlamento, com o seu voto, de todas as causas LGBT (e uma estranha abstenção em matéria de PMA para todas as mulheres).
O Adolfo tem um discurso fluente e com a técnica da advocacia toda nele. Consegue ser um defensor histórico da IVG (contra Cristas) e agora, como dirigente do CDS, acompanhar a rejeição da eutanásia, mas com o truque de o fazer com apelo à “liberdade negativa”.
O truque é fácil de desmontar, mas não o vou fazer aqui. Fica para outro texto.
A verdade é que consigo detetar a tática do CDS e, por isso, vejo ali o que sempre esteve.
Assunção Cristas pode ter deixado de falar no aborto, mas deve-se a ela, e a muita gente, a luta pela penalização da pobreza.
Deve-se ao CDS e ao PSD a escandalosa aliança com o grupo mais reacionário do país quando, em 2015, reverteram a lei da IVG.
O CDS continua a ser vincadamente contra todos os direitos das pessoas LGBT.
Todos.
De nada serve ter na sua liderança o Adolfo, porque há um diário da luta do CDS contra a igualdade, nas uniões de facto, passando pelo casamento igualitário, pela adoção, pela PMA e, nas próximas semanas, pela população trans.
O CDS continua a albergar gente que defende a “terapia gay”, gente que Cristas integrou na sua equipa (“moderna”, claro) na corrida à CML de Lisboa.
Cristas nunca desmentiu os fanáticos que dizem falar como gente do CDS.
Pelo contrário: contou com eles.
Conta com eles.
E com o Adolfo.
Esperta, não é?
De repente parece que não foi ministra de um Governo que nos convidou à decadência moral e social, todo um feito. Até se preocupa com o “interior”, imagine-se.
Mas tenho memória.
E tenho apego pela ideologia.
Cristas pode usar do pragmatismo, da aliança de tudo e do seu contrário, da semântica em tom doce que visa assustar o país (esquerdas unidas, radicais e encostadas, vai mudando).
Cristas pode continuar a ser uma populista descarada, apresentando projetos ignóbeis, mas que “enganam” ao ouvido (criminalização do abandono de iodos), reagindo a cada notícia com o dedo em riste e lendo relatórios de 300 páginas em dois segundos para culpar o Governo.
Sei o que é o CDS.

O Adolfo não o muda. Convive com o reacionarismo do seu próprio partido. É com ele.
Sei que nada há de moderno no CDS de Cristas. Está lá a direita de sempre.
Há uma novidade: a tática para apanhar o eleitorado não ideológico e a excelente cobertura mediática de que o pequeno Partido goza.

Crítica ao concerto de Bob Dylan: A linha ténue entre o cinismo e a sinceridade, o convite e a aspereza, o amor e o veneno

por estatuadesal

(Por Benjamim, in Expresso Diário, 23/03/2018)

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“O concerto até pode ter arrancado de forma bastante atabalhoada, quase como se estivéssemos a assistir ao descarrilar de uma gigante locomotiva a vapor em câmara lenta, mesmo diante dos nossos olhos. A banda entrou num tom, o piano de Dylan entrou noutro bastante diferente. Entre cada música havia um músico a tocar para seu lado, numa espécie de cacofonia mágica permanente. A banda, magnífica, permanecia tranquila naquele número incendiário entre cada música – mais cacofonia.” Bob Dylan tocou esta quinta-feira em Lisboa e pedimos a Benjamim, músico que você deve ouvir se ainda não o fez, para fazer a crítica. E Benjamim escreveu-nos um grande texto.


A importância de ser Bob Dylan

O primeiro disco que comprei em vinil foi o “Blood On The Tracks”, de 1975, 15º álbum de estúdio de Bob Dylan. Mudou a minha vida para sempre. Mas começou por mudar a adolescência primeiro. Senti logo que tinha descoberto ouro, uma dimensão da minha existência que eu ainda não tinha experimentado.

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A minha simples existência parecia diferente ao som destas canções, o ar parecia mais leve e o calor do verão mais intenso. “Tangled Up In Blue” para arrancar e “Simple Twist Of Fate” para me atirar ao chão de seguida, logo aos primeiros acordes. É o disco da separação e toda a gente sabe que a separação é lixada. Tal como são lixadas canções como “Idiot Wind” ou “Shelter From The Storm”, que não podiam ser mais diferentes uma da outra. Mais valia pôr aqui o nome de todas as faixas do álbum porque são todas perfeitas. A fórmula não poderia ser mais direta, três ou quatro acordes em sequência perfeita e aquele tom do tipo que foi enganado pelo mundo inteiro e a quem todos devem, aquela voz que alterna entre a raiva quase birrenta e o homem que nos abre o coração só para nós todos podermos espreitar lá para dentro, sem recorrer a anestesia. A linha ténue entre o cinismo e a sinceridade. Entre o convite e a aspereza. Entre o amor e o veneno mais letal.

“Idiot wind / Blowing every time you move your mouth / Blowing down the back roads headin' south / Idiot wind /Blowing every time you move your teeth / You're an idiot, babe / It's a wonder that you still know how to breathe”, canta Dylan num disco supostamente escrito para a ex-mulher.

A primeira vez que o vi ao vivo levei uma ex-namorada que não o gramava nem por nada. A meio do concerto ficou com uma enorme enxaqueca causada pela voz de “cana rachada” do meu herói. Como disse Nicolau da Viola, “não se ama alguém que não ouve a mesma canção”.

Dez anos depois voltei para o ouvir, esta quinta-feira, desta vez num Pavilhão eternamente Atlântico completamente esgotado e com os meus pais e irmão (que me ofereceu o bilhete) como fiel e inabalável companhia. Não houve dores de cabeça e mesmo a voz me pareceu bem melhor do que naquela noite em Algés. Não era suposto esforçar-se para nos seduzir nem tão pouco cantar as canções na forma que as conhecemos originalmente e que aprendemos rapidamente a adorar, já deveríamos saber ao que vínhamos. Era apenas suposto que aparecesse e cantasse as velhas canções para nós. Não foi preciso “olá” nem “obrigado”, aquelas quase duas horas bastaram assim, ele no palco, nós sentados a assistir e eu a tentar ver do fundo do pavilhão, agradecendo a épica resistência capilar que me permitia identificar Dylan sem margem para erros a quilómetros de distância do palco. A sua mera presença era suficiente. Afinal este foi o homem que providenciou a primeira erva que os Beatles fumaram, o homem que mudou o curso da história da música, o homem a quem chamaram de Judas, o herói da folk que trocou a guitarra acústica pela elétrica, aquele que nunca quis ser a voz da América mas que acabou por ser a voz de tanta gente espalhada pelo mundo fora, o homem que pôs os dedos em tantas feridas, o homem que passou por várias conversões de fé e, talvez mais importante, o homem que me fez poder dizer que li e por vezes realmente compreendi no meu íntimo um prémio Nobel da literatura. É que os discos foram os meus melhores livros.

Eu consigo passar horas a ler as letras do Dylan em silêncio, até as tenho em forma de livro. Mas se um poema traz uma melodia agarrada, então é porque é ainda melhor. Porque tudo é melhor com música.

Ainda noutro dia alguém me dizia que as canções não podem ser lidas sem o contexto da música, ao contrário dos romances, da poesia e da dramaturgia. Tudo géneros literários que sobrevivem ao texto em estado puro, ao contrário da canção que foi escrita para trazer uma melodia sempre agarrada. Tudo muito discutível, eu consigo passar horas a ler as letras do Dylan em silêncio, até as tenho em forma de livro. Mas se um poema traz uma melodia agarrada, então é porque é ainda melhor. Porque tudo é melhor com música – os poemas, o cinema, o teatro, até os livros. Até Dylan é melhor com música. E ele, Dylan, fez-me perder em cada palavra que escreveu e cada frase que cantou desde o primeiro dia que o ouvi. E, quer queiram quer não, essa é a verdadeira essência da poesia. A sua versão mais antiga – a original. O verdadeiro trovador. Ele que me fez viajar como muito poucos fizeram. Ele que escancarou a cabeça de um puto que só queria tocar piano e que acabou a escrever canções à guitarra. Para ele foi um prémio Nobel, para mim foi um prémio de consolação de quem era aluno mediano a Língua Portuguesa. Tantos poetas gravaram discos a declamar a sua própria poesia, Bob Dylan simplesmente aproveitou o tempo de estúdio melhor que todos os outros.

O que Bob Dylan tocou

O concerto até pode ter arrancado de forma bastante atabalhoada, quase como se estivéssemos a assistir ao descarrilar de uma gigante locomotiva a vapor em câmara lenta, mesmo diante dos nossos olhos. A banda entrou num tom, o piano de Dylan entrou noutro bastante diferente. Entre cada música havia um músico a tocar para seu lado, numa espécie de cacofonia mágica permanente. Lá entrava a bateria e lentamente arrancavam as canções como se a velha locomotiva precisasse do seu tempo para ganhar embalo e lá vinha aquela voz com 76 anos que levava a minha alma ao rubro, majestosa, constantemente a balançar entre o tom melodioso mais ou menos grave e a fala de quem quer debitar as palavras de maneira absolutamente clara. Parámos em todas as estações e apeadeiros ao final de cada canção – mais cacofonia mágica. Cada troço de linha percorrido era uma pequena vitória que se ia desenrolando pela noite. A banda, magnífica, permanecia tranquila naquele número incendiário entre cada música – mais cacofonia –, eu ficava em pulgas para perceber qual seria a próxima canção na lista. Entre grandes êxitos (no fundo são quase todas), umas músicas estavam mais reconhecíveis que outras: “Blowin’ In The Wind” (que foi encore juntamente com “Ballad Of A Thin Man”) foi servido em forma de blues já no encore, mas na verdade também já não há paciência para a versão original.

“Don't Think Twice”, “It's Alright”, “Tangled Up In Blue” e “It Ain’t Me, Babe” também estiveram especialmente disfarçadas, típico do mestre que não quer passar a vida a revisitar a versão original das suas obras, é simplesmente aceitar a necessidade de passar a vida a reinventar as melodias perfeitas das suas próprias canções. Se fosse fácil não teria o mesmo encanto. “Desolation Row” foi um dos momentos mais mágicos para a fila F da plateia C, mas houve outros grandes momentos como “Highway 61 Revisited”, “Simple Twist Of Fate” ou “Trying To Get To Heaven”, da obra-prima de 1997 “Time Out Of Mind”, álbum que lhe valeu três Grammys.

Um dos pontos altos da noite foi o momento em que o escritor de canções passou a ser crooner, largou o piano e assumiu o centro do palco com “Why Try To Change Me Now”, original de Cy Coleman e Joseph Allan McCarthy que Sinatra gravou para a Columbia em 1952 e que Dylan gravou em 2015 para a mesma editora no álbum “Shadows In The Night”. Não sendo propriamente Frank, Bob levou a sala ao rubro já perto do final do concerto.

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O ambiente não era explosivo, era até de grande tranquilidade. Longe dos tempos em que Dylan e a banda eram corridos do palco por multidões indignadas pelo sacrilégio de transformar em profano algo tão sagrado como as canções folk. Era um ambiente para famílias como a minha, diferentes gerações de fãs que se juntaram para ver uma lenda viva da música mundial. Colecionadores de bilhetes, potenciais compradores de t-shirts. Eu investi as minhas fichas em imperial. Uma nota para o péssimo som que aquele Multiusos teima em apresentar, pouco condizente com os preços dos bilhetes. Para algum público faltou provavelmente temas como “Like a Rolling Stone”, mas deve ser tramado gerir repertório para um músico que está em tournée desde 1988 naquela que é conhecida como a Never Ending Tour.

O que Bob Dylan não tocou

A pausa mais longa foi em 1997, durante três meses, devido a problemas de saúde. Por mim também poderia ter ido parar a “Nashville Skyline”, álbum que abre com aquele dueto bêbedo com Johnny Cash em que ambos levam “The Girl From The North Country” cada um para seu lado, da melhor maneira possível. Ou “Oh, Sister”, de “Desire”. Ou “4th Time Around”, “Sad Eyed Lady Of The Lowlands”, “Just Like a Woman” ou “I Want You”, de “Blonde on Blonde”. Ou qualquer canção de “The Times They Are a-Changin’”. Que exigir de um escritor de canções que gravou 38 álbuns de estúdio, praticamente todos eles lendários? O homem que fez dos direitos civis canção intemporal para nos lembrar que o mundo já foi diferente e nada nos garante que vá melhorar. Principalmente num mundo em que Donald Trump é presidente dos Estados Unidos. Um mundo em que migrantes morrem afogados às portas da Europa enquanto nós assistimos no sofá, 70 anos depois da maior matança à escala global mesmo aqui ao lado. Também é esse o poder de Dylan, por muito que ele não queira – faz parte da nossa consciência coletiva.

Fora do recinto, após o concerto, um imitador de Bob Dylan levou uma pequena multidão ao delírio com versões mais próximas do original de algumas das canções que Dylan tinha cantado momentos antes e relembrou a razão de se terem juntado mais de 13.000 pessoas nesta noite – pelas canções, que ficam para sempre, que nos acompanham pelos anos fora e que nós adoramos cantar de pulmão aberto. Porque as canções serão sempre nossas e isso deixa-nos aquele que é, para mim, o maior escritor de canções de todos os tempos. Eu, que nasci no mesmo dia que ele, só lhe posso agradecer ter aparecido na minha vida.