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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Uma vida à sua frente

Curto

Jorge Araújo

Jorge Araújo

Editor da E

30 ABRIL 2020

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Uma pessoa pensa que sabe tudo, que tem resposta para tudo, mas não sabe nada. Aparece a vida e baralha tudo, a resposta agora é pergunta, a pergunta é resposta.

É por isso que ninguém consegue explicar como é que aqui chegámos, menos ainda para onde vamos.

De nada vale dizer que “queremos a nossa vida de volta”. Todos nós já nos daríamos por satisfeito se soubéssemos que vida temos pela frente.

Muito do que vai ser a nossa vida nos próximos tempos vai ser decidido hoje, na reunião do Conselho de Ministros. Ou talvez não. Se o desconfinamento não correr bem, regressa tudo à casa partida. A nossa vida não se resolve apenas por decreto.

O primeiro-ministro vai divulgar o plano do governo para a retoma da vida económica e social. Vai dizer como pretende reabrir o país.

Neste mar de incertezas há duas certezas . A primeira é que o estado de emergência não vai ser renovado. A segunda é que chegou a hora do Estado de Calamidade.

O desconfinamento pode ser uma coisa ou outra completamente diferente. O plano do governo tem três fases, mas de quinze em quinze dias será feito um “check up”para medir os efeitos económicos e na saúde pública.

Num breve resumo, fique a saber que na 1ª fase, com início a 4 de Maio, será autorizada a abertura do comércio local, assim como os barbeiros e cabeleireiros. Mas só com marcação e de acordo com as regras definidas de lotação do espaço.

A partir da próxima segunda feira também abrem portas o comércio automóvel e os serviços de atendimento ao público não concentrado, o que exclui as Lojas do Cidadão, por exemplo.

Mas atenção: todos estes serviços terão de manter estritas regras de distanciamento, bem como assegurar a obrigatoriedade do uso de máscaras. E têm de dar garantias de desinfeção.

As boas notícias que os pais e encarregados de educação queriam muito ouvir ficam adiadas para mais tarde – as creches abrem a 18 de maio e o pré-escolar a 1 de junho.

Mas se quer saber como vai ser o calendário do regresso à normalidade possível, leia este artigo do Expresso. E este do Público.

Ainda Covid-19

Desporto. Terminou a temporada 2019/2020 para as quatro maiores modalidades colectivas de desporto de pavilhão: hóquei, andebol, basquetebol e voleiból. Os campeonatos morreram na praia. No futebol ainda há esperança. Pode ser que, lá para 30 de Maio, a Iª Liga volte.

Máscaras. O fim do estado de emergência devolverá mais gente às ruas. Mais do que nunca, é aconselhado o uso de máscaras. Aconselhado e, em alguns casos, obrigatório. Se tem dúvidas, leia este artigo.

Crime. Nem toda gente respeitou as regras do confinamento. As tentativas de homicídios dispararam. A boa notícia, escreve o Público, é que a maioria das vítimas “ conseguiu escapar à morte por falta de planeamento ou premeditação dos seus agressores”.

TAP. Com os aviões em terra a companhia aérea nacional vive dias complicados. O Estado pode ser chamado a intervir mas nada será como de antes. “ A música agora é outra no que diz respeito à TAP”, advertiu o ministro das infraestruturas, Pedro Nuno Santos.

Óscares. A Academia de cinema de Hollywood tem um novo regulamento. A partir de agora são aceites filmes transmitidos exclusivamente online, uma vez que as salas de cinema se encontram encerradas devido à pandemida de covid-17. Mas a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas deixou bem claro que esta excepção só se aplica aos óscares deste ano. Quando as salas voltarem a abrir as portas logo se verá

Esperança. Nem tudo são más notícias e, volta e meia, chegam histórias de esperança. Como a da mulher de 100 anos que veio ao mundo durante a gripe espanhola e sobreviveu ao covid-19. Ou como as crianças que nascem no meio deste tumulto. Ontem, nasceu o filho de Boris Johnson. É um rapaz. Uma criança que nasce é sempre uma lufada de esperança. Mas é preciso que tenha uma vida à sua frente.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Há muito em jogo

Posted: 28 Apr 2020 03:50 AM PDT

«"Despesas do Estado hoje são impostos de amanhã", sentenciou o primeiro-ministro há uns dias. A frase, como bem explicou o economista João Ferreira do Amaral, é "infeliz".

Além de dar um sinal negativo quanto à intenção de o Governo ir mais além nos apoios à economia, a lógica austeritária que subjaz à afirmação está errada. O que leva à perda de receita fiscal amanhã é a recessão económica e o desemprego. Tudo o que for feito para evitar a crise, salvar o emprego, rendimento e produção, protegerá também as contas públicas futuras.

Quem quiser, nesta crise, subjugar todas as decisões ao défice, engana-se. A pandemia da Covid está a pôr em causa modelos de crescimento, como o português, muito assentes no imobiliário e no turismo. Está a acelerar a decadência de setores em crise, como o automóvel, e a mover as placas tectónicas da indústria e da finança mundiais.

Enquanto a Europa brincava à austeridadezinha, a China investia em inovação tecnológica para entrar na disputa pela hegemonia da economia mundial. A entrada do capital chinês foi de tal ordem que motivou um acordo franco-alemão (países menos dispostos do que Portugal a vender os seus anéis) para proteger os seus setores estratégicos. Nada de novo para a Alemanha que, já na crise de 2007, protegeu as suas empresas de compras por fundos estrangeiros. A mesma Alemanha que a Comissão Europeia não convenceu (se é que tentou) a privatizar as suas participações no terceiro maior banco do país, na segunda maior produtora de químicos ou mesmo na Volkswagen.

Mas depois veio a pandemia. E embora a paralisação tenha atingido de forma semelhante todas as economias, são as estratégias de recuperação de cada país, e a sua capacidade de investimento, que determinarão o futuro da economia mundial.

Enquanto as instituições europeias perdem tempo precioso em desacordos e fingimentos (afinal o plano de recuperação de 2 biliões não passa de 0,34 biliões), a Alemanha prossegue no apoio e reestruturação da sua economia, aproveitando a suspensão das ridículas regras europeias que impedem o apoio do Estado à economia.

O ministro das Finanças alemão começou por dizer que não haveria limite para a capacidade de financiamento do banco público à economia. Para proteger as grandes empresas, o Governo jogou todas as cartadas: apoios de liquidez, nacionalizações parciais ou proibição de compra por acionistas estrangeiros. Só a Adidas receberá 3 mil milhões, praticamente metade da linha anunciada para Portugal.

Recuperar e reestruturar a economia vai requerer visão e investimento. Quem souber e puder fazê-lo, estará em melhores condições para enfrentar o futuro. Para os países agarrados a ideias antigas de austeridade, só há uma certeza: menos despesa hoje é uma economia mais pobre amanhã. E economias pobres não pagam impostos.»

Mariana Mortágua

A câmara de gás da Trofa

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/04/2020)

Daniel Oliveira

Se houver quem ponha aquele espaço a funcionar como uma câmara de gás, eu pago o gás". Foi com esta "piadola" que o coordenador da equipa de assistentes operacionais da Câmara Municipal da Trofa terminou um post, publicado no seu Facebook, em que criticava as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República.

Entre os 17 “gostos” estava, nem mais nem menos, o presidente da Câmara, Sérgio Humberto. Assim como o seu adjunto. É bom recordar, para tornar isto ainda mais absurdo, que além do PSD da Trofa ter dois deputados, o próprio Sérgio Humberto já lá esteve.

Vivemos tempos estranhos, onde as palavras e as indignações deixaram de ter qualquer valor. A liberdade de expressão é desvalorizada. Porque não significa nada. Tudo é uma vergonha e tudo é banal. Tudo é um escândalo e tudo é irrelevante. Uma cerimónia no Parlamento é motivo de ira, propor que ele se transforme numa câmara de gás é uma piada inofensiva. É desta indiferenciação moral das palavras que vivem os populistas. Porque eles conseguem um exercício duplamente vantajoso: podem dizer tudo, sem que isso deva ser levado a sério, o que lhes permite banalizar a ignomínia; mas tudo o que os outros façam ou digam pode ser adjetivado sem medida, de forma desproporcionada. Se eu não tiver qualquer problema em banalizar as palavras ganho sempre: tudo o que diga não faz mal nenhum, tudo o que o meu adversário faça é um escândalo sem fim. O outro só me pode combater se usar as mesmas armas, destruindo com isso qualquer ideia de debate público.

Por isso, é fundamental usar a proporção certa. E é o uso da proporção certa que me leva a dizer que a polémica em torno da comemoração do 25 de Abril não autoriza estas palavras e que elas são várias vezes gravíssimas. Porque correspondem à banalização de um dos crimes mais horrendos da história da humanidade, ao desejo da morte de políticos porque se discorda das suas opções e a um apelo contra a democracia. Por esta ordem de gravidade.

Ter um funcionário do Estado a escrever uma coisa tão grotesca e o Presidente da Câmara, seu superior hierárquico, a aplaudi-lo não pode ser um pormenor. Estamos perante um texto público e político. O apoio dado é público e político. As explicações, que me parecem impossíveis de dar a não ser confessando um comportamento leviano no espaço público, também têm de ser públicas e políticas. Que devem passar por um pedido de desculpas aos deputados, em primeiro lugar; à memória dos que morreram no Holocausto e à comunidade judaica em particular, em segundo; e aos trofenses, pela imagem grotesca que o autarca e os seu funcionário passaram da instituição que dirigem e onde trabalham.

Se o autarca aplaudiu sem ler até ao fim (o que é possível), terá de passar a ser mais cuidadoso nos seus gestos públicos. Não deixa de ser político quando está nas redes sociais. E deve esclarecê-lo publicamente, com a devida retratação, não optando pelo silêncio a ver se passa, como uma criança.

As palavras não são dejetos que se atiram para a rua, são instrumentos de relação com os outros, tão importantes como os atos. E as redes sociais são espaço público – se as deixamos abertas – ou semipúblico, se as fechamos. Não fazem parte da nossa privacidade e seguramente não fazem parte da privacidade de um político. Nem de um jornalista ou de quem tem funções públicas que dependem da imagem e do nome. O “gosto” do presidente a uma das afirmações mais grotescas que já li nas redes sócias – e todos sabem como isso é um concurso difícil de vencer – não pode ser mais um daqueles episódios irrelevantes em que o abjeto se normaliza até deixar de ser tratado como abjeto.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Brasil: o egomaníaco e os seus ratos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/04/2020)

Daniel Oliveira

Enquanto Donald Trump dá largas à sua incomensurável, imparável e atrevidíssima ignorância – que depois tentou disfarçar com “sarcasmo” –, o seu irmão mais pobre dedica-se a esquartejar o seu próprio governo no meio de uma pandemia. Eliane Brum, jornalista do El País Brasil, cujas colunas de opinião me ajudam sempre a compreender o que ali se passa, resume: “Jair Bolsonaro é um antipresidente. E a antipresidência é um conceito. Desde que assumiu ele faz oposição ao seu próprio Governo.”

Jair BolsonaroJair BolsonaroJOÉDSON ALVES

Num país onde já morreram mais de quatro mil pessoas e se aproxima dos 400 óbitos diários, sendo os desfavorecidos os mais atingidos, Bolsonaro fez campanha contra as indicações das autoridades de saúde para conter o vírus que só provoca uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”, entrou em conflito com a maioria dos governadores e foi desmantelando o seu próprio executivo.

O primeiro passo foi a demissão do ministro da Saúde, gesto arrojado neste momento. O segundo, o confronto com o todo-poderoso Sérgio Moro, que também se demitiu.

A torre de Babel política construída em torno de Bolsonaro, composta por militares saudosista da ditadura, magistrados populistas que julgavam ter chegado a sua vez de ir ao pote do poder, fanáticos religiosos bem lançados no negócio milionário da salvação das almas, abutres neoliberais ansiosos por encontrar um Estado fraco para os debaixo e servil para os de cima, desesperados da direita tradicional dispostos a tudo para não serem levados na enxurrada e mais uns quantos lunáticos que acham que Olavo de Carvalho é um intelectual, está a ruir.

Com o ministro da Justiça e Segurança Pública, a gota de água terá sido a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo. Segundo Moro, o Presidente queria manter-se informado das investigações da PF. Sobretudo por causa das tropelias dos seus filhos mas também de aliados. Com um toque politicamente irónico, Sérgio Moro até atirou uma pedrada à narrativa que ele próprio construiu, elogiando o governo de Dilma Rousseff por ter respeitado a autonomia da Polícia Federal. Estes momentos são especialmente interessantes, porque permitem que os seus atores, na reconstrução dos seus argumentos, denunciem as suas próprias mentiras. A guerra entre Bolsonaro e Moro ainda nos vai revelar muita coisa.

À hora a que escrevo, o Presidente parecia estar apenas interessado em salvar a família, colocando dois amigos no Ministério e à frente da Polícia Federal. E a troca de acusações entre Presidente e ex-ministro ia ao rubro, com Bolsonaro a dizer que Moro aceitaria não fazer ondas se ele o nomeasse para o Supremo Tribunal Federal (STF) e Moro a insinuar que o Presidente lhe ofereceu esse lugar para ele o deixar interferir nas investigações da Polícia Federal. Olhando para o caráter dos dois, qualquer das duas pode ser verdadeira. A lavagem de roupa suja vai ser linda de se ver.

APAGAR AS ESTRELAS

Sérgio MoroSérgio MoroJUAN CARLOS HIDALGO

Compreende-se a irritação de Sérgio Moro. Ele não podia permitir que o Presidente fizesse o que ele próprio fez como juiz da Lava-Jato: recolher informação junto do Ministério Público, indicar testemunhas, orientar a inclusão de provas ou sugerir mudanças no andamento da operação, numa descarada violação do seu dever de neutralidade – pela qual terá de se defender no Supremo para onde queria entrar. Esses são abusos que reservou para construir a sua carreira política e a que não deixou de recorrer para proteger o próprio Presidente, familiares e aliados. Acreditar que Moro se demitiu por não aceitar que se viole o princípio da independência de quem investiga implica apagar todo o seu currículo como magistrado e ministro.

Sérgio Moro usou Lula da Silva e a Lava-Jato para chegar à política e Jair Bolsonaro como rampa de lançamento para uma carreira no topo do Estado. Sabendo que a nomeação para o STF é hoje uma miragem (“seria como ganhar a lotaria”, disse Moro o ano passado) – quer porque já não tem a simpatia do Presidente, quer porque as provas da sua promiscuidade com o Ministério Público na Lava-Jato chamuscaram a sua credibilidade como magistrado –, é na sua carreira política que Moro continua a pensar: “sempre estarei à disposição do país”, disse. Um governo em frangalhos deixou de lhe ser útil.

Bolsonaro conhece bem as ambições de Moro e sabe que o seu justicialismo populista o transformava no ministro mais popular do seu governo. Muito mais popular do que ele. E perigoso quando o começou a desafiar. Também foi isso que o levou a afastar o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a meio de uma pandemia – popularidade e desalinho. As discordâncias quanto à necessidade de medidas de confinamento mantêm-se com o seu sucessor, Nelson Teich. Mas, para além do novo ministro vir do mundo dos negócios, que Bolsonaro compreende melhor do que qualquer ideia de saúde pública, não o enfrenta publicamente nem tem, como tinha Mandetta, índices de popularidade mais altos do que o Presidente.

Tudo se resume ao ego de Bolsonaro. Nisso, a diferença entre ele e Trump é só a sofisticação política que se vive num e noutro país. Tudo foi resumido pelo próprio Bolsonaro: “De algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça delas. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, têm provocações. A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona." Só pode brilhar uma estrela no firmamento, mesmo que sem as outras ele nada consiga fazer. Porque ao contrário do poder que tem um objetivo, por mais sinistro que esse objetivo seja, a popularidade de Bolsonaro precisa apenas de conflito. É disso que ele vive. O que quer dizer que ele precisa de se opor ao poder, mesmo quando o tem. O populismo mantém-se, procurando sempre novos inimigos.

Como Trump, Bolsonaro não tem um projeto político, tem um projeto pessoal. Tudo gira em torno da suas necessidades narcísicas. Em Portugal, a um nível até mais patológico, por não estar associado a qualquer convicção prévia, o líder do Chega corresponde a este perfil e qualquer relevância política que ganhasse teria os mesmos resultados. Mas por estas figuras grotescas não terem outro projeto que não seja o seu próprio espelho não quer dizer que a sua chegada ao poder não corresponda a um projeto. A vários, aliás. Que as usam e manipulam, até começarem a ensombrar o monstro que ajudaram a construir e o monstro se transformar num problema para o seu futuro político. No caso do Brasil, o problema tornou-se demasiado claro com a pandemia, em que a incompetência se mede em mortes diárias. Não que a morte, num país onde a vida vale quase nada, os preocupe. Mas preocupa-os o que lhes pode sobrar quando descontados os fanáticos que seguirão o Presidente até ao precipício, que ainda são muitos.

O BARCO QUE SE AFUNDA

Foto GettyFoto GettyVICTOR MORIYAMA

O barco de Bolsonaro está a afundar-se e, como é costume nestes momentos, os ratos estão em fuga. As ambições de Sérgio Moro precisaram da investigação politicamente orientada a Lula, do impeachment ilegítimo e ilegal de Dilma e do caos institucional dos três anos seguintes que arrasou uma direita tradicional que dificilmente lhe daria lugar cimeiro. Mas os projetos políticos e pessoais de Moro dispensam um governo em frangalhos onde só Bolsonaro pode brilhar. Por isso e só por isso está de partida. Já aceitou desautorizações bem mais graves, já protegeu corruptos dentro do próprio governo, já aparou muitos golpes aos filhos e aliados do Presidente.

João Dória, governador do PSDB de São Paulo, precisou de Bolsonaro para se salvar da razia da direita tradicional – e por isso o apoiou –, mas o preço desse apoio não poderia ser um amontoado de cadáveres no estado mais afetado pelo coronavírus. Só o suicídio político poderia permitir que o governador do Estado onde se concentram 40% dos óbitos seguisse os delírios irresponsáveis de Bolsonaro, contrariando as indicações das autoridades de saúde e do então ministro da pasta. Foi o último político contra quem a tribo de loucos fanatizados que rodeia Bolsonaro ainda conseguiu dirigir as suas forças com eficácia.

O outrora poderoso ministro da Economia Paulo Guedes precisou de Bolsonaro, por perceber, como perceberam os “Chicago boys” que assessoraram Augusto Pinochet, que o instrumento natural para a imposição das receitas neoliberais é um governo autoritário. Mas perceberá que, perante uma pandemia desta natureza, os próximos meses dificilmente estarão de feição para os seus projetos e caberá à ala militar do governo liderar um programa de obras públicas. O Estado mínimo torna-se agora especialmente pornográfico. Um Estado mínimo que não era só dele, era também de Temer e dos seus aliados no governo nascido do golpe, que tiraram milhares de milhões à saúde e à educação. Está a ser pago agora.

Já os militares, sonham com a queda do seu joguete. Lá estará o vice Hamilton Mourão para, na sucessão de golpes constitucionais desde o impeachment de Dilma, devolver o poder do Brasil a quem a democracia arrancou.

Todos eles sabiam quem era o egomaníaco que puseram no Planalto. Qualquer demonstração de sobressalto ético, neste momento, é uma piada de mau gosto. Apenas percebem que o barco está a afundar-se e, como todos os ratos, correm para terra. Veremos qual deles usou melhor a tragédia do Brasil para garantir o seu futuro. Ou se não é o próprio Bolsonaro a trocar de novo as voltas a todos. Por mais inacreditável que seja, um terço dos brasileiros continua a apoiar Bolsonaro. Como diz o diretor do Brazil Institute da Universidade King's College, no Reino Unido, apesar do impacto negativo que a demissão de Sérgio Moro representa para o governo, “o bolsonarismo é uma força orgânica no país” que não pode ser subestimada.

No meio de tanta tragédia, resta a consolação de ver, no confinamento, a oposição social ganhar força, o que não deixa de ser irónico. Os “panelaços” contra Bolsonaro, em que o povo bate panelas e grita contra o Presidente, às janelas, e o manifesto dos filhos das empregadas domésticas obrigadas a ir para casa dos seus patrões, ainda antes do pico da epidemia ou de qualquer indicação de queda, são exemplos disso. Entretanto, a divisão na base de apoio do Presidente abre brechas e a direita brasileira prepara-se para a sua guerra fratricida. Ganhem ou percam os que agora abandonam o Presidente, eles não são nem arrependidos nem desiludidos. São o que sempre foram: oportunistas.

Um modelo que não nos serve

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 24/04/2020)

Esta crise é uma tempestade perfeita para as economias periféricas do Sul da Europa. Para além de algumas delas se contarem entre os epicentros da epidemia, são economias altamente dependentes dos sectores do turismo, hotelaria, restauração, imobiliário e construção, que estão e vão continuar a ser afetados de forma especialmente intensa e duradoura pelas limitações adotadas em resposta à crise médico-sanitária e pelas alterações de padrões de consumo e estilo de vida que provavelmente se seguirão. São economias com tecidos produtivos muito pulverizados, com um peso das micro e pequenas empresas bastante superior à média europeia, e mercados de trabalho muito precarizados, com elevada prevalência de trabalhadores por conta própria e de modalidades atípicas e mais vulneráveis de contratação. Finalmente, têm muito pouca capacidade orçamental para responder à crise: em parte por desenho institucional, uma vez que não possuem soberania monetária; em parte por herança do passado, dado o fardo do endividamento que trazem da última crise.

Nas últimas semanas, pelo menos dois exercícios de medição e comparação internacional da vulnerabilidade das economias à crise do coronavírus ilustram isto mesmo. Em março, a agência alemã Scope Ratings publicou uma matriz de vulnerabilidade económica e dos sistemas de saúde que considerava, na parte económica, o peso do turismo no produto, o peso do emprego temporário e em micro-empresas, o peso da produção industrial e o grau de participação em cadeias de valor globais. Sem surpresa, as quatro economias europeias que surgem como mais vulneráveis são, por esta ordem, a Itália, a Grécia, Espanha e Portugal.

Há pouco dias, a The Economist elaborou o seu próprio ranking de vulnerabilidade, construído através da agregação de cinco indicadores: peso do emprego em pequenas empresas; percentagem de empregos que se estima não poderem ser realizados a partir de casa; peso dos sectores do lazer e restauração; dimensão do estímulo económico anunciado em resposta à crise; e medidas de proteção do emprego. A Grécia surge em primeiro lugar, a Espanha em terceiro e a Itália em quinto. O artigo não disponibiliza o ranking integral, não permitindo localizar Portugal ou perceber quais sejam o segundo e quarto classificados, mas parece bastante provável que um destes últimos seja o nosso país: as vulnerabilidades destas economias, incluindo a portuguesa, são bastante robustas à escolha de diferentes indicadores.

No meio de todos estes fatores de vulnerabilidade, há aspetos estruturais com raízes históricas profundas e especialmente difíceis de alterar. Mas há muito que decorre diretamente de escolhas políticas concretas. A estratégia de transformação de Portugal numa “Flórida da Europa”, especializada na exploração do turismo de sol e mar e na atração de reformados dos outros países europeus, foi afirmada em diversas ocasiões neste século e inspirou as decisões de mais do que um governante. Uma das origens intelectuais desta ideia é um artigo de 2006 do economista norte-americano Olivier Blanchard, em que se defendia explicitamente o “modelo Flórida” e a desvalorização interna como saídas para as dificuldades criadas pelo euro.

Terá ficado entretanto claro que uma tal sobre-especialização em segmentos do sector dos serviços caracterizados por salários baixos, empregos precários e baixa produtividade assenta numa visão estática e estreita das vantagens comparativas da nossa economia e introduz tendências para a desindustrialização, para a formação de bolhas de especulação imobiliária e para a vulnerabilização acrescida de uma boa parte da sociedade. Se essa aposta já comportava aspetos preocupantes mesmo em tempos de relativa bonança, revela-se realmente problemática perante uma crise como aquela com que estamos confrontados. Subitamente, tornam-se evidentes as desvantagens da excessiva dependência da monocultura do turismo e a importância da indústria nacional, não só para a economia como até para a segurança e para a capacidade de resposta médico-sanitária do nosso país.

É certo que não é e nunca foi possível converter instantaneamente a economia portuguesa numa economia altamente produtiva, maioritariamente assente em indústrias de alta tecnologia, serviços avançados e empregos de qualidade. Mas um longo período de apostas em sentido contrário, nalguns casos diretamente, noutros como consequência da dinâmica “natural” do mercado único quando se abdica de grande parte dos instrumentos de política económica, nomeadamente de politica industrial, não deixa de ter uma quota-parte importante da responsabilidade por trazer-nos até aqui. Esta crise está a deixar claro que este é um modelo que não nos serve; a discussão que se segue é como encetar o caminho para um modelo diferente.