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domingo, 22 de abril de 2018

BE espera que PS vote a favor do projeto de resolução sobre Programa de Estabilidade

22/4/2018, 19:03

A coordenadora do BE disse este domingo ter a expectativa de que o projeto de resolução sobre o Programa de Estabilidade possa ser aprovado, esperando o voto a favor do PS.

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Autor
  • Agência Lusa
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A coordenadora do BE disse este domingo ter a expectativa de que o projeto de resolução sobre o Programa de Estabilidade possa ser aprovado, esperando o voto a favor do PS que “se manterá comprometido com a atual solução política”. Catarina Martins falava aos jornalistas, em Lisboa, na conferência de imprensa após a Mesa Nacional do BE, órgão máximo do partido entre convenções, recordando que na terça feira vai ser debatido o projeto de resolução do BE sobre o Programa de Estabilidade para que se “mantenham as metas já acordadas com Bruxelas para o défice” e se possa “utilizar a folga do crescimento económico para ter serviços públicos mais robustos”.

“Temos a expectativa que esse projeto de resolução possa vir ser aprovado pelos vários partidos e esperamos poder ter o voto do PS nesta matéria porque estamos certos de que o PS se manterá comprometido com a atual solução política e com a ideia fundadora do nosso compromisso, não entre partidos, mas com a população de que aqui estamos para dar prioridade às pessoas”, desafiou.

A coordenadora do BE sublinhou que “a Mesa Nacional do BE tem a expectativa de que seja possível manter a solução política” existente até hoje.

“Estamos muito determinados, muito convictos nela. É uma solução política parlamentar, que é negociada no parlamento e é negociada nos termos exatos com que o temos feito todos os anos: melhorar as condições de vida de quem vive do seu trabalho, proteger os serviços públicos e parar o empobrecimento do país”, lembrou.

Tolentino Mendonça: “Achava que tinha sonhado que o Papa me tinha convidado para orientar o retiro”

22 Abril 2018

João Francisco Gomes

Tolentino Mendonça, que orientou o retiro anual do Papa Francisco, lembra a infância e juventude entre Angola e Madeira e conta como preparou em segredo, durante três meses, as meditações para o Papa.

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O pedido, inédito e singular, era irrecusável. Em dezembro do ano passado, o Papa Francisco telefonou ao padre e poeta José Tolentino Mendonça para lhe comunicar que o tinha escolhido como orientador do retiro espiritual que o líder da Igreja Católica faz anualmente, por ocasião da Quaresma, com os membros da Cúria Romana, o governo da Igreja Católica. Era a primeira vez que um português ia pregar para o Papa — e só tinha três meses para preparar tudo.

Durante três meses, trabalhou em segredo, uma vez que ninguém podia saber de nada antes do anúncio oficial. Chegou a pensar tratar-se apenas de um sonho, tal era a solidão daquele trabalho — que é mais um serviço do que uma honra, garante. Na semana passada, chegou às livrarias, pela editora Quetzal, o livro “Elogio da Sede“, que reúne as meditações que Tolentino Mendonça apresentou ao Papa e aos seus colaboradores mais próximos.

Tolentino Mendonça recebeu o Observador na reitoria da Universidade Católica de Lisboa — onde é vice-reitor — para uma entrevista em que recorda o convite e o processo de preparação das meditações do retiro, mas também a sua infância e juventude entre Angola e a ilha da Madeira, que marcaram a entrada simultânea nos mundos da literatura e da religião — que são indissociáveis na sua vida. “Digo sempre aos meus alunos que um estudioso da Bíblia, ou um padre, tem de ver muito cinema, tem de ouvir muita música, tem de contactar muito com o mundo das artes.”

Foi isso que fez no retiro com o líder da Igreja Católica: nas meditações, há tantas referências bíblicas como a autores vindos de fora da tradição cristã. E isso mesmo reconheceu o Papa Francisco. “As profundas meditações, partindo do dado exegético, abriram-nos ao mundo contemporâneo através das referências literárias, poéticas e ligadas a acontecimentos da atualidade”, afirmou Francisco no agradecimento que dirigiu a Tolentino Mendonça.

“Elogio da Sede”, de José Tolentino Mendonça, reúne as meditações apresentadas pelo padre português no retiro de Quaresma do Papa Francisco

“As certezas, muitas vezes, são perigosas no caminho da fé”

Queria começar indo à origem da questão do retiro. Como é que lhe chegou o convite para orientar o retiro de Quaresma do Papa? Tem ideia de se o Papa já conhecia a sua obra?
O convite para fazer este retiro começou exatamente com o telefonema do Papa, que num dia de manhã, possivelmente a seguir à missa lá em Santa Marta, ligou e tivemos uma conversa em que ele me convidou para fazer o retiro. Naturalmente, o processo para chegar a este convite certamente passou pelo contacto com as coisas que eu escrevo. Tenho, nos últimos anos, editado um conjunto dos meus livros em língua italiana. No ano passado escrevi no [jornal italiano] Avvenire — tinha uma coluna diária — durante três meses. Tudo isso também contribuiu para que o meu nome e o meu pensamento teológico fossem conhecidos em Itália, e naturalmente alguém sugeriu isso ao Papa Francisco.

Também é consultor no Pontifício Conselho para a Cultura…
Exatamente, colaboro com o cardeal [Gianfranco] Ravasi no Pontifício Conselho para a Cultura, e certamente o cardeal Ravasi também terá sido ouvido e implicado neste processo de convite.

Logo no início deste livro, onde podemos ler as meditações que fez durante o retiro da Cúria, num agradecimento que faz ao Papa, sublinha que é apenas um dos 415 mil sacerdotes que servem a Igreja Católica em todo o mundo. O que é que sente um destes 415 mil por ser o escolhido para este papel tão singular como é pregar para o Papa?
O que se sente é uma humildade gigante, esmagadora se quisermos. E por isso também me defendi dizendo e sentindo isso: que sou apenas mais um. De facto, eu disse isso ao Papa: “Olhe, mas está a convidar um pobre padre português para pregar o retiro, eu não sou um grande teólogo, não sou um pensador ao nível da Cúria Romana. Sou um pobre padre.” E ele disse: “Mas é bom. É isso que eu quero, quero um padre a pregar-me o retiro.”

Fala sempre da dimensão de serviço que essa tarefa teve. Para si é mais uma honra ou um serviço?
Certamente mais um serviço, porque a honra tem a ver com uma certa ideia de si, uma ideia de mérito. De facto, eu sinto que fui convidado não exatamente por um mérito particular, e por isso é que verdadeiramente o que me senti foi mais um. Sou mais um das centenas de milhares de padres católicos que existem no mundo, e por ser quase um anónimo também os represento. Isso foi um pensamento que me ajudou a encontrar a serenidade necessária para fazer este trabalho.

Ao escolher um padre para orientar o seu retiro, em vez de um bispo, por exemplo, o Papa está a tentar descer a um nível mais próximo das comunidades, das periferias, como diz sempre?
Penso que há o desejo de ir ao encontro de outras vozes. De facto, as escolhas do Papa Francisco para os retiros têm sido sempre surpreendentes, no sentido em que não escolheu um cardeal ou um bispo, como era o mais comum, mas foi buscar teólogos, vozes mais livres, que estão no mundo, nas universidades, na vida da Igreja, e que de certa forma representam isso. Representam uma maior inscrição na base, no corpo da Igreja.

Qual é o objetivo do retiro anual do Papa e da Cúria Romana?
É ser um retiro. O Papa, desde o princípio, desafiou os seus colaboradores diretos, que trabalham ali na Cúria com ele, para fazerem um retiro. E um retiro, esta semana de exercícios espirituais, é uma semana de silêncio e de oração, em que a pessoa recebe também algumas pistas, meditações, que ajudam no percurso pessoal. Mas a experiência de retiro mais importante é a experiência de escuta, a experiência de abertura e de exposição da própria vida, da vida concreta. Uma exposição confiante ao olhar de Deus, e deixar que o Espírito fale. Não o meu espírito ou não o espírito daquele, mas deixar que o Espírito Santo, o espírito de Deus, possa falar à Igreja com liberdade.

E para isso é precisa a tal dimensão do silêncio.
É indispensável o silêncio, porque mesmo no silêncio é preciso uma espécie de nudez, de ruptura com o mundo habitual, com as rotinas, com as preocupações. Mesmo no silêncio é preciso um esforço para permanecer em escuta. Sem o silêncio, é mil vezes mais difícil.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

É simbólica a saída do Vaticano, da cidade de Roma, para os arredores, para um sítio mais calmo.
Sim, para uma casa que é já uma casa de retiros, está preparada para silêncio. Há as várias celas onde cada um pode estar, há um espaço à volta, uma mata, um jardim, onde se pode estar em silêncio e fazer o passeio necessário, há uma capela, uma sala… Numa grande simplicidade, porque não é um lugar de conforto, é um lugar marcado até por uma certa austeridade. Tem tudo o que é necessário, mas dentro de uma austeridade grande. Os exercícios espirituais não são umas férias, são um tempo ascético, um tempo de renúncia àquilo que é o nosso modo de vida habitual. Mas estava tudo o que era necessário para a pessoa se entregar a este caminho espiritual.

O retiro foi durante uma semana no início da Quaresma. Como eram os dias nessa semana, durante o retiro?
Os dias começavam com a Eucaristia, às 7h30 da manhã. Depois, tínhamos o pequeno-almoço, que era uma refeição mais livre. Às 9h30 tínhamos a primeira meditação e ao meio-dia a celebração da Eucaristia. Depois, às 16h era a segunda meditação. Às 18h entrávamos num tempo de oração, que era adoração do Santíssimo e as Vésperas, e depois o jantar. Todo o retiro acontecia em silêncio. Ao almoço e ao jantar havia um texto escolhido por mim, que era escutado — como se faz na tradição monacal e hoje se faz em muitos lados também em contexto de exercícios espirituais, em que se ouve uma leitura espiritual. Escolhi desde Padres do Deserto a místicos medievais, a teólogos contemporâneos… No fundo, em torno ao tópico da sede. Mas, dito isto, cada dia decorria com uma regularidade, uma normalidade muito grande, e o tempo era dedicado à oração, à meditação, a esse encontro mais profundo de cada um com o próprio Deus.

Uma das imagens que mais impressionavam, das que foram sendo publicadas ao longo daquela semana, era a do Papa Francisco no meio dos outros cardeais e bispos da Cúria, sem nunca se pôr numa posição de maior importância. Ele também queria ser apenas mais um participante naquele retiro?
Isso é uma imagem muito impressiva, porque ele de facto escolhe ser mais um. Senta-se no meio, no refeitório senta-se numa mesa qualquer, num lugar, e faz o seu caminho. Para mim, o impressionante não é apenas isso, ele buscar um ponto de comunhão no meio dos outros, ser mais um, mas é sobretudo a verdade com que ele se entrega à sua missão, ao seu caminho, àquilo que tem a fazer. Num retiro, nós rezamos, pensamos, colocamo-nos horas de joelhos, e era isso que o Papa fazia, igual a qualquer outro bispo, qualquer outro padre.

Entre o momento em que recebeu o convite e o momento do retiro teve a missão de preparar os textos, escrever as meditações, pensar no tema. Quanto tempo teve para o fazer?
Tive cerca de três meses para trabalhar o retiro. No fundo, senti que foi pouco tempo, porque não parei com as minhas atividades letivas aqui na universidade nem com o trabalho pastoral. Mas, claramente, todo o tempo que eu tinha era dedicado à preparação deste retiro. Quando o Papa me telefonou, evidentemente eu telefonei ao cardeal-patriarca a falar-lhe disso, e foi a única pessoa com quem falei. Não podia dizer a ninguém. Isso era interessante, porque a dada altura, no meio da preparação tão intensa, eu não sabia se de facto eu tinha sonhado, se era verdade que estava a acontecer. Era uma coisa, ao mesmo tempo, muito solitária, uma preparação para alguma coisa que não era pública nem era imediatamente partilhável.

Era preciso esperar pelo anúncio oficial.
Sim, cabia ao Santo Padre anunciar, não me cabia a mim. O que eu tinha era, de facto, de fazer o meu trabalho de preparação e de oração. O trabalho foi exigente, mas ao mesmo tempo foi um tempo para mim muito rico, muito fecundo, pelas leituras que me permitiu fazer, também pelo tempo de oração, de silêncio, de meditação que foi necessário para produzir os textos das meditações. Foi um período muito intenso, mas ao mesmo tempo muito fecundo, muito rico do ponto de vista espiritual. Depois, quando a notícia saiu, para mim a coisa mais importante foi poder pedir às outras pessoas, às pessoas que me falavam, pedir que rezassem por mim. Isso foi muito importante, saber que havia muita gente a rezar por este serviço que eu ia fazer. Isso também me deu uma tranquilidade e uma força grande.

Que caminho percorreu até chegar a esta proposta do “Elogio da Sede”?
Como tinha pouco tempo, não pude demorar o tempo que às vezes é normal a decidir qual era o tema que tinha de tratar. Eu tinha pouco tempo. Tinha de ser racional e pensar que tinha de escolher um tema esteja ao meu alcance trabalhar. Mas também que possa ser um tema bíblico — o que para mim era muito importante dada a minha formação como biblista — fundado no Antigo e no Novo Testamento, para ter uma amplitude grande, porque são dez meditações e isso implica um longo caminho que é preciso percorrer. Que seja também um tema já trabalhado pela tradição espiritual. Porque num retiro é importante não inovar demasiado. O retiro ganha muito em ser uma repetição de coisas que já sabemos. Mesmo dando-as a ver num outro ponto de vista, mas é importante serem coisas conhecidas. Um retiro não é um curso, não é para aprender coisas novas, mas é para repassar a própria vida à luz de um discurso fundamental. Por isso, ser um tema da tradição cristã que certamente todas as pessoas que estavam ali já tinham pensado e se confrontado com ele, para mim era também um critério importante. E depois que fosse um tema antropológico, que sendo um tema claramente espiritual fosse um tema entendido por crentes e não crentes, um tema transversal, ao qual a cultura contemporânea pudesse dizer alguma coisa. No telefonema com o Papa, ele disse-me duas coisas que marcaram muito a minha preparação. Ele disse-me: “Sente-te livre, não te sintas preso, manietado, a uma ideia, ao que achas que pode ser ou não ser, sente-te muito livre; e sê autêntico, sê tu próprio, apresenta aquilo que podes apresentar”. Isso ajudou-me muito a construir um discurso a partir das coisas que habitualmente eu faço, eu penso, eu frequento. Não pode ser a apresentação de um discurso teórico, mas é alguma coisa que tem de ter necessariamente um carga existencial.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Aí chegou ao tema da sede.
Desde sempre, de certa forma, eu sabia que havia um momento em que eu iria tratar o tema da sede. Não sabia quando, nem como, mas já há muito tempo o tema da sede é alguma coisa que me interessa e já tinha coligido uma série de textos. Tinha coisas debaixo de olho, outras pensadas, porque o tema da sede parece-me especialmente fecundo. Fecundo para olhar a tradição cristã — e penso que a tradição cristã entende-se muito a partir da sede e como uma forma de sede.

A dada altura diz que ter fé, crer, mais do que estar saciado é ter sede.
A sede é uma experiência fundamental para entender a fé. A fé não é um estado de saciedade, a fé é um estado de sede, porque é uma pergunta. O Pascal dizia que a fé é uma aposta. O Kierkegaard dizia que a fé é um salto, até um salto no escuro. Mas a palavra fé quer dizer confiança. Se pensarmos na figura de Abraão, que é a primeira figura do crente, é a história de um homem que é deslocado do seu mundo familiar e do seu território para fazer uma viagem a partir de uma promessa, onde a confiança, confiar numa palavra e numa promessa, torna-se a chave.

Ter as certezas todas não é ter fé, é isso?
Ter as certezas é o contrário da fé. Se nós víssemos, não era preciso fé, porque tínhamos o argumento racional, tínhamos a certeza. A Carta aos Hebreus tem uma expressão belíssima para descrever a fé: diz que é caminhar como se víssemos o invisível. Como se víssemos. Porque verdadeiramente não vemos. E São João diz-nos isso claramente: a Deus nunca ninguém o viu. Quer dizer, a fé é uma pergunta para não crentes e para crentes. Muitas vezes, os crentes não têm mais certezas. Expõem-se mais. Há um caminho de escuta, há um caminho de confiança, há uma tomada de consciência de uma relação. Mas é mais no domínio da sede do que propriamente uma certeza, e as certezas muitas vezes são perigosas no caminho da fé, porque se tornam domesticação do sagrado quando nós devemos colocar-nos na escuta. Deus atravessa a nossa vida de forma surpreendente.

Já o ouvi falar sobre isto: é possível ou pelo menos é fácil ter fé num tempo em que procuramos a satisfação quase imediata das maioria das nossas necessidades?
O tema da sede é um tema culturalmente em contraciclo. Em contraciclo porquê? Porque nós vivemos numa sociedade de consumo que nos trata como consumidores e que está apostada em satisfazer todas as nossas necessidades — reais e imaginárias. Todos nós temos a experiência de entrar num supermercado sem lista e sair de lá carregados de coisas que achamos muito necessárias, porque de certa forma nos são oferecidas dessa maneira. O mundo é um grande supermercado, apostado na satisfação imediata. Nós hoje não chegamos a ter sede, somos mais turistas que viajantes, vivemos uma vida muito domesticada em relação ao nosso projeto humano. Não há tempo para grandes sedes. Não há oportunidade para criar grandes desejos. Temos pequenas necessidades que vamos satisfazendo. O que é que pode ser o contributo da religião, o contributo da espiritualidade, à cultura contemporânea? Também mostrar que a fé é um laboratório da sede. A fé e a experiência espiritual têm de criar grandes sedentos, capazes de mostrar que a felicidade do ser humano só se descobre quando nós desejarmos coisas maiores do que nós, quando tivermos mais olhos que barriga, quando projetarmos o nosso coração para uma distância que se calhar os nossos pés não vão conseguir percorrer. Mas é essa transcendência em relação à vida que nos vai dar uma outra dimensão. Não pode ser só isto. A nossa vida não pode ser só este tráfico sonolento e apressado de uma satisfação imediata. Aquilo que o psicanalista Jacques Lacan dizia, que o mundo contemporâneo está apostado em oferecer e em soterrar o desejo debaixo de um conjunto de mercadorias e de serviços que não foram pedidos. É preciso escutar a voz da nossa sede.

O Papa Francisco parece muito avesso às certezas. Temos visto isso durante o pontificado dele: gosta de provocar pequenas agitações e discussões, porque acha que o processo de discutir os assuntos é mais importante do que as certezas. Isto é o Papa a estimular estas sedes na Igreja?
O Papa Francisco tem trazido a valorização da sinodalidade da Igreja. Para ele, de facto, a Igreja é um synodos, é um caminho feito em comum, e nesse sentido é impressionante a forma como ele introduz os sínodos. O último sínodo sobre a família, por exemplo. Ele disse aos bispos, aos representantes das conferências episcopais: “Falem com total liberdade, falem com parresia, falem com abertura.” Isso é o desejo muito grande de escutar a sede profunda, escutar a voz, sem recalcamentos, sem tibiezas, que muitas vezes escondem o que é o realismo da situação e da história. Depois, o Papa Francisco dá muito valor ao processo. Lembro-me de, no princípio do pontificado, ouvir o padre [Antonio] Spadaro, que é um colaborador próximo do Papa Francisco — um jesuíta e diretor da importante revista Civiltà Cattolica — a dizer isto depois de uma entrevista ao Papa: possivelmente, o Papa não sabe todos os lugares para onde quer ir, mas para ele mais importante do que ter o ponto de chegada completamente objetivado e definido, é fazer entrar num processo, entrar num caminho onde o discernimento, onde a escuta da própria sede, onde a sinodalidade, a escuta das várias vozes, é um caminho fundamental. Nesse sentido, o contributo do Papa Francisco é um contributo que ajuda a edificar a Igreja, porque dá uma corresponsabilidade muito grande aos vários atores eclesiais.

“Um poeta não se faz só numa biblioteca”

Gostava de fazer uma viagem no tempo até à sua infância e ao seu percurso religioso e literário para depois voltar a algumas referências do retiro. Nasceu na ilha da Madeira, mas foi muito pequenino para Angola, portanto calculo que as suas primeiras memórias sejam de Angola.
Sim, as primeiras memórias são de Angola. Embora seja curioso, porque nós vivíamos no Lobito, mas num bairro onde a presença dos madeirenses era muito forte. De facto, era Angola, e lembro-me da escola, dos meus amigos, sentia-me a viver uma infância africana, mas ao mesmo tempo o mundo insular, das tradições, das memórias, da linguagem, acompanhou-me desde sempre. Eu sabia que estava ali naquele contexto, mas que havia uma outra pertença.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Como é que era a sua vida lá em Angola com a sua família, uma família de pescadores?
Era uma vida normalíssima. Penso que tive muita sorte de vir de um mundo ainda ligado às profissões artesanais, porque há um contacto com a natureza, com os elementos, há uma disponibilidade quase contemplativa. Eu lembro-me de, pequeno, nas férias escolares, ir com o meu pai e com a companha do barco, e lembro-me de estar sentado na proa a olhar o fundo do mar, a olhar mais distante, a paisagem da terra que se ia avistando, e isso de certa forma também deu uma largueza ao meu olhar. Depois, África também tem isso, tem uma dimensão do espaço. Todas as coisas têm espaço. As ruas são maiores, as casas são maiores, o espaço aberto é maior. A experiência de África, em grande medida, pelo menos na minha perceção de miúdo, era o espaço. Haver um campo de futebol entre a minha casa e a casa dos meus tios, haver uma extensão a perder de vista de território e de árvores, haver a praia ao nosso alcance. Essa relação com o espaço disponível, aberto, não construído, é alguma coisa muito interessante, porque dá uma liberdade de movimentos e uma agilidade interior que sem dúvida marcam.

Isso por contraste à Madeira, onde regressou já com cerca de dez anos, não foi?
Voltar à Madeira foi interessante desse ponto de vista. Por um lado, uma experiência de concentração. No microcosmos insular, tudo é muito concentrado, está lá tudo. Mas tudo numa dimensão muito pequena, minúscula. O que é uma outra experiência do espaço e uma outra experiência do tempo.

Essa forma como olha para o espaço, para a dimensão das coisas à sua volta, é uma análise que faz hoje ou já na altura sentia as coisas dessa forma quase literária?
Descobri cedo como forma de olhar. Lembro-me de uma história que me marcou muito, que foi o primeiro outono que passei na Madeira. Cheguei por altura do verão e no primeiro outono lembro-me de que a professora — era o quarto ano — propôs um exercício que era irmos até a um parque à procura do outono, de sinais do outono. Eu não sabia o que era o outono. Em África há duas estações, o verão e o inverno, e não tinha aquela experiência, e lembro-me perfeitamente que foi das coisas que marcaram a vida daquele miúdo, andar à procura do outono e a tentar descobrir, na tonalidade das folhas, alguma sabedoria do tempo que eu ainda não tinha apreendido.

E o que é que descobriu?
Descobri o que o tempo pode ser. No fundo, pelos cheiros, pelo sinais, descobri que o tempo pode ser muitas coisas. De repente, passar de duas estações para quatro é valorizar os estados intermédios, e isso é um saber importante na vida.

Quer com o seu pai na pesca, quer nessas experiências que relata, vivia muito próximo da natureza, até porque vivia numa zona rural. Essa proximidade da natureza já o aproximava da poesia?
A natureza é um sítio sem resposta. A natureza dá possibilidade de uma escuta, treina-nos a visão, treina-nos a aproximação, e viver no litoral da Madeira, numa pequena vila, como eu vivi, dá uma grande relação com a exterioridade, com as idas e vindas, a atenção aos barcos, a atenção aos pássaros. Eu lembro-me, por exemplo, quando o meu pai e os outros pescadores iam pescar para a zona das Selvagens, muitas vezes traziam aos filhos pequenos — hoje isso não era possível — uma cagarra, que é uma ave da família da gaivota, e eram assim presentes que não têm a ver com a sociedade de consumo, mas eram presentes poéticos, se quisermos. Era como presentear o voo, a possibilidade de voar, a possibilidade de ser outras coisas, de chegar a lugares onde nós não chegaremos. Isso, na sensibilidade muito simples das trocas familiares, foi sempre um elemento importante, que de certa forma contribuía também para uma educação poética. Um poeta não se faz só numa biblioteca. Um poeta também se cria nas profissões artesanais, cria-se entre pessoas que são analfabetas, mas que são muito cultas, porque têm as histórias, têm as tradições orais, têm os cancioneiros, têm os poemas.

Foi assim no seu caso?
A minha iniciação literária foi muito por via oral. Primeiro, contactei com a literatura oral e só depois, quando entrei no seminário — entrei cedo no seminário –, de repente encontrei uma grande biblioteca. Foi outra descoberta. Mas, ao mesmo tempo, aquilo que a biblioteca me oferecia, primeiramente a voz humana ofereceu-me. E ofereceu-me com carácter impressivo, que não me largou mais. Mesmo a própria Bíblia. Por exemplo, o livro do Cântico dos Cânticos, que foi um livro que depois eu traduzi, é um livro que me marca muito, mesmo a minha espiritualidade…

É um poema…
Porque é um poema… Mas a primeira vez que eu o ouvi, um trecho, foi-me dito de cor por uma mulher analfabeta. Eu fiquei num estado de fascínio por aquele poema, de que não sabia a proveniência, e depois descobri que era um poema que afinal estava escrito. Acho que na formação de uma pessoa — cada uma tem a sua formação — podemos valorizar vidas muito simples, vidas que vêm de outro mundo. Penso, por exemplo, nesta transformação que Portugal tem vivido nestas últimas décadas. No fundo, é a transição apressada de mundos. No meu mundo, no mundo da minha infância, havia ainda muitas pessoas analfabetas ou com uma formação escolar muito básica. O que não quer dizer que elas não fossem transportadoras de uma sabedoria, e com uma intensidade que até nem sempre a sabedoria muito escolarizada alcança. Mas é claro, é importante a escolarização. Eu penso que o caminho que Portugal fez nestes últimos anos é um caminho muito importante.

O que é que o levou para o seminário com 11 anos?
Um sentimento religioso, se quisermos. Penso que na infância as representações que fazemos de nós têm muito a ver com a imitação, com o desejo de imitar os outros, de ser como os outros. A figura do padre da minha paróquia, a bondade dele, a sabedoria dele, penso que me tocaram. Mas foi também um sentimento religioso, como uma criança pode sentir. Não tive nenhuma visão, nenhuma aparição. Foi um processo muito natural e pelo menos um desejo de experimentar, de aprofundar um início de conversa de Deus que eu senti no meu coração.

E foi quando entrou no seminário que começou a contactar mais diretamente com a literatura, com uma biblioteca e com os livros.
Isso foi extraordinário. Passar de um contexto de um mundo muito ligado às profissões artesanais, de uma casa onde não havia a presença do livro, para o seminário do Funchal, que na época em que eu andei tinha duas bibliotecas enormes — uma mais ligada à História e à ciência, e outra de literatura e e de religião –, é como passar para o outro lado do espelho. É como entrar num mundo novo. Teve uma força de sedução enorme na criança e no adolescente que eu fui nesses anos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Como é que se tornou, depois, num poeta? Aos 16 anos, já escrevia o primeiro poema, o conhecido “A Infância de Herberto Hélder”.
Esse processo é sobretudo um processo interior. Penso que a vocação poética é uma vocação ao silêncio, à escuta, e ao mesmo tempo é uma espécie de crença na palavra, naquilo que às vezes às cegas a palavra é capaz de nos dar. O chegar à poesia, podendo biograficamente não ser uma coisa muito evidente, acabou por ser um processo muito natural. Lembro-me do impacto que teve em mim a leitura do Photomaton & Vox, do Herberto Hélder, mas certamente isso misturado com as leituras bíblicas, com o ressoar do mundo mais arcaico da minha infância, despertou uma espécie de possibilidade expressiva, que a poesia me oferecia.

O próprio poema tem influência religiosa. O primeiro verso, “No princípio era a ilha”…
Há uma música bíblica em toda a poesia que eu escrevi, sendo mesmo uma poesia terrena. Eu não escrevo uma poesia religiosa, escrevo poesia, ponto final.

Durante os seus estudos bíblicos, teológicos, nunca deixou de escrever poesia. Como era vista essa sua dimensão poética, artística, no interior da Igreja? Há quem defenda que os padres devem estar focados só na atividade pastoral.
Em todos os seminários por onde passei, a estimulação de um percurso cultural e de uma maturação cultural era sempre uma das grandes preocupações das equipas formadoras. Encontrei sempre padres no meu percurso que foram mestres e que me estimularam muito à leitura, à escrita, que valorizaram muito os meus exercícios, mesmo incipientes, de escrita. Senti-me sempre muito valorizado nesse caminho e nunca senti que era “ou, ou”. Sempre senti que era alguma coisa absolutamente compaginável com uma vocação religiosa.

Os autores contemporâneos ajudam-nos a ler a Bíblia de uma forma pertinente. Penso que Fernando Pessoa pode ser um mestre para um padre católico, mesmo se ele não foi católico e se o discurso dele era um discurso que até, em determinados momentos, se constitui criticamente em relação à tradição católica. Mas penso que pode ser um mestre pela radicalidade extrema com que ele vive.

Ao mesmo tempo e era precisamente isso que dizia os seus poemas não são homilias. Não pretende na sua produção literária passar uma mensagem religiosa, como outros padres poetas, assumidamente, pretendem.
A minha poesia não é uma poesia religiosa. O tema do religioso certamente está presente, porque é um tema absolutamente central na minha vida e naturalmente respira na poesia. Mas eu, como poeta, não sou um poeta religioso. Sou um poeta. O Ruy Cinatti dizia isso, que não há uma poesia religiosa, ou não há uma poesia cristã. Há cristãos que escrevem poesia. Nesse sentido, eu sou um cristão que escreve poesia. Para mim, aquilo que a Sophia de Mello Breyner dizia, “o poema sabe mais do que eu”, é verdade. Não sou eu que conduzo o poema. Se eu soubesse à partida o que o poema ia dizer, acho que nunca conseguiria chegar ao poema. O poema é que se diz a ele mesmo, e é importante essa liberdade, essa espécie de neutralidade, para que o poema diga aquilo que tem de dizer, aquilo que pode dizer naquele momento.

E portanto tem sido natural que a sua vida enquanto padre seja sobretudo passada na universidade, nestes contextos culturais…
É um serviço à Igreja. Eu mantive sempre uma atividade pastoral, chamemos-lhe assim, pastoral tradicional. Já fui pároco numa paróquia no Funchal, mantive sempre uma colaboração numa paróquia para a celebração dos sacramentos e para uma relação direta a esse nível com as pessoas, com os fiéis. Mas desde sempre a Igreja me pediu que ficasse ligado ao ensino, à investigação, no campo da teologia, no mundo universitário. E eu encaro isso de uma forma muito simples, como um serviço. Uma biblioteca, um centro de investigação, uma sala de aulas, são também para um padre um lugar de atividade pastoral. Não no sentido de uma catequese, mas no sentido da procura de uma verdade, de um caminho feito com outros, e para mim num campo que me apaixona muito, que é o campo da teologia e o campo dos estudos bíblicos, que é a minha área de trabalho.

“Falta claramente ao discurso teológico uma tradução existencial”

Na sua obra cruza muito frequentemente o estudo da Bíblia com uma série de referências a autores contemporâneos, da tradição cristã ou totalmente fora da esfera cristã. O próprio Papa Francisco, no agradecimento que lhe faz no final, refere que as suas meditações abriram o retiro ao mundo contemporâneo, “através das referências literárias, poéticas e ligadas a acontecimentos da atualidade”. Ele próprio reconhece esta importância de cruzar a tradição cristã com a produção literária, artística?
Isso parece-me muito importante, porque um exegeta, um biblista, por um lado é um filólogo, que fica ligado àquele texto e ao trabalho específico daquele texto, ao conhecimento das línguas, do hebraico, do grego, o trabalho sobre as edições críticas, os textos originais, e sobre a tradição dos comentários cristãos àqueles textos. Isso é alguma coisa que me interessa muito. Mas claramente há toda a dimensão hermenêutica, e aí o olhar tem de se enriquecer com a leitura. A Bíblia é palavra sagrada. É sagrada, por um lado, e nesse sentido aquela palavra tem um estatuto singular, mas não deixa de ser palavra. A Bíblia não deixa de ser uma biblioteca, não deixa de ser um conjunto de poemas, um conjunto de cartas, um conjunto de Evangelhos, um conjunto de apocalipses, de textos de corte, de textos amorosos, de narrativas epopeicas, e por isso o conhecimento que a teoria da literatura, mas também a ciência ou o cinema, nos oferecem sobre o que é uma narrativa ou uma história, o impacto desta palavra no leitor, é absolutamente decisivo para adensar a interpretação e a pertinência da leitura que nós podemos fazer. Eu digo sempre aos meus alunos que um estudioso da Bíblia, ou um padre, tem de ver muito cinema, tem de ouvir muita música, tem de contactar muito com o mundo das artes, tem de conhecer psicanálise, tem de ler antropologia. Isso vai enriquecer a compreensão do humano.

E o Papa Francisco reconhece a importância dessas sinergias.
O Papa Francisco tem uma maturação no seu discernimento que penso que o torna um verdadeiro mestre. Ele sabe que a tradição cristã só ganha no encontro com uma dimensão encarnacional. A dimensão da fé precisa de uma tradução cultural, de uma tradução existencial.

Um padre é um companheiro de viagem, alguém que, a determinados momento, lhe cabe a missão de fazer uma proposta, de relembrar o essencial. Mas ele próprio também tem de se colocar num desprendimento muito grande em relação àquilo que são as suas ideias próprias e a sua sensibilidade, para poder servir.

As meditações que fez no retiro do Papa estão cheias de referências a autores que nem sequer estão relacionados com a tradição da Igreja…
…mas são mestres inesperados. São mestres inesperados. Eu compreendo que para construir um discurso de fé pertinente no mundo de hoje é preciso também acolher os mestres inesperados. Por exemplo, Samuel Beckett é um mestre da sede. Santo Agostinho é um mestre da sede, mas Samuel Beckett é também um mestre da sede. E se calhar eu posso ouvir a voz dos dois. Eu tanto posso ler o Evangelho de São João, que é talvez o Evangelho em que a questão da sede é mais trabalhada.

É com esse que abre o retiro…
É com esse que abro o retiro e é sem dúvida o Evangelho mais citado. Mas eu sei que a poeta Emily Dickinson também pode dizer coisas muito importantes acerca da sede. Ou que o Eduardo Galeano, ou o Tolstoi, me podem ensinar alguma coisa sobre o ser humano.

Houve arregalares de olhos na audiência quando citava esses autores?
A minha experiência é precisamente o oposto. É que há uma curiosidade muito grande, e até um entusiasmo, por perceber que as questões que no fundo nos mobilizam são questões partilhadas, são questões condivididas pelo mundo contemporâneo. Aí, de facto penso que a literatura é um interface muito significativo. Como dizia o Marcel Proust, a literatura é uma espécie de lente fotográfica que amplia o humano, e amplia dando-nos a ver melhor o que está em causa em determinadas circunstâncias. Daí eu citar a literatura com toda a naturalidade e sentir um acolhimento muito grande e muito interessado nestas vozes inesperadas da contemporaneidade, mas que penso que cada vez mais o discurso crente tem de tomar como companheiras.

Os padres, por esse mundo fora, deviam começar a citar mais autores contemporâneos e menos a Bíblia nas homilias?
Penso que não é “ou, ou”. Penso que os autores contemporâneos ajudam-nos a ler a Bíblia de uma forma pertinente. Penso que Fernando Pessoa pode ser um mestre para um padre católico, mesmo se ele não foi católico e se o discurso dele era um discurso que até, em determinados momentos, se constitui criticamente em relação à tradição católica. Mas penso que pode ser um mestre pela radicalidade extrema com que ele vive.

Citou Fernando Pessoa no retiro a propósito do aprender a desaprender.
Mas podia citá-lo por muitas coisas! O elogio que ele faz do desprendimento do nosso olhar, das filosofias prévias, dos círculos hermenêuticos que nos condicionam. Libertarmo-nos disso para olharmos de coração desarmado a própria realidade e nos deixarmos tocar por ela. Isso é muito a pedagogia de Pessoa. O Alberto Caeiro, por exemplo. É tudo nessa pedagogia: para olhar não basta ver, é preciso não ter filosofia nenhuma. Esse processo de esvaziamento é alguma coisa que num retiro espiritual é vital, porque se eu num retiro parto apenas das minhas ideias que eu trago armazenadas e não desloco o meu olhar de uma forma disponível para ser tocado por outra coisa, eu acabo por não ganhar aquela oportunidade.

Foi uma experiência espiritualmente muito marcante para mim, e não foi apenas alguma coisa que eu passei para os outros, mas sobretudo é uma palavra que eu procurei escutar e que eu conservo no meu coração. Sem dúvida, é alguma coisa que, na simplicidade da minha vida e no realismo da minha vida, hei de continuar a pensar e a rezar.

Quando escreve, a dada altura, na terceira meditação, que “intelectualizamos demasiado a fé”, porque “acudimos mais à razão do que ao sentimento”, está a explicar que racionalizar a fé uma contradição?
Aí, eu vejo um posicionamento crítico em relação à história da teologia, porque a teologia tomou como aliada a filosofia e vive sobretudo na valorização das razões, da criação, no fundo, de um conjunto de perguntas racionais, dentro de um processo teórico de aprofundamento, que é muito necessário. De novo, aqui não é “ou, ou”. A filosofia é muito importante para o elaborar da própria teologia, da própria procura de Deus. Mas às vezes uma teologia racional deixa de lado dimensões muito importantes da vida, da pessoa e do mundo. Por exemplo, toda a parte emocional, todas as dimensões psicológicas, toda a questão da sensibilidade, do afeto, fica muitas vezes de lado. Isso não conta, o que conta são os argumentos, são as ideias, são os tratados. Penso que quando a teologia contemporânea escolheu como parceira a metafísica ou uma filosofia mais de carácter racional e se fechou em relação às questões do romantismo, sem dúvida que escolheu uma via muito mais asséptica. Hoje, falta claramente ao discurso teológico uma tradução existencial.

Acha que o Papa Francisco traz essa dimensão ao discurso teológico, com todos os gestos de proximidade às periferias?
Hoje, em que é que o Cristianismo se pode renovar? Não é em termos dos conteúdos da fé. As grandes verdades da fé estão estabelecidas. Os últimos concílios não foram concílios dogmáticos, foram concílios pastorais, porque no fundo as verdades de fé estão definidas. Qual é que é a tarefa do presente? O Papa Francisco vê muito bem. A tarefa do presente é uma tradução existencial relevante da proposta cristã. Este encontro que ele propõe com as periferias, com os mais pobres, a atenção à pessoa humana, aos seus contextos, isto é a procura de alguma coisa que uma teologia muito fechada na razão não consegue tocar. Isso é hoje especialmente sentido no discurso eclesial. Nós podemos ficar a falar em circuito fechado, num discurso muito correto do ponto de vista racional, teológico, mas sem nenhuma legibilidade para as mulheres e para os homens do nosso tempo. No fundo, o Papa Francisco percebe muito isso e ele procura uma legibilidade que ao mesmo tempo é uma oportunidade para a fé cristã neste arranque do século XXI.

O pregador não é um doutrinador. O pregador tem um papel muito simples, que é ajudar cada um a se colocar perante Deus. E é Deus que fala. Muitas vezes, aquilo que vai tocar e ser decisivo na experiência pessoal não é uma coisa condicionada por ninguém, é uma palavra talvez secundária, que chegou de forma indireta, e essa palavra é que se revelou a palavra certa para aquele momento da vida das pessoas.

Isso leva-me a perguntar-lhe uma coisa que já lhe perguntaram naquela conferência que assinalou os cinco anos do pontificado de Francisco e onde contou o seu testemunho sobre o retiro. Tinha ali, à sua frente, os mais importantes membros da Cúria Romana, do governo da Igreja Católica. Alguma vez sentiu a tentação de lhes passar um recado sobre a forma de responder aos problemas atuais da Igreja?
Quer na Capela do Rato, onde sou capelão, quer em todos os contextos, eu sei que o caminho que não devemos seguir é esse. De aproveitar os contextos não para fazer um caminho mais longo, mas para passar um recado ou para dizer alguma coisa concreta em relação a alguém. Acredito que esse não é o caminho. O caminho é expor uma perspetiva, mas com simplicidade e abertura. Um diretor espiritual não é um domesticador de consciências nem é um juiz que entra para ajustes de contas. Essa não é a minha maneira de perceber o papel de um padre. Um padre é um companheiro de viagem, alguém que, a determinados momento, lhe cabe a missão de fazer uma proposta, de relembrar o essencial. Mas ele próprio também tem de se colocar num desprendimento muito grande em relação àquilo que são as suas ideias próprias e a sua sensibilidade, para poder servir.

Quando foi para o retiro, ia com alguma ambição de a sua proposta contribuir para mudar algo na Igreja?
Eu quero servir, e servir é diferente de ter ambições. Servir é fazer o que temos a fazer e ir embora. Isso é servir. Condicionar é outra coisa. Francamente, o que eu mais desejei é que o retiro me mudasse a mim próprio, me convertesse.

E mudou?
Ninguém é bom juiz em causa própria (risos). Mas sem dúvida que foi uma experiência espiritualmente muito marcante para mim, e não foi apenas alguma coisa que eu passei para os outros, mas sobretudo é uma palavra que eu procurei escutar e que eu conservo no meu coração. Sem dúvida, é alguma coisa que, na simplicidade da minha vida e no realismo da minha vida, hei de continuar a pensar e a rezar.

Porque o padre Tolentino também fez o retiro, também passou pelo silêncio…
Exatamente. Aquele que faz o retiro tem de estar em retiro, embora estivesse disponível para servir escutando as pessoas que procuravam, que queriam falar sobre as suas vidas, confessar-se. Mas a verdade é que também me senti a fazer retiro.

A mensagem que levou passou da forma que queria para os participantes?
Eu tenho uma visão muito humilde do papel do pregador. O pregador não é um doutrinador. O pregador tem um papel muito simples, que é ajudar cada um a se colocar perante Deus. E é Deus que fala. Muitas vezes, aquilo que vai tocar e ser decisivo na experiência pessoal não é uma coisa condicionada por ninguém, é uma palavra talvez secundária, que chegou de forma indireta, e essa palavra é que se revelou a palavra certa para aquele momento da vida das pessoas. De maneira que eu não tenho nenhuma ambição nem nenhuma ideia forte do que foi a minha função. Eu servi e voltei para a minha vida normal. Se as pessoas disseram que aquilo serviu para alguma coisa, que fui útil para a vida, eu fico contente. Mas apenas isso.

Moody’s diz que sobe ‘rating’ português se concluir que progressos são sustentáveis

21/4/2018, 18:14

A agência de notação financeira Moody's disse este sábado que o 'rating' atribuído a Portugal será melhorado se concluir que os progressos alcançados a nível orçamental e económico são sustentáveis.

ANDREW GOMBERT/EPA

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  • Agência Lusa
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A agência de notação financeira Moody’s disse este sábado que o ‘rating’ atribuído a Portugal será melhorado se concluir que os progressos alcançados a nível orçamental e económico são sustentáveis, e se a redução da dívida for constante. A Moody’s tinha agendado para a sexta-feira passada uma revisão do ‘rating’ atribuído a Portugal, mas optou por não se pronunciar, mantendo a avaliação da dívida portuguesa em ‘Ba1’, uma notação que é considerada ‘lixo’.

Questionada pela agência Lusa sobre o que motivou a manutenção, a Moody’s remeteu para a avaliação que tinha feito à dívida pública portuguesa em setembro passado e que levou a uma melhoria da perspetiva para positiva, indicando que a notação poderá ser melhorada num horizonte até 18 meses. “Como dissemos na altura, o ‘rating’ atribuído à dívida soberana portuguesa será revisto em alta para uma nota de investimento, se a Moody’s concluir que as tendências positivas na economia e na frente orçamental são sustentáveis e que a dívida muito elevada entra numa tendência descendente constante”, lê-se na resposta enviada pela agência de notação à Lusa, por correio eletrónico.

Essa conclusão, explica a Moody’s, deverá ser suportada por “melhorias orçamentais sustentáveis que apontem para um registo mais consistente de excedentes primários [excluem os encargos com a dívida pública], por evidências de que o crescimento económico continua a ser amplo, apoiando a resiliência a choques, e por novos avanços na recapitalização dos bancos mais fracos”.

A próxima data prevista para que a agência norte-americana se pronuncie sobre Portugal é 12 de outubro, sendo que a Moody’s salienta que o calendário de avaliação é apenas indicativo. Depois de ter melhorado a perspetiva sobre a dívida em setembro, e de um vice-presidente da agência ter dito que a Portugal estaria prestes a regressar à nota de investimento, havia a expectativa nos mercados de que a Moody’s tiraria o país do ‘lixo’, na passada sexta-feira.

No entanto, a Moody’s optou por não rever o ‘rating’ atribuído a Portugal, mantendo a notação ‘Ba1’, atribuída ao país desde julho de 2014. Assim, a agência norte-americana continua a ser a única entre as quatro maiores a atribuir à dívida pública portuguesa uma nota especulativa, quando já a Standard & Poor’s (S&P), Fitch e DBRS colocam Portugal no patamar de investimento.

Mariana Mortágua: “Se num governo todos forem Centeno, então a gestão financeira desse governo é errada”

HÁ 2 HORAS

A deputada do Bloco de Esquerda considera que o ministro das Finanças está a violar o que acordou com o BE em outubro passado e desconfia que Centeno quer chegar a défice 0% já este ano.

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

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Sem qualquer ameaça de rutura com o Governo que o Bloco e Esquerda apoia no Parlamento desde 2015, Mariana Mortágua atira à gestão de Mário Centeno e a um Executivo que acusa de ter mudado as regras a meio do jogo, quando alinhou pela revisão em baixa do défice para este ano que constava no Orçamento (0,7% em vez de 1,1%). “Se num governo todos forem Centeno e se o Governo for gerido a partir do Ministério das Finanças, então será sempre mal gerido, porque o ministro das Finanças não tem capacidade para tomar decisões que são importantes em cada setor”, afirma.

Numa entrevista à TSF e ao Diário de Notícias, a deputada do BE diz que as últimas novas posições do PS — no programa de reformas antecipadas, no défice e nos aumentos da função pública — mostram que o partido está na “vertigem de uma minoria absoluta e essa vertigem que o PS tem mostrado mostra bem a necessidade de alterar a relação de forças entre a esquerda e o centro no futuro próximo”. Os bloquistas tenta, assim, explorar as recentes posições socialistas para pressionar a negociação do próximo Orçamento do Estado, o único da legislatura apoiada numa maioria de esquerda. Tanto assim é que Mariana Mortágua diz que em matéria de reformas antecipadas “ainda vamos a tempo de as negociar neste Orçamento do Estado” ou que nos aumentos da função pública Centeno “tentou testar negativamente a proposta” de não acontecerem em 2019.

Ao mesmo tempo, desvaloriza os acordos que António Costa firmou com Rui Rio na semana passada, em matéria de fundos comunitários e de descentralização. “Da parte do Bloco de Esquerda, sempre estivemos disponíveis para essas discussões e não deixaremos de estar”.

Quanto a Centeno e à estratégia orçamental, o entendimento de Mortágua é que “o ajustamento que se fez no saldo primário em 2017 ficou centenas de milhões para além daquilo que estava planeado e, portanto, só existe esta folga em 2018, só é possível fazer isto em 2018”. E o “isto” é “fazer agora investimentos que não podem ser adiados”, explica quando diz que é “um erro” a estratégia orçamental do Governo: “É um erro não o fazer e querer adiar investimentos de que o país precisa hoje”.

Nós temos uma prioridade diferente: nós entendemos que se o crescimento económico, porque há uma estratégia que está a resultar, produz folga orçamental – e está a produzir folga orçamental porque as receitas estão a crescer mais, ou porque há menos despesa com juros, ou porque os juros estão negativos; enfim, há um conjunto de fatores que faz com que haja folga orçamental, também em 2017 porque houve despesa que não foi executada -, essa folga tem de ser usada para fazer agora investimentos que não podem ser adiados. Portanto, é um erro não o fazer e querer adiar investimentos de que o país precisa hoje”.

E uma das causas deste erro é a que o Governo seja gerido a partir dos ministério das Finanças: “Se num governo todos forem Centeno, então a gestão financeira desse governo é errada”. O Bloco insiste que o ministro alterou a estratégia face ao negociado com os parceiros em outubro passado por altura do Orçamento do Estado. “Se temos previsões e vontade de fazer investimento, se o Governo assume que esses investimentos são prioritários e se diz que são prioritários, mas não é possível porque não há folga, mas depois há folga. Então porque é que não se fazem os investimentos e se opta por internalizar a folga indo para além de metas que serviam há quatro meses, mas hoje já não servem?”.

Para o BE ” isto não é uma luta entre quem quer serviços públicos e quem quer contas públicas consolidadas, quem quer emprego com direitos e quem quer contas públicas consolidadas”, até porque o partido defende “é possível ter ambas”. Só desconfia que a intenção de Centeno continue a ser antecipar metas para mostrar em Bruxelas: ” Se nós contarmos já, nestes 0,7% [défice previsto para este ano no Programa de Estabilidade], com os 792 milhões de euros que já sabemos que vão diretos ao Novo Banco – ao acionista dono do Novo Banco para o recapitalizar -, isto quer dizer que o ministro das Finanças está a propor para 2018 um défice de 0,3% e como bem sabemos que as contas normalmente estão folgadas, estamos a falar de um défice muito próximo dos 0% em 2018, o que fica bastante mais de mil milhões abaixo daquilo que tinham sido os limites das negociações orçamentais entre o Bloco de Esquerda e o Governo”.

É por isto que nesta terça-feira quer que o Parlamento se pronuncie na votação do projeto de resolução do BE que se opõe às novas metas que constam no Programa de Estabilidade apresentado há uma semana e que será debatido nesse mesmo dia. CDS e PCP também avançaram com iniciativas legislativas semelhantes.

Entrevista a Terry Virts, o astronauta que ouviu Deus enquanto sobrevoava Portugal

22 Abril 2018

Marta Leite Ferreira

É dos homens que mais tempo passou no espaço. Viu a guerra na Ucrânia começar ao lado de russos. Teve cancro e diz que se o soubesse iria na mesma. Porque acredita na ciência e acha que encontrou Deus

A viagem de Terry Virts para o espaço começou muito antes daquele em dia que se sentou a bordo da nave Endeavour para passar quinze dias à volta da Terra. Tudo começou quando tinha seis anos e lhe ofereceram um livro sobre a missão Apollo 11, que levou o Homem a pisar a Lua pela primeira vez, repleto de imagens e com apenas meia dúzia de frases sobre o assunto. Depois de o folhear, o pequeno Terry Virts tomou a decisão de ser piloto da Força Aérea e forrou o quarto com imagens de aviões e de foguetões que rasgava nas revistas. É nisso que pensava a 8 de fevereiro de 2014 quando vestiu pela primeira vez o fato de astronauta da NASA e rumou para a Estação Espacial Internacional. “Nisso e em manter-me vivo”, confessa ao Observador entre risos.

Foi o primeiro passo de uma grande aventura: Terry Virts tornou-se numa das pessoas que mais tempo seguido passou no espaço e comandou a Estação Espacial Internacional quando ela estava ocupada por cientistas dos Estados Unidos e da Rússia, duas nações que em Terra se confrontavam com guerras diplomáticas. Ao Observador, confessa ter sido doloroso ver os companheiros cosmonautas sofrer ao verem a Ucrânia ser bombardeada nos primeiros tempos da guerra civil. Ali em cima, no entanto, a prioridade não é a política: é sobreviver a destroços perdidos a velocidades alucinantes, a falsos alarmes que fazem temer pela vida e à radiação cósmica, que provocou a Terry Virts dois cancros, provavelmente por causa de alterações genéticas. Não guarda ressentimentos sobre os maus momentos nem voltaria atrás: para estar na Terra tem a vida toda, explica-nos.

Em Portugal para participar na Cimeira da National Geographic, é a primeira vez de Terry Virts em Portugal. Mas conhece bem o país lá de cima: é que foi ao sobrevoar Portugal que viu o primeiro nascer do sol a partir do espaço. Foi por cima de Portugal que encontrou um tom de azul que nunca tinha visto antes. E foi à conta dessa visão que confirmou aquilo em que sempre acreditou: ao contrário de Iuri Gagarin, Terry Virts diz que ouviu Deus enquanto apreciava a vista.

Esteve cerca de sete meses no espaço. O tempo custa a passar quando se está lá em cima?
É verdade, tenho a quarta missão consecutiva mais longa do mundo. Mas nem damos pelo tempo a passar porque acontece tudo a correr! Eu sei que alguns dos meus colegas ficam aborrecidos e conseguem até fazer uma contagem decrescente até à data de regressarem a Terra, mas para mim acontece tudo muito rapidamente. No meu caso isso foi ainda mais engraçado, porque a minha última missão foi aumentada por mais um mês por causa da explosão de um foguete que tivemos de investigar, por isso a NASA adiou a nossa substituição. A certa altura, nenhum de nós sabia quando é que voltaria para casa. Sentimo-nos verdadeiramente presos no espaço. E eu olhei para isso como uma mais valia. Pensei: “Esta é a minha oportunidade de estar no espaço. Vou passar o resto da minha vida na Terra, por isso mais vale apreciar o tempo que tenho de passar cá em cima.”

Passou boa parte do tempo a fotografar a Terra.
Sim, tirei literalmente milhares de fotografias ao planeta e depois reuni algumas delas no meu livro da National Geographic “View from Above: An Astronaut Looks at the World”, porque adoro essa arte. Adoro contar histórias com as câmaras e prova disso está no filme IMAX “A Beautiful Planet”, em que participei em 2016. Acho que em nenhum desses trabalhos dá para descrever a sensação de ver o planeta Terra com aquela perspetiva. É incrível, mas a não ser que se veja com os próprios olhos, claramente não tem o mesmo efeito. A primeira vez que vi a Terra à luz do dia foi quando fiz um passeio espacial para arranjar um braço enferrujado da Estação Espacial Internacional. Tínhamos acabado de sobrevoar o Oceano Atlântico e julgo mesmo que estávamos por cima de Portugal.

Quando me virei e vi aquele tom de azul, senti que ouvi alguma coisa vinda de Deus. Tive de regressar logo ao trabalho depois desse encontro. Mas encontrei ali a fronteira entre o que é mundano e o que é sublime. Encontrei respostas.

Como foi?
Sabe, quando os astronautas estão no espaço também estão sempre cheios de trabalho. Há mesmo muita coisa para fazer e até quando vamos para um passeio fora da Estação é para tratar de algum detalhe das máquinas que pode estar errado. Mas naquela vez decidi parar uns segundos e olhar para trás. E quando olhei para trás vi o nascer do sol: havia um azul ao longo de toda a atmosfera da Terra. Foi uma coisa tão intensa que lembro-me de pensar: “Nunca vi aquele tom de azul.” Fiquei chocado, até, porque depois de tirar tantas fotografias e de tanta preparação em casa pensava que já tinha visto todos os pormenores do planeta onde vivia. Eu sou cristão e essa experiência teve um impacto muito grande em mim.

Iuri Gagarin era religioso e disse não ter visto Deus.
Bem… Não sinto que mudei, mas penso que agora vejo o mundo de uma forma muito menos monocromática. Quando somos jovens achamos que temos as respostas para tudo e pensamos que sabemos definir completamente o que é certo e o que é errado. Agora, provavelmente, consigo compreender todos os tons que existem entre o branco e o preto que eu achava que a vida era. Descobri claro que a maldade e a crueldade vivem na Terra, mas também aprendi muito sobre a condição humana. Mas posso dizer que, quando me virei para trás e vi aquele tom de azul de que falávamos, sinto que ouvi alguma coisa vinda de Deus e vinda de cima. Tive de regressar logo ao trabalho depois desse encontro, porque havia realmente muita coisa para fazer. Mas encontrei ali a fronteira entre o que é mundano e o que é sublime. Encontrei respostas.

Teve de enfrentar riscos para obter essas respostas, não foi?
Há muitos riscos, é verdade. Logo à partida, há o risco de o foguetão onde viajamos explodir no percurso entre a pista de lançamento e o espaço. Depois, há destroços a flutuar pelo espaço que nos podem acertar. Isso chegou a acontecer comigo: durante a minha missão fomos atingidos três vezes em oito meses por destroços que provocaram buracos na Estação Espacial Internacional, mais ou menos como aconteceu no filme “Gravidade”. O maior risco de todos é a radiação. Na verdade, tive cancro depois da minha missão. Não sei se foi exatamente por causa da radiação, mas posso partir do princípio que sim: tive cancro duas vezes e surgiram sempre depois dos meus regressos a casa. Fiquei impressionado por a NASA nem sequer ter estudado isso.

Não foi acompanhado pela NASA quando soube que tinha cancro?
Nós fazemos muitos exames médicos e análises antes e depois das nossas missões espaciais, mas pensava que a NASA continuaria a estudar a nossa evolução para perceber esses efeitos mais a longo prazo, principalmente os provocados pela radiação cósmica, mas nunca o fizeram. Eles fizeram isso com o Scott Kelly, claro, naquele estudo de um ano para saber os efeitos de longas presenças no espaço, tanto na mente como no corpo dos astronautas. Aliás, ele esteve na Estação Espacial Internacional comigo enquanto participava nesse estudo. Mas a verdade é que, além desse estudo, a NASA não tem grande matéria sobre esses mesmos efeitos. Em quinze anos que trabalhei na agência espacial nunca fui examinado nesses campos. E eu não sabia disso! Os médicos disseram que era provavelmente do efeito da radiação cósmica no meu ADN. Mas mesmo que soubesse disto em antemão, isso mudaria nada. Iria ao espaço à mesma.

Porquê?
Eu não sou uma daquelas pessoas que decide correr riscos só para sentir a adrenalina circular mais no sangue. Não salto do topo de pontes nem faço aquelas loucuras de saltar de um avião com fatos a imitar asas. Mas é preciso ter em conta que sou um piloto da Força Aérea dos Estados Unidos da América. Sou um militar. E, como o militar que sou, estou disposto a correr riscos se valerem a pena. E acho que explorar o espaço vale a pena, que a ciência vale a pena. Quanto ao cancro, tive a sorte de não ter os “maus cancros”. E a verdade é que já desapareceram, por isso não guardo ressentimentos. Sei que outros astronautas morreram de cancro. Quer dizer, perdi amigos por causa dessa doença. Mas sim, acho que vale a pena ter cancro em prol da ciência. Se não pensasse isso não o teria feito. Nunca se vai fazer nada que valha a pena recordar, que vá marcar o mundo de alguma forma, se não se correr riscos. Vocês portugueses sabem disso melhor que ninguém: se não se tivessem metido em barcos e entrado pelo oceano de um mundo completamente desconhecido, a História não teria este rumo.

Tive cancro duas vezes depois da minha missão. Em 15 anos que trabalhei na agência espacial nunca fui examinado nesses campos. E eu não sabia disso! Os médicos disseram que era provavelmente do efeito da radiação cósmica no meu ADN.

Nesses sete meses que passou no espaço, sentiu que perdeu alguma coisa na Terra?
Sim. A parte mais difícil de cumprir das missões da NASA é provavelmente o facto de ter deixado dois filhos para trás, mas como já eram adolescentes acho que eles não sofreram tanto assim com o facto do pai não estar em casa [risos]! Todas as semanas podíamos fazer uma chamada de vídeo com a nossa família e era engraçado, porque ficávamos a olhar uns para os outros sem dizer nada, como se não houvesse tema de conversa, porque nos vemos todos os dias. Estou a brincar, claro: isso acontecia, mas foi muito difícil. O que mais me custava era não ter aquele papel de os ajudar com os trabalhos de casa quando eram difíceis. Ou seja, participar nesses momentos tão simples da vida familiar.

Quais foram os momentos mais tensos que viveu no espaço?
A resposta a essa pergunta é a maior história que guardo da minha missão espacial. Eu comandei a Estação Espacial Internacional e dividi-a com uma tripulação que tinha norte-americanos, russos e italianos. E é também a história de que mais me orgulho, porque geri uma equipa de astronautas e cosmonautas nos momentos em que as tensões entre os Estados Unidos e a Rússia aumentaram. Ali estávamos nós no espaço. Fiz um esforço para saber falar russo, para passar tempo com eles e para jantar quase sempre com a equipa reunida no lado russo da estação. Consegui a paz que pretendia lá dentro, tanto que ainda hoje continuamos amigos: estamos constantemente nas mensagens ou a enviar e-mails uns aos outros ou a falar ao telefone. Portanto, os problemas políticos nunca foram uma pedra no nosso caminho. Decidimos que a política era a política, mas que o mais importante mesmo era que nós ali em cima soubéssemos proteger-nos uns aos outros e continuarmos vivos. No espaço as coisas relativizam-se um pouco: quem quer saber do que as pessoas na Terra estão a fazer? Somos seres humanos, por isso mais vale trabalharmos todos juntos.

Mas como é gerir o ambiente quando as preocupações se adensam?
O momento em que senti mais dificuldade em fazê-lo foi quando a guerra civil no leste da Ucrânia começou. Era de noite e nós estávamos todos reunidos no segmento russo da Estação Espacial Internacional. Decidimos todos ir para a gigantesca câmara com janelas que permitem ter uma vista panorâmica para a Terra, que eu tinha instalado uns tempos antes. Estávamos a sobrevoar a Ucrânia quando começámos a ver clarões vermelhos mesmo por cima do país. Foi estranho pensar que, se estivéssemos ali em baixo, provavelmente estaríamos a matar-nos uns aos outros naquele preciso momento. Foi triste. Quando se está com um russo é muito, mesmo muito provável que ele tenha família na Ucrânia. Nas chamadas para a família ouvia-os a perguntar com muita ansiedade se estava toda a gente bem. É angustiante. Mas a Estação Espacial Internacional é um grande exemplo de como devíamos agir uns com os outros. Exemplos de como não agir há muitos. Mas a história humana dentro da estação é o exemplo que deve ser seguido. Além claro, da história científica.

Estávamos a sobrevoar a Ucrânia quando começámos a ver clarões vermelhos mesmo por cima do país. Foi estranho pensar que, se estivéssemos ali em baixo, provavelmente estaríamos a matar-nos uns aos outros naquele preciso momento. Foi triste.

De que modo é que americanos e russos têm formas diferentes de investir na exploração espacial?
Repare nisto: nos anos sessenta os norte-americanos construíram a “Fisher Space Pen”, uma caneta pressurizada que consegue manter o contacto com o papel para que se possa escrever no espaço, uma vez que não há gravidade. Os russos não: eles simplesmente usavam um lápis de carvão. Isso diz tudo sobre a abordagem russa da exploração espacial: no segmento deles têm tudo o que nós temos, mas com mecanismos muito mais simples. Nós temos sistemas de bombeamento de água eletrónicos cheios de sensores e filtros para controlarem temperaturas, enquanto eles usam simplesmente válvulas para puxar a água. São muito práticos. E funciona! Os americanos são mais complicados: as nossas máquinas fazem muito mais e conseguem muito mais coisas, mas também são muito mais sensíveis e caras.

A nave Soyuz exemplifica essa simplicidade.
É verdade. A nave tem três partes e quando se regressa a Terra nela há uma separação: os tripulantes ficam no meio, então essa parte entra para o planeta, enquanto as outras duas partes são desprezadas e acabam por queimar na reentrada. Há uma década, no entanto, isso não aconteceu: a Soyuz veio toda por completo para dentro da Terra e ainda por cima ao contrário. Isso poderia ter sido muito grave, porque os escudos que protegem a nave do calor da reentrada na atmosfera vinham virados para cima. A sorte foi que as duas partes mais sensíveis derreteram e degradaram-se, mas a parte do meio onde iam os cosmonautas regressou intacta e toda a gente ficou sã e salva. Isso é um grande exemplo da Rússia a simplificar tudo: fez da Soyuz um simples pedaço de metal gigante. Tão simples que se pode entrar naquela nave, fazer com que tudo corra mal e ainda assim sobreviver à reentrada na Terra. Os americanos não teriam a mesma sorte dentro do Space Shuttle.

Nos anos 60 os americanos construíram a "Fisher Space Pen", uma caneta que consegue manter o contacto com o papel para escrever onde não há gravidade. Os russos simplesmente usavam um lápis de carvão. Isso diz tudo sobre a abordagem russa da exploração espacial.

E o futuro da exploração espacial: depende mais das agências espaciais ou das companhias privadas?
Viu o lançamento do foguetão Falcon Heavy da SpaceX, quando os dois Falcon 9 ao lado da nave regressaram e tudo? Esse foi o momento de revelação para mim: o futuro da exploração espacial depende claramente de companhias privadas como a do Elon Musk ou como a Blue Origin e outras que tais. São eles que têm tudo na mão. As agências governamentais como a NASA estão a fazer coisas incríveis, mas continuam a ter de seguir muita burocracia. E sim, concordo com o Elon Musk quando diz que as viagens espaciais comerciais podem ser uma realidade. Não só penso que podem ser uma realidade, como penso que devem ser! E isso deve acontecer muito brevemente. Nem toda a gente tem 10 milhões de dólares para gastar, mas penso que esses valores absurdos vão baixar para as centenas de milhar e estar ao alcance de mais gente um dia.