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domingo, 10 de junho de 2018

A banalidade de Marcelo

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 07/06/2018)

MARCELO_BOLA

Reunir as duas entidades públicas mais importantes na hierarquia do Estado no mesmo espaço tem de implicar estarmos perante um assunto da mais alta importância nacional. Consta que uma rapaziada vai jogar à bola na estranja, é só isto. Noutros tempos teríamos tido direito a um cardeal na fotografia e à visita de Cecília Supico Pinto para moralizar a tropa em calções com as suas cantorias.

Se as duas entidades públicas mais importantes na hierarquia do Estado querem estar presentes numa jantarada ligada a uma selecção nacional de um desporto qualquer em vias de participar num qualquer torneio, baril. Cada um sabe de si e das companhias que frequenta. Mas se as duas entidades públicas mais importantes na hierarquia do Estado decidem também abrir a boca para dizer coisas em nome das instituições que representam, então, senhores ouvintes, estaremos perante um assunto de altíssima importância para a Pátria. Os russos vêm aí?! Não, espera, nós é que vamos à Rússia. Há que recordar as lições de Napoleão e Hitler se a ideia for mesmo a de conquistar Moscovo.

Ferro Rodrigues teve a feliz ideia de listar os locais de nascimento dos jogadores, o que lhe permitiu chegar a uma imagem desafiadora: em que outros domínios da nossa comunidade vemos tanta diversidade geográfica num mesmo grupo profissional? A imagem é desafiante porque nos leva para nenhures. O desafio consiste, precisamente, em não ir com ela. Melhor ficar a contemplá-la a esvoaçar nos céus até desaparecer graciosamente de vista no horizonte ou ser abatida sem piedade pela caçadeira da lucidez. É que é completamente indiferente, seja para o que for, que não se consiga indicar um qualquer outro exemplo onde se replique a cobertura territorial que a selecção nacional apresenta na lotaria das ascendências geográficas dos actuais jogadores. Era só o que faltava, a obrigação de incluir um madeirense à força numa qualquer empresa com mais de 20 trabalhadores ou passarmos a exigir que os hospitais públicos tenham funcionários minhotos, beirões e algarvios em proporções idênticas. Porém, a ideia resiste na sua felicidade pois se trata de uma metáfora. A metáfora da diversidade como ideia cívica e política a merecer o patrocínio da segunda figura do Estado português numa ocasião proporcionada pelos pontapés na bola. Estiveste bem, Ferro.

Marcelo Rebelo de Sousa comportou-se como Marcelo Rebelo de Sousa. Estava excitadíssimo com a perspectiva de ir ver jogos de futebol. Uns em estádios, outros no meio da maralha. Todos, sempre, no pico da curtição como fã que se concebe igualmente como vedeta nessas ocasiões. A sua ânsia deleitada era tanta que entrou a pés juntos no estilo de Américo Thomaz e suas pérolas como «é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive». Enfiou-se num raciocínio que partia de termos o melhor jogador do mundo e saltava magicamente para serem todos os jogadores os melhores do mundo. Logo, rasgo de genialidade, se a nossa selecção nacional tem os melhores jogadores do mundo, só precisa que cada jogador seja aquilo que é. Siga. Tal como no discurso anterior, esta imagem volta a não querer dizer nada que mentes humanas consigam usar com algum proveito, mas desta vez o bafo a balneário era insuportável. Marcelo aproveitou a ocasião para mostrar que, se o deixarem, pode ir fazer palestras aos jogadores no intervalo dos jogos que estejam a correr mal. Contem com o Presidente da República para explicar aos atletas que eles apenas têm de ser quem são, caso Fernando Santos não esteja à altura dessa responsabilidade.

Marcelo está no cargo para o qual se preparou durante 60 anos, ou mais. Não é um mero corta-fitas como o almirante Deus, mas no seu íntimo a fruição pessoal, o gozo circense, a pulsão palaciana sobrepõem-se à devoção republicana, ao culto do estadismo e à paixão pela História.

A insustentabilidade à vista e os tomates nos olhos

Novo artigo em Aventar


por Ana Moreno

Toda a gente sabe que andamos a teimar num sistema de crescimento insustentável e destruidor.

Toda a gente sabe, mas (quase) toda a gente faz de conta que não. Aos que, há décadas, andam a alertar para os limites do planeta e a demonstrar os estragos feitos, aplica-se-lhes o carimbo de profetas da desgraça, paranóicos.

A reacção dos decisores aos profusos sintomas da destruição acontece de má vontade, ao relanti, a fingir e só depois de muito estrago - até irreversível (exemplo de fingimento aqui).

Os problemas são gritantes a nível mundial (exemplo aqui).

E, por norma, os custos das externalidades negativas são transferidos para a comunidade, esvaziando e contrariando o princípio do causador- pagador.

Demos uma olhadela à Alemanha, país considerado um caso de sucesso do sistema prevalecente e que gosta de arvorar em bem comportado também em termos ambientais. E, aqui chegados, vejamos apenas dois exemplos:

Ler mais deste artigo

Um jornal contra assaltos europeus

Ladrões de Bicicletas


Posted: 09 Jun 2018 09:38 AM PDT


A União Europeia nunca deixa durar muito os enganos de alma ledos e cegos de quem se esquece da sua matriz neoliberal. Desta vez o sossego foi interrompido pelo comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, Günther Oettinger, que espera que «os mercados ensinem os italianos a votar bem». O desprezo pela democracia, e em particular pelos mecanismos democráticos que subsistem nos quadros nacionais e locais, continua bem vivo numa instituição sempre disposta a impor governos técnicos, referendos de desgaste e outras perversões da manifestação da vontade política dos cidadãos (...) Nas ruínas do trabalho e do Estado social, a União Europeia inventa mais uma forma de satisfazer através do quadro europeu os negócios privados que, sem ela, teriam dificuldade em impor-se neste espaço. É a actuação da União que prepara as tragédias futuras. Neste contexto de maior consciência cidadã do risco financeiro e de indisponibilidade orçamental dos governos nacionais (mesmo os neoliberais) para avançarem para a privatização dos seus sistemas de pensões, empresas gigantescas como a BlackRock precisam de uma estrutura supranacional como a União Europeia para expandir o seu negócio.
Sandra Monteiro, Assalto ao trabalho e às pensões, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Junho de 2018.

Trump chama “fraco” e “desonesto” a Trudeau. E retira apoio ao comunicado final do G7

10/6/2018, 3:3210

O presidente dos EUA não gostou de ouvir Trudeau falar sobre as taxas das importações. Chamou-lhe "muito desonesto e fraco". E retirou o apoio ao comunicado final do G7.

AFP/Getty Images

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Donald Trump já não estava na Cimeira do G7, no Canadá, quando decidiu recorrer ao Twitter para insultar Justin Trudeau, depois de ter ouvido a conferência de imprensa final do primeiro-ministro canadiano. Chamou-lhe “muito desonesto & fraco”, acusou-o de proferir “falsas declarações” sobre as taxas aplicadas às importações e instruiu os representantes norte-americanos para não apoiarem o comunicado final da cimeira.

São estes os dois tweets do presidente dos EUA:

Donald J. Trump

@realDonaldTrump

Based on Justin’s false statements at his news conference, and the fact that Canada is charging massive Tariffs to our U.S. farmers, workers and companies, I have instructed our U.S. Reps not to endorse the Communique as we look at Tariffs on automobiles flooding the U.S. Market!

00:03 - 10 de jun de 2018

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Donald J. Trump

@realDonaldTrump

PM Justin Trudeau of Canada acted so meek and mild during our @G7 meetings only to give a news conference after I left saying that, “US Tariffs were kind of insulting” and he “will not be pushed around.” Very dishonest & weak. Our Tariffs are in response to his of 270% on dairy!

00:04 - 10 de jun de 2018

Informações e privacidade no Twitter Ads

No primeiro, lê-se: “Com base nas falsas declarações do Justin na sua conferência de imprensa, e no facto de o Canadá estar a cobrar tarifas enormes aos agricultores, trabalhadores e empresas norte-americanos, instruí os representantes dos EUA para não apoiarem o Comunicado final, enquanto analisamos as taxas de importação a aplicar aos automóveis que inundam o mercado norte-americano”.

Um minuto mais tarde, em novo tweet escrito a bordo do Air Force One (onde terá visto a conferência de imprensa do PM canadiano), deu a entender que Trudeau teve uma postura quando Trump estava na sala e outra diferente depois de o presidente norte-americano ter saído mais cedo da cimeira, para ir para Singapura, onde se reunirá com Kim Jong Un na madrugada da próxima terça-feira. “O primeiro-ministro do Canadá Justin Trudeau foi tão dócil e moderado nas nossas reuniões no G7 mas logo depois de eu sair deu uma conferência de imprensa a dizer que “as taxas de importação aplicadas pelos EUA eram de certa forma insultuosas” e que ele “não se deixará pressionar”. Muito desonesto & fraco. As nossas taxas são uma resposta às dele de 270% em produtos lácteos”.

Logo a seguir, como notou o New York Times, John Bolton, conselheiro de segurança nacional do presidente, tweetou a foto em que se vê Trump em pose desafiante face aos outros líderes que estiveram na cimeira, com a legenda: “Mais uma cimeira do G7 em que os outros países acham que a América vai sempre ser o banco deles. O presidente deixou as coisas claras hoje. Acabou-se”.

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John Bolton

@AmbJohnBolton

Just another #G7 where other countries expect America will always be their bank. The President made it clear today. No more. (photo by @RegSprecher)

23:56 - 9 de jun de 2018

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Um porta-voz de Justin Trudeau reagiu assegurando: “O primeiro-ministro não disse nada que não tivesse já dito antes, tanto em público como em conversas privadas com o presidente”.

Nas suas declarações finais aos jornalistas, Trudeau considerou “insultuoso” que Trump tenha invocado razões de segurança nacional para aplicar taxas alfandegárias ao aço e alumínio importado da UE, do Canadá e do México. “Nós, os canadianos, somos educados, somos razoáveis, mas não vamos deixar que nos ameacem desta forma”.

Pode ver no vídeo a conferência de imprensa de Justin Trudeau no final da cimeira:

“Faremos todos os possíveis para reduzir as barreiras alfandegárias, barreiras não alfandegárias e subsídios”, diz o comunicado final de 28 pontos e oito páginas, negociado (antes desta retirada do apoio de Trump) entre Estados Unidos da América, Alemanha, Canadá, França, Reino Unido, Itália e Japão.

“Nós enfatizamos o papel crucial de um sistema de comércio internacional baseado em regras e continuamos a lutar contra o protecionismo”, refere o documento, que menciona a importância de existirem “regras” coletivas tal como vinha sendo defendido pelos europeus, que têm denunciado constantemente as ameaças da guerra comercial levada a cabo por Donald Trump.

Os sinais de tensões comerciais foram sendo percetíveis ao longo da cimeira em várias declarações de governantes, tais como a feita no final do encontro pelo primeiro-ministro do Canada e anfitrião da cimeira, Justin Trudeau, que disse que a partir do dia 1 de julho o Canadá começará a impor represálias comerciais aos Estados Unidos.

Também o presidente francês Emmanuel Macron confirmou que as taxas decididas pela União Europeia contra os Estados Unidos vão começar a ser aplicadas no próximo mês.

No comunicado, os líderes do G7 dizem-se ainda “comprometidos com a modernização da Organização Mundial de Comércio, de forma a torná-la mais justa o mais rapidamente possível”.

Segundo o documento final, comprometeram-se ainda a defender o papel das “regras comerciais coletivas” e a denunciar situações de protecionismo.

Outro dos pontos em que os líderes conseguiram chegar a acordo diz respeito à questão do Irão: Os países do G7 comprometem-se a impedir que o Irão consiga obter armas nucleares.

Tal como a chanceler alemã Angela Merkel já havia anunciado anteriormente, também o presidente francês, Emmanuel Macron, considerou que a reunião no Canadá “não resolve tudo”: “O nosso desejo é continuar a trabalhar nos próximos meses”, disse o presidente francês.

Entre as questões mais fraturantes destaca-se a última medida comercial imposta unilateralmente pelos norte-americanos, que veio impor taxas alfandegárias às importações de aço e alumínio da União Europeia, Canadá e México.

Ainda durante a cimeira, em La Malbaie, no Canadá, Trump anunciou o desejo de ver o G7 “remover as taxas, remover as barreiras não tarifárias e remover outros mecanismos”, tendo ainda enaltecido a qualidade das relações com os outros dirigentes que integram o G7, nomeadamente com o primeiro ministro canadiano, o presidente francês e a chanceler alemã.

O acesso à informação na “caixa negra” que é a Coreia do Norte


09 Junho 2018

Cátia Bruno

O "Reino eremita" não é, apesar de tudo, totalmente isolado. Seja através da roupa chinesa, dos filmes americanos ou dos telefonemas dos familiares exilados, os norte-coreanos descobrem um mundo novo.

“No que diz respeito à cimeira histórica entre a República Democrática e Popular do Norte e os Estados Unidos, temos apreciado no nosso íntimo o Presidente Trump por ter tomado a decisão ousada, que outros presidentes dos EUA não tomaram, e por ter feito esforços para que se realizasse um evento tão crucial como a cimeira.” Esta é uma das frases incluídas numa declaração do Ministério dos Negócios Estrangeiros norte-coreano, divulgada no final de maioatravés da agência de notícias estatal do país KCNA, sobre o encontro entre Kim Jong-un e Donald Trump marcado para dia 12.

O tom contrasta em tudo com o que é habitual nos media estatais do país. Senão, vejamos este exemplo, a propósito da paralisação dos serviços públicos norte-americanos por falta de acordo no Congresso sobre o teto da dívida: “O shutdown do Governo dos EUA, o segundo nas últimas três semanas, é motivo de chacota em todo o mundo e revela a miserável condição de uns Estados Unidos em declínio”, podia ler-se no jornal oficial Rodong Sinmun, a 5 de março deste ano.

Dois meses separam estas duas declarações e o tom elogioso para com os norte-americanos é, nas palavras da académica Sandra Fahy, “intrigante”. “Eles costumam utilizar estes adjetivos hostis para acompanhar certos nomes: os ‘fantoches’ sul-coreanos, os ‘canalhas’ dos norte-americanos…”, descreve ao Observador a antropóloga e autora do livro “Marching through Suffering: Loss and Survival in North Korea” (livro sobre o dia-a-dia dos norte-coreanos, sem edição em português). “Essa ausência pode ser um sinal de permissão para a audiência interna de apaziguamento para com os americanos. Mas desconfio que não será um sinal da postura do próprio Estado.”

Uma barbearia em Pyongyang com uma televisão a passar o canal estatal (ED JONES/AFP/Getty Images)

Num país onde os únicos tipo de media são os estatais e onde a informação é altamente controlada, restam poucas hipóteses aos norte-coreanos para tentar interpretar o mundo — e o seu próprio país — de outra forma que não a que a dinastia Kim lhe sugere. A televisão pública passa os noticiários às 18h e às 21h, onde se destacam os supostos feitos incríveis da nação coreana e a grande sagacidade dos seus líderes. Os aparelhos de rádio estão programados para que não seja possível alterar a frequência, obrigando os ouvintes a escutar exclusivamente a estação pública. Até o cinema serve para louvar feitos heróicos da Coreia do Norte e para retratar os norte-americanos como vilões.

O discurso em todos estes meios é sempre semelhante, com palavras e expressões praticamente iguais nos vários formatos. A uniformidade é propositada. Como exemplo, Fahy recorda a história de um desertor que conheceu na Coreia do Sul: tinha sido enviado para a prisão por ter deixado passar “uma gralha no nome de Kim Jong-il”, no jornal onde trabalhava. “Se conseguirmos controlar a informação, controlamos a forma como as pessoas interpretam as coisas, a forma como elas interpretam o mundo”, diz a professora universitária, que dá aulas no Japão. O controlo dos media e as violações de direitos humanos são, diz, “unha com carne”.

A opacidade e a uniformidade da informação na Coreia do Norte ajudam a cimentar a ideia de “país mais isolado do mundo”. “Reino eremita”, chamam-lhe alguns, repetindo o chavão até à exaustão. Uma “caixa negra”, definem outros. Mas, ao longo dos anos, os norte-coreanos têm encontrado formas de quebrar esse isolamento e os contactos com o exterior são muito mais frequentes do que se pode pensar à primeira vista.

Há o contrabando que traz telefones capazes de fazer chamadas internacionais, as calças de ganga feitas no estrangeiro compradas no mercado ilegal ou ainda as telenovelas sul-coreanas comprimidas numa pen USB. Já para não falar da informação passada de boca em boca, entre amigos e vizinhos. Tudo isso serve para deixar entrar um pouco mais de luz na caixa impenetrável que é a Coreia do Norte. E todos esses fenómenos se têm vindo a acentuar com o passar dos anos e com o desenvolvimento da tecnologia.

O poder dos jangmadang, os mercados ilegais

A grande fome da década de 90 acabou por ser o catalisador para abrir mais a Coreia do Norte ao mundo. O colapso do sistema de distribuição estatal de alimentos levou ao surgimento dos chamados mercados ilegais — jangmadang, em coreano — para colmatar as falhas no acesso à alimentação. Os jangmadang foram crescendo em número e em tamanho: hoje em dia há centenas de mercados por todo o país que vendem não apenas comida, mas também bens importados, sobretudo da China. Ao todo, segundo estimativas do especialista em estudos coreanos Andrei Lankov, o sector privado norte-coreano contribui entre 30 a 50% para o PIB nacional. Não admira que as autoridades os tolerem.

Mulheres vendem fruta num mercado improvisado nos arredores de Pyongyang (ED JONES/AFP/Getty Images)

Os efeitos desse desenvolvimento económico fazem-se também sentir nos mais jovens, como explica ao Observador Jieun Baek: “Com a grande fome, as pessoas passaram a ter de depender delas próprias para sobreviver. E esta mentalidade, aliada ao acesso a bens estrangeiros, criou um estado de espírito muito diferente entre as gerações mais novas”, afirma a autora do livro “North Korea’s Hidden Revolution: How the Information Underground is Transforming a Closed Society” (“A Revolução Escondida da Coreia do Norte: como o Submundo da Informação está a transformar uma Sociedade Fechada”, sem edição em português).

“Os mais velhos costumam dizer ‘Temos fé no nosso líder, quando esta crise passar seremos recompensados’. Os mais novos dizem-lhes ‘Avô, não percebo o que dizes, os centros de distribuição de comida de que falas já nem sequer existem’”, ilustra a académica de Oxford.

Baek dá o exemplo de um jovem desertor que conheceu na Coreia do Sul, Joon-hee, nascido no final dos anos 90. Joon-hee era um adolescente bonito, que causava sensação na escola. Parte desse sucesso explicava-se pelo seu estilo: o seu lenço vermelho dos pioneiros, que faz parte da farda escolar, estava sempre impecavelmente engomado e liso, um sinal de status no ecossistema escolar. O truque era só um, conta Jieun: “Ele pedia dinheiro à mãe para ir ao mercado comprar a farda, em vez de usar a que lhe era dada pelo Estado. ‘Porquê se já tens um?’, perguntava-lhe ela. ‘A qualidade do material é má, mãe… O lenço vermelho amachuca-se muito facilmente’, respondia-lhe.” O melhor mesmo era ir ao jangmadang comprar um lenço vindo da China, cujo material é de melhor qualidade.

Dois alunos da escola primária aprendem a mexer num computador numa aula (Feng Li/Getty Images)

Segundo dados oficiais compilados pelo MIT, 85% dos bens importados pela Coreia do Norte vêm da China — e esta estimativa não tem em conta a informação do mercado negro.

O papel dos contrabandistas chineses é fulcral: “Eu trago todo o tipo de coisas, produtos para as pessoas normais”, revelava um dos camionistas que atravessa a fronteira à agência Reuters, em 2016. Nas camionetas de passageiros, garantia um dos camionistas, levam-se produtos de cosmética, escondidos. “Se alguém quiser comprar uma peruca através dos canais formais, custa mil yuans [cerca de 130€], mas se a obtiver através dos canais do mercado negro só custa uns 200 ou 300 yuans [25 ou 40€]. E o condutor ainda fica contente porque também consegue fazer algum dinheiro”, contou um deles.

As redes de tráfico estão tão desenvolvidas que, no Norte do país, é possível obter um filme sul-coreano apenas um dia depois de ele ter sido lançado em Seul. O impacto de novelas e filmes vindos da Coreia do Sul ou dos EUA é tremendo. Já nos anos 90 a jornalista Barbara Demick dava conta, no seu livro “A Longa Noite de um Povo”, dos efeitos dessa exposição: “As pessoas que não dispunham de meios para ver DVD estrangeiros ouviam outras falar neles. Espalharam-se historias incríveis sobre a riqueza e o desenvolvimento tecnológico dos países vizinhos. Dizia-se que os sul-coreanos tinham criado um carro tão sofisticado que só arrancava se o condutor soprasse para um alcoómetro para provar que estava sóbrio (falso) e que os camponeses chineses comuns que viviam do outro lado da fronteira eram tão ricos que comiam arroz branco três vezes ao dia (verdadeiro).”

Se este efeito de abertura económica se pode traduzir ou não em impacto político, é difícil saber. Especialistas como Lankov acreditam que sim, mas a longo prazo: “O fluxo de bens estrangeiros a entrar expõe o público a uma cultura de consumo diferente e a outras formas de informação sobre o mundo lá fora. A qualidade destes bens fala bem alto sobre a sofisticação tecnológica dos países estrangeiros, sobretudo a Coreia do Sul”, explica no relatório “O ressurgimento de uma economia de mercado na Coreia do Norte”. “A exposição a gadgetseletrónicos, produtos de cosmética, utensílios de cozinha e todo outro tipo de bens sul-coreanos está a minar um dos mitos centrais da propaganda de Pyongyang — o que de a Coreia do Sul é um lugar indigente e desesperado.”

Equipa norte-coreana do Mundial de futebol de 1966 assiste a uma comédia estrangeira no quarto de hotel (Central Press/Hulton Archive/Getty Images)

É claro que a utilização destes bens e o acesso a entretenimento estrangeiro continua a ser absolutamente proibido e criminalizado. Não se veem filmes sul-coreanos de outra forma que não seja quase sem som, no escuro, por vezes de headphones ou debaixo dos lençóis. “Há muito mais circulação deste material do que compra”, diz Baek, explicando que tudo assenta nos chamados “círculos de confiança”. A mensagem resume-se a: “‘Tu és meu amigo, eu confio em ti e gostava muito que visses isto.’” E assim se passa um episódio da novela sul-coreana “Descendentes do Sol” escondido numa pen USB.

Telefones traficados, rádios artesanais e folhetos que chegam dentro de um balão

As relações de confiança são fulcrais para levar um norte-coreano a interessar-se pelo que se passa fora das suas fronteiras. Um dos casos mais óbvios é o do contacto com familiares que fugiram do país e que, muitas vezes — e apesar do elevado risco —, se mantém. Graças à rede de contrabandistas, é possível, e até certo ponto fácil, enviar por exemplo um telemóvel chinês para um familiar que ficou na Coreia do Norte. Assim podem conversar por telefone através de uma chamada internacional.

Oficialmente, a Coreia do Norte tem desde 2008 um serviço móvel de telefone operado pela empresa egípcia Orascom, o Koryolink. Contudo, desde 2013, o Estado norte-coreano começou a operar uma segunda rede móvel, a Byol. De acordo com um investigador da Universidade Johns Hopkins, Yonho Kim, em 2017 estimava-se que existiam na Coreia do Norte 4,7 milhões de telemóveis ligados a uma das duas redes.

Estes números não incluem os telefones chineses ilegais, que permitem fazer chamadas para o estrangeiro. Baek estima que, só entre as duas Coreias, serão feitas até duas mil chamadas por dia. A antropóloga Fahy sublinha a importância deste acesso direto a familiares: “Estes telefones permitem que ocorra aquilo a que eu chamo uma ‘rádio-difusão pessoal’”, afirma a académica, que estudou o fenómeno no paper “Famílias de Desertores, Telemóveis e Dinheiro: Práticas de Unificação da Península Coreana”, publicado em 2015. “As pessoas na Coreia do Norte passam a poder ter acesso a informação em tempo real que vem de famílias e amigos que desertaram. Essas são relações normalmente de confiança, por isso isto é muito relevante.

Mulher filma com o telemóvel uma parada nas ruas de Pyongyang (ED JONES/AFP/Getty Images)

Para além do envio de telefones, os desertores geralmente conseguem também mandar remessas de dinheiro para a família, como quaisquer outros emigrantes. O processo é que, como explica a história de um desertor publicada no site Politico, é altamente complexo: é necessário arranjar um traficante, pagar-lhe, proteger bem os bens e dinheiro que se quer enviar e à chegada verificar com a família que o contrabandista não desviou alguns dos medicamentos ou equipamentos eletrónicos.

Segundo Jieun Baek, 60% dos cerca de 30 mil desertores norte-coreanos que vivem na Coreia do Sul enviam dinheiro para o Norte. Um estudo de 2016 do Centro de Dados pelos Direitos Humanos na Coreia do Norte, em Seul, conclui que 64% dos desertores inquiridos enviavam dinheiro para o seu país de origem. Em 2015, terão mandado cerca de 240 milhões de wons (aproximadamente 190 mil euros). Um valor que, numa Coreia do Norte onde o PIB per capita se fica pelos mil euros por ano, faz muita diferença.

Os telefones podem ser uma “rádio-difusão pessoal”, mas os norte-coreanos também têm formas de aceder a estações de rádio que de facto vêm de fora. Normalmente tal só acontece nas zonas mais perto da fronteira, ou com a China ou com a Coreia do Sul, devido ao alcance das ondas de rádio. Mas é possível contornar o problema criado pelos aparelhos oficiais, que têm de ser registados e só conseguem apanhar uma frequência: comprar um rádio chinês, pagar a alguém que tenha conhecimentos para adulterar o aparelho ou até criar um pequeno rádio artesanal, feito de madeira.

Um dos pequenos rádios enviados por ativistas para a Coreia do Norte (JUNG YEON-JE/AFP/Getty Images)

A partir daí, é possível ouvir emissões de estações como a Radio Free Asia ou a Voice of America, tentar perceber o que dizem as rádio chinesas ou até apanhar um programa da North Korea Reform Radio — um projeto criado por um desertor, Kim Seung-chul, que transmite emissões diárias a partir de Seul, direcionadas a norte-coreanos.

Engenheiro civil de formação, Kim cresceu a ouvir as estações de rádio proibidas às escondidas. Anos depois, quando foi enviado para trabalhar num projeto de construção na Sibéria, ficou espantado ao ver as condições de vida dos russos, que lhe pareciam bem melhores do que na Coreia — e decidiu desertar. Agora, como responsável pela Reform Radio, fez do seu ativismo o seu trabalho: “O objetivo estratégico é fazer a Coreia do Norte mudar por si própria”, admite. Seung-chul estima que pelo menos 10% dos norte-coreanos tenham acesso frequente a media internacionais — a maioria fará parte da elite económica e política.

Será também essa elite que, contrariando a imagem de país isolado, tem acesso à internet. Não é possível conhecer o número de utilizadores em concreto, mas sabe-se que será muito baixo. Um ex-diplomata em Pyongyang ouvido pelo Observador, James Hoare, recorda como os funcionários das embaixadas tinham acesso a muito mais informação e entretenimento vindo do estrangeiro: “Todos sabiam cantar a música ‘Edelweiss’, do ‘Música no Coração’”, recorda o antigo cônsul britânico, que esteve no país no início dos anos 2000.

“Fui embora em 2002. Mas até nessa altura a informação entrava. As pessoas ouviam rumores… Na altura havia pouca internet, mas quando saí estavam a começar a instalá-la nas embaixadas”, recorda. A empresa de análise tecnológica Recorded Future conseguiu ter acesso a alguns dados de utilização de internet no país recentemente e concluiu que os padrões de consumo são muito semelhantes aos do mundo ocidental, com utilização durante as mesmas horas do dia e no mesmo tipo de sites (redes sociais, compras online, etc.)

Curiosamente, segundo a mesma empresa, ao analisar os dados é possível perceber que, se até então os poucos utilizadores norte-coreanos iam a sites como o Facebook e o Instagram, desde o final de 2017 passaram a migrar todas as contas para redes sociais semelhantes chinesas. “Nuns curtos seis meses, as elites norte-coreanas migraram quase totalmente das redes sociais e serviços ocidentais para sítios como a Alibaba, a Tencent e o Baidu.” O motivo, diz a empresa, pode estar relacionado com questões de segurança operacional.

Para além deste limitado acesso à internet, a Coreia do Norte tem ainda uma intranet chamada Kwangmyong que pode ser acedida em universidades, serviços estatais e bibliotecas. “Não é verdade que o país esteja 100% offline e a intranet existe também. Mas as barreiras para aceder a redes ilegais são tão altas que o risco é demasiado”, resume Jieun Baek. A autora sabe do que fala, já que trabalhou no passado como consultora da Google para a Coreia do Norte.

Até mesmo no uso de tecnologia mais simples, a malha aperta. Se um norte-coreano quiser ter um equipamento em casa — seja um rádio, uma televisão ou um telemóvel —, tem de o registar junto das autoridades locais. E os truques para tentar descobrir o acesso a conteúdo ilegal são muitos, como, por exemplo, cortar a eletricidade e depois entrar em casa das pessoas e verificar os equipamentos de DVD. Com a luz cortada, não é possível ejetar os discos — e os infratores são assim apanhados.

O avanço tecnológico vai permitindo contornar alguns destes problemas, como por exemplo através do uso das pens USB, que podem ser removidas manualmente caso apareça alguém. Mas as autoridades também estão a acompanhar essa modernização, garante Baek: “Os telefones norte-coreanos, por exemplo, têm um software de atualizações automáticas que consegue detetar imediatamente que ficheiros estão ali que não foram produzidos na Coreia do Norte. E consegue também detetar o rasto digital dos aparelhos onde esses ficheiros estiveram. Se alguém usa o seu aparelho norte-coreano para ver um ficheiro estrangeiro, pode não ser logo apanhado só porque eles estão à espera para ver com quem o ficheiro é partilhado e assim apanhar uma rede inteira de contactos.”

Por vezes, os filmes e séries a que se assiste são enviados por ativistas do outro lado da fronteira. É o caso, por exemplo, do grupo Lutadores por uma Coreia do Norte Livre, liderados pelo desertor Park Sang-hak. As suas ações de propaganda são altamente mediatizadas: o grupo envia balões pela fronteira entre as duas Coreias que levam lá dentro dinheiro, filmes e folhetos com propaganda. Neles pode ler-se, por exemplo, que “os nossos irmãos e irmãs na Coreia do Norte perderam a visão e a audição e nós prometemos trazer-lhes a verdade e a realidade do que aprendemos no mundo livre.”

Ação de lançamento de balões junto à fronteira das duas Coreias (JUNG YEON-JE/AFP/Getty Images)

“Os desertores são politicamente muitos ativos e por isso não colocam nos balões coisas ao calhas: pode ser um relatório da ONU [sobre a Coreia do Norte], um filme como o ‘Pantera Negra’”, diz Fahy, referindo-se à película que adapta uma história da Marvel sobre um país isolado e as transformações que ocorrem com a transferência do trono de um pai para um filho. A antropóloga considera este tipo de ações altamente positivas, mesmo que o seu impacto seja limitado.

Baek destaca que grupos como o de Park “querem a maior visibilidade possível, convidando jornalistas para acompanhar as suas ações e envolvendo-se propositadamente em lutas com as autoridades”, como “forma de estratégia”. “Quantas pessoas conseguem alcançar? Não temos ideia”, resume a investigadora.

Outros grupos fazem ações semelhantes, mas pela calada da noite, sem grande destaque. Certo é que os balões são detestados, quer por norte-coreanos quer pelo Governo sul-coreano, pela “tensão que trazem à fronteira” — razão pela qual o acordo assinado em abril entre as duas Coreias determina o “fim das hostilidades entre os dois países”. Fahy acredita que, para ambos os governos, tal possa incluir o lançamento de balões na fronteira.

O braço de ferro da propaganda

“Os media norte-coreanos chamam a todos estes contactos ‘guerra psicológica’, levada a cabo pelas ‘forças imperialistas’. O próprio Kim Jong-un já admitiu que ‘a próxima guerra é a guerra interna’, ou seja, que é uma guerra ideológica”, conta a académica. Um relatório de segurança interno do Governo coreano, divulgado em 2014, dava mesmo conta que as “gravações inapropriadas e publicações de propaganda” estavam em crescimento.

Não é por isso de admirar que o regime tente castigar todos os que têm acesso a informação vinda do exterior, seja ela de que tipo for. Caso o norte-coreano em causa conheça o agente da autoridade que o apanhou, um simples suborno pode resolver o assunto. Mas nem sempre isso chega. As penas aplicadas podem ir desde a multa até à prisão num centro de detenção.

Alguns, no entanto, são enviados para campos de trabalho ou até mesmo para campos de concentração, reservados aos que cumprem penas por crimes políticos. E já houve, inclusivamente, execuções públicas por crimes desta natureza. A sentença é, por isso, altamente discricionária, variando consoante o tipo de crime, o seu grau e o lugar que a pessoa apanhada ocupa no songbun, o sistema de castas político existente no país.

Apesar do grande risco, tal não impede muitos norte-coreanos de continuarem a comprar lenços vermelhos vindos da China, de falarem ao telefone com o filho que está na Coreia do Sul ou de assistirem a filmes norte-americanos debaixo do cobertor à noite. Os laços com o exterior são cada vez mais firmes e as influências vindas do estrangeiro são cada vez mais profundas. O regime teme estes movimentos — mas terá de facto razões para se preocupar? Pode este acesso à informação pôr em causa a dinastia Kim?

“Há um braço de ferro. Às vezes as pessoas são influenciadas; outras vezes a propaganda é tão extrema que as faz pensar ‘o nosso líder tem razão, esta gente é louca’”, resume Jieun Baek, que teve a oportunidade de entrevistar dezenas de desertores que cresceram na Coreia do Norte. “Mas, a longo prazo, ajudará a criar um pensamento mais crítico, não só em termos políticos mas na vida do dia-a-dia. Ajudará a criar uma ideia de ‘eu não só quero uma vida melhor, eu mereço uma vida melhor’. Este tipo de pensamento é fundamental para haver mudanças, mas não se pode ensiná-lo e ele não surgirá do dia para a noite.”

Sandra Fahy, que também ouviu testemunhos de muitos norte-coreanos, concorda: “É claro que o efeito é limitado, mas isso não significa não devemos fazê-lo”. E, para isso, acha que é necessário dar um último passo: colocar um espelho à frente dos próprios norte-coreanos. “A perceção do mundo dos norte-coreanos muda quando veem o mundo através de filmes estrangeiros. Veem que os carros são melhores ou que os edifícios são diferentes… Mas a perceção do seu próprio país não muda”, resume.

“Os norte-coreanos precisam de se ver a si próprios. Na mesa onde estão espalhadas as opções que podem consumir está a dieta dos mediaestatais, está a informação que vem da Coreia do Sul, está o que é feito nos EUA. Mas não há nada que seja feito por eles próprios. Este é o espaço que falta preencher.” Talvez assim, um dia, seja possível deixar entrar a luz que falta na caixa negra que é a Coreia do Norte.

Texto de Cátia Bruno, ilustração de fvilares.