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domingo, 3 de maio de 2020

Doze zeros, fora nada

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 01/05/2020)

O Governo desdobrou-se em três afirmações paradoxais. O ministro das Finanças saiu meteoricamente do seu retiro para prometer 12 zeros no apoio europeu às economias. E o ministro da Economia veio repetir, com o apoio do primeiro-ministro, que “despesas do Estado hoje são impostos amanhã”. Ao mesmo tempo, o Governo tem reafirmado que a austeridade foi um erro que não será repetido. Estas declarações são simplesmente contraditórias. Ou há dinheiro ou não há, e os 12 zeros ainda não deram um ar da sua graça. E, como o Estado está a aumentar a despesa para responder à pandemia, o ministro da Economia parece anunciar um aumento dos impostos para amanhã, a tal austeridade tão indesejável. Portanto, ou se trata de uma contradição, dado que a não-austeridade e a austeridade não podem ocorrer ao mesmo tempo no mesmo país, ou se trataria de um subterfúgio, revelando o que o Governo daria por certo, os “impostos amanhã”. Partindo do princípio de que não se trata de uma matreirice e que o Governo, sabendo o custo da austeridade, queira evitar o caminho da punição da vida social, vale a pena discutir o paradoxo do ministro Siza Vieira.

Seria desconsiderar o ministro, homem cuidadoso na formulação das suas opiniões, se se resumisse esta frase a uma trivialidade, “cá se fazem e cá se pagam”. Ora, a questão deve ser colocada exatamente ao contrário do que sugere o aforismo do ministro: se não houver agora despesa pública é que de certeza teremos mais impostos, como João Ferreira do Amaral explicou. Perante o impacto da covid-19, só o aumento da despesa do Estado (em gastos no serviço de saúde, em apoios a salários ou evitando que empresas vão à falência) é que permite evitar o agravamento da recessão. E, como só a recuperação da economia poderá garantir o aumento da receita fiscal sem aumentar as taxas dos impostos, a chave para a salvação é manter o emprego e reorganizar as cadeias produtivas, ou seja, investir para evitar a queda. Só nos salvamos da austeridade se a economia for relançada. Como não haverá investimento privado de monta, é o investimento público inteligente que nos protege do abuso dos impostos.

Em todo o mundo, o endividamento público gerado pela resposta à doença vai disparar. Os cálculos do FMI são que o défice dos países desenvolvidos será em média de 11% este ano e, assim, a dívida total dos países desenvolvidos aumentará no conjunto em seis biliões de dólares, mais 10%, alcançando 122% do PIB dessas economias. O pior que poderia acontecer seria mesmo que todos os ministros da Economia pensassem e agissem como se todas estas despesas tivessem que ser traduzidas em aumento de impostos.

Nesse caso, teríamos uma espiral depressiva à nossa porta, com medidas aplicadas nos vários países para garantir mais redução do PIB para solucionar uma redução do PIB. O que seria um erro num país transformar-se-ia num vírus generalizado no mundo. Já lhe conhecemos o nome, chama-se austeridade.

Ora, o que se aplica a Portugal aplica-se a todos. Os governos precisam de ajudar a cuidar das vidas. Isso tem um preço (mas o custo de não o fazer era maior), é défice e dívida. Mas, se a taxa de crescimento futuro (mais a inflação, mesmo que pequena) for maior do que a taxa de juro, o peso da dívida vai sendo absorvido e tende a diminuir, se for dívida a longo prazo. Combinadas com medidas de monetarização da dívida, que os EUA e o Reino Unido adotarão, porventura mais do que a zona euro, são as políticas de crescimento que evitam o aumento de impostos.

Se Siza Vieira me permite uma sugestão, diga aos seus colegas europeus que tirem da ideia essa bizarria de fazer pagar em impostos o esforço para salvar vidas e empregos e se esforcem em criar mecanismos de cooperação para absorver o choque e para relançar as economias.


No fim do jogo ganha sempre a Alemanha

Gary Lineker era um bom futebolista, mas decerto não antecipava a covid-19. E, no entanto, teve razão numa constatação que se tornou banal: mesmo quando são onze contra onze, a Alemanha tem a arte e o poder de ganhar o jogo. Com a pandemia, essa regra volta a funcionar.

Ao longo de duas décadas, a economia alemã beneficiou do euro em dois sentidos precisos: usou uma moeda menos valorizada do que o marco seria e captou transferências de valor dos países do sul, através dos desequilíbrios das balanças de uma e outros. A Alemanha foi financiada pelo sul da Europa. Tudo pareceria normal se os dias de hoje não pintassem a realidade com tintas cruéis.

Essa realidade é que, mesmo que não se saiba ainda como vão ser financiados e definidos os planos europeus (os triunfais 12 zeros que foram prometidos), já está em curso o mecanismo que o Governo de Berlim aproveitará para acentuar a sua vantagem, no contexto de endividamento que lhe é favorável. O árbitro deste processo é sofisticado. O jogo começa com a queda económica e, ao mesmo tempo, o disparar dos gastos com a doença e com os sistemas de proteção social, que geram défices elevados. Em consequência, os Estados emitem dívida. Péssima notícia para a Itália, ótima notícia para a Alemanha. A primeira fica obrigada a um juro que cresce (mais de 2%, a dez anos) e a última beneficia de um juro que desce (-0,4%); quanto pior é a crise do endividamento e maiores as incertezas, mais baixo o juro alemão, dado que a sua dívida é considerada um refúgio seguro. Ou seja, a pandemia é uma notícia para festejar: o mundo está a pagar para que o Governo de Berlim financie os seus gastos públicos. Mas ainda vamos na primeira parte do jogo. Como está auto-autorizado a fazer “ajudas de Estado” (que eram proibidas até agora, para obrigar as economias endividadas a privatizarem as grandes empresas públicas), o Governo de Merkel pode usar esse dinheiro que lhe é oferecido para reforçar, reconstituir ou recapitalizar as empresas nacionais que estejam em dificuldades. Ganha a todos, mesmo aos Estados Unidos. A Ford norte-americana, por exemplo, emitiu em abril oito mil milhões de dólares em obrigações com juros entre 8,5% e 9,6%. A dívida norte-americana a dez anos está 1% acima da da Alemanha. Ora, o Governo alemão, financiado a juro negativo, já despejou uma quantia semelhante à da aflição da Ford em três empresas: Adidas, a marca de equipamento desportivo, Tui, um operador turístico, e Lufthansa, a companhia aérea. O jogo ainda não acabou, mas está por ora a confirmar o prognóstico de Lineker.


Cuidado com a calamidade

O estado de emergência tem um enquadramento constitucional explícito e controlável. O Parlamento autoriza e o Presidente decreta os seus termos concretos, articulado com o Governo, com prazos limitados. Só nesse contexto são condicionáveis alguns direitos constitucionais, como o da liberdade de circulação e de reunião, ou atividades económicas e sociais. Os decretos incluíam ainda provocações ideológicas, como a suspensão do direito de greve na saúde e noutros serviços, ao mesmo tempo que reforçavam o poder de controlo de preços ou de mobilização de empresas privadas. Este último deveria ter sido um instrumento de grande intensidade na organização de recursos, ficará por saber porque foram requisitados hotéis mas não o hospital dos SMAS ou porque foi definido um preço máximo para o gás doméstico mas não para as máscaras. Em todo o caso, a norma da emergência constitucional estava regulada.

Em contrapartida, com o estado de calamidade, que alguns sempre defenderam como uma alternativa virtuosa, entramos no domínio da penumbra constitucional. É, por isso, preocupante ouvir o Governo defender que pode fazer o mesmo, desta vez com decisões administrativas do Conselho de Ministros, sem tutela parlamentar e por prazo indefinido. Não pode. Isso seria concentrar um poder de exceção sem controlos de exceção. O facto é que a calamidade só se aplicou até hoje por necessidades locais (incêndios) e, a ser estendida no território, teria que ter contornos legais claros e tempo limitado. O Governo deve disso prestar contas e não é concebível que use esta regra como a nova forma de gestão, sendo que a única justificação invocada é a pedagogia da adaptação a um desconfinamento cuidadoso. Maio não pode ser o mês do nevoeiro constitucional.

A sociedade zombie

Posted: 02 May 2020 03:48 AM PDT

«Toda a gente gosta de dar o seu contributo para a crise, de preferência ganhando algum com isso. Toda a gente tem uma ideia, uma ideia salvífica ou uma ideia catástrofe. A ideia mais útil neste momento, em que mal entrámos na crise — e a palavra crise foi tão gasta que está desvalorizada e pode ser aplicada a tudo, desde a crise existencial à crise sistémica —, é a de que da próxima vez será pior. Os especialistas do cataclismo avisam que isto não é nada, um nadinha, e que a próxima pandemia, outra palavra a perder valor na bolsa lexical, será pior, muito pior. Virá da China, como todas as pandemias, será mais mortal e mais devastadora do que esta, matará mais e será o resultado não do morcego e do pangolim ou de outros animais exóticos que se queiram juntar ao âmago do problema mas sim do modo como tratamos a Natureza. A Natureza seria, portanto, uma entidade orgânica unívoca, com um comportamento semelhante ao humano e que pratica e conhece os estados da vingança e da retribuição. A Natureza parece-se muito com uma mulher lívida de raiva, nesta leitura dominante.

Na próxima pandemia, teremos variações extremas da febre hemorrágica, assim entre o ébola e o Marburg, e os coronas descem de posto. Do lado desta extensa família de vírus, mais antiga do que a família humana e muito mais numerosa, a despromoção poderá não ser bem recebida, pelo que não é de excluir que se vinguem e que tenhamos em cima de uma pandemia pior do que esta outra pandemia mais ou menos parecida com esta. Estas distopias não servem para ganhar dinheiro, a não ser transformadas em livros ou em filmes catástrofes, e, como de filmes estamos parados, os livros são uma boa ideia. Devido à crise do livro, tais teorias esdrúxulas são oferecidas gratuitamente nas redes e distribuídas por todos os espíritos crédulos, que em vez de resolverem o problema que têm gostam de conhecer os problemas que não têm.

Nos especialistas do apocalipse contam-se vários cientistas, um grupo social muito sobrevalorizado, onde florescem os cientistas malucos. A caricatura do cientista maluco deslizou por vários filmes e livros de paupérrima ficção e atingiu o seu esplendor nos vilões do James Bond. É uma figura da banda desenhada, agora recuperada para a virologia e a futurologia. De todas as teorias malucas, a mais fácil e logo adquirida pelos ecologistas malucos é a de que a espécie humana é um vírus do planeta e que o planeta, ou a Terra, a tal Terra vingativa e feminina, está a eliminá-lo com doses maciças de viroses, lixívia do Trump e remédios para a malária. Para estes, a Terra sem humanos é um paraíso. Creio que ninguém perguntou aos dinossauros a opinião, um contributo bem-vindo, se os pudéssemos ressuscitar. Coisa que os chineses, com as suas pesquisas laboratoriais avançadas e seguríssimas e as suas clonagens de humanos, decerto poderão fazer no futuro, como espécie dominante.

Convém avisar que o melhor livro sobre pandemias assustadoras acaba de ser publicado e é de Lawrence Wright, o autor do melhor livro sobre o 11 de Setembro e a Al-Qaeda do Osama, “A Torre do Desassossego”. Wright tem a particularidade de escrever livros sobre catástrofes pendentes e que são publicados quando as catástrofes deixam de ser pendentes. Escrevendo habitualmente para a “New Yorker”, Wright é uma voz com autoridade sobre factos e a prudência de os colocar antes dos argumentos. O que quer dizer que é um ótimo jornalista de investigação. Este “The End of October”, saído nos Estados Unidos, traz-nos mais uma febre hemorrágica, Wright estava a pensar no ébola e não no corona. Tendo investigado os vírus de fio a pavio, incluindo os SARS, de que a covid faz parte, conclui para nosso desassossego que os vírus vieram para ficar e que existem mais vírus do que estrelas nas galáxias. São muitos, só os morcegos albergam milhões, mais do que os nossos sete biliões. O que espanta não é que tenhamos uma pandemia, é como é que não tivemos uma pandemia por mês. Mistérios da Natureza.

Falando de coisas mais práticas, uma ideia que faz caminho é a da sociedade em plexiglass. Parece que a grande solução para o desconfinamento seria a introdução do plexiglass nas nossas vidas. Quem investir em plexiglass fica rico, esqueçam as apps e as startups. Esta é a manufatura futura. Comecemos pelos restaurantes. Toda a gente sabe que a alegria do restaurante, aquilo a que chamamos o ambiente, é uma das suas qualidades. A comida pode ser boa, mas um restaurante vazio e silencioso, onde os criados espiam o menor gesto e ouvem as conversas, é de evitar. Mesmo um Michelin estrelado. Vai-se ao restaurante para conversar, comer, conversar mais, beber. A chamada convivialidade, uma das palavras mais recentes e mais usadas, uma das palavras mais horríveis, é a base da ida ao restaurante. Imagine que para ir ao restaurante tem de usar luvas, máscara e botas de plástico, tem de ser testado com um termómetro, tem de ser borrifado com desinfetante e untado com gel, tem de ficar a milhas das outras mesas, tem de encomendar por linguagem gestual, usando menos perdigotos infecciosos, visto que o criado está a dois metros da mesa, e tem — aqui entra a ideia luminosa — de ficar separado dos outros comensais, incluindo os seus, por um plexiglass.

É verdade, um separador de plexiglass proteger-nos-á do corona e fará com que possamos jantar e almoçar à vontade, do nosso lado do acrílico, autorizando-nos a falar com a boca cheia. Claro que a ideia da sobremesa partilhada fica posta de parte, e sabe Deus como esta ideia vingou desde o assassínio do açúcar, e a ideia de uma ‘vaquinha’, um prato a meias, também. Para os casais felizes que apenas puxam do telemóvel e não dizem uma palavra durante a refeição, enquanto falam com os amigos no Facebook e fotografam a comida para o Instagram, a introdução do plexiglass não prejudicará. Para todos os outros, as pessoas normais, olhem, habituem-se. Deixarão também de ir ao restaurante, e de andar de avião, onde o plexiglass separará os assentos, as crianças e os velhos. As crianças porque são assintomáticas, sobrevivem e são perigosas para os adultos. E os velhos porque são doentes facilmente infetados e são um perigo para toda a gente, além de serem uma custosa maçada. Os velhos ficam confinados, e as crianças, que lidam mal com o plexiglass, logo se vê. Pode ser que inventem o restaurante com creche acoplada. Ora, o preço do bitoque e do arroz de marisco, do flan e da mousse caseira, não vai ser o mesmo. Vai custar mais do que andar de avião, para compensar os custos da proteção. Os hospitais privados já começaram a tributar-nos a dita.

Não podemos pôr de lado estas duas boas ideias, a da pandemia pior e a do plexiglass, porque na sociedade zombie onde vamos viver é assim que vai ficar tudo bem.»

Clara Ferreira Alves

Do lado das soluções e não dos problemas!

por estatuadesal

(Joaquim Vassalo Abreu, 30/04/2020)

Eu não me lembro de enxovalho assim desde aquele célebre dia em que João Galamba cilindrou Vitor Gaspar em pleno Parlamento, aquando daquela sua peregrina ideia de baixar a TSU às empresas ao mesmo tempo que a subia na mesma proporção aos trabalhadores.

Lembro-me do seu ar atónito e acabrunhado, assim como quem pensa para si mesmo “meti mesmo o pé na poça”. Desta vez, há dias e numa audição no Parlamento, assistimos a uma postura diferente do atingido: uma postura também ela de incredulidade mas jactante, tão jactante quanto a sua figura e ignorância.

Era acerca do futuro da TAP e o deputado do CDS, fazendo a figura de verdadeiro cão de fila, quando o Ministro Pedro Nuno Santos o informava que o Estado estava a avaliar todas as soluções, decretou: Mas nacionalização não aceitamos!

A sua solução (a dos Privados que com 45% do capital “governam” a TAP) era a da obtenção por estes de um empréstimo de 350 milhões de Euros mas…com o Aval do Estado! Era “Governance” dizia ele…

“Governance” deve ter sido a única coisa que deverá ter aprendido pois todos nós sabemos, sejamos formados em Economia ou não, que quando uma empresa precisa de capital e os acionistas querem manter a sua posição societária têm que acorrer ao aumento de capital na devida proporção.

Mas o “inteligente”, defendendo os seus donos, queria que fosse o acionista Estado, que possui 50% do capital, mas sem “governance”, a garantir o empréstimo dos acionistas privados, que têm 45%, e tudo ficasse na mesma. Mas, na verdade, a isso foram sempre habituados…

Quando confrontado com a verdade quase “Lapaliciana” de que um Aval do Estado a gestores que já antes da crise do Covid 19 e em anos de alta apresentavam progressivos prejuízos, era um Aval do Povo Português, que fatalmente o teria que pagar…abanou os ombros e, naquele seu ar de boneco “Felliniano”, só disse, “ Governance”…

Depois PEDRO NUNO SANTOS deu-lhe uma autêntica aula de GOVERNO, mas ele não deve ter entendido nada: o sacar dinheiro ao Povo é a sua “Governance”, aquilo que lhes ensinaram e a única coisa que aprenderam…

Fantástico é ouvir depois comentadores e comentadores recriminarem Pedro Nuno Santos, o Ministro da pasta, e defenderem a gestão dos privados, como se a crise da TAP e da sua gestão tivessem começado agora com a crise da Pandemia. E mais, respaldando-se das palavras de Costa na entrevista à RTP que, não estando numa audição no Parlamento respondendo a perguntas concretas, estando em causa diversas variáveis e soluções, foi mais comedido e evasivo.

Logo concluíram essas aves de rapina todas, sedentas de alguma pequena fuga, incoerência ou desacerto, ter Costa dado uma autêntica “sapatada” no seu Ministro porque, dizem eles, será um putativo seu sucessor, e Costa isso não perdoaria!

À falta de melhor, porque Costa e o seu (nosso) Governo não lhes têm dado motivos, agarram-se a uma palhinha querendo logo fazer dela um palheiro! Mas sempre naquele confuso estado de alma que os apoquenta: Não podendo dizer que Costa tem estado mal e antes pelo contrário até são obrigados a dizer que esteve bem, têm que acrescentar um “mas”, sempre um “mas”…

Mas se eu hipoteticamente fosse por um desses perguntado ( e isto é apenas retórica), questionado ou pressionado, coisa que eu bem percebo da actividade jornalística, sobre algo que todos sabemos ser incerto e desconhecido, insinuando entre palavras dúvidas sobre as atitudes tomadas com destemor e coragem percebendo bem o pulsar da sociedade pelo Governo, também eu seria um pouquinho agreste e desmedido e responderia: E você, o que faria?

É claro que sendo isto apenas retórica, reflete apenas uma certa impaciência perante perguntas e mais perguntas completamente desajustadas como: “Acha que vamos poder ir para a praia no Verão”? Acha que vamos ter Festivais no Verão?”.É claro que a única resposta possível seria na mesma linha: E o Senhor, que acha?

Pelo que, sabendo qualquer pessoa a situação em que estamos e muito mais os Jornalistas, sabendo todos que ainda nada sabemos e nem sequer os cientistas, porque é que essa gente não se consegue imaginar na posição de quem tem de tomar decisões, sem qualquer informação ou intuição que não recurso ao bom senso, continua a pavonear a sua imbecilidade fazendo essas perguntas, sem qualquer achega que seja a um sentimento positivo?

Vi e ouvi há dias um Empresário Português, um daqueles que rápidamente conseguiu fintar a crise e falta de encomendas e mudar o objecto de produção da sua Empresa, dizer a frase basilar e que é aquela que nos distingue e levou a própria OCDE a afirmar estarmos em primeiro lugar no ranking dos Países que mais projectos inovadores lançaram nesta crise:

Nós estamos do lado das soluções e não dos problemas!

sábado, 2 de maio de 2020

Sonhar é grátis

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/05/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Vamos imaginar que, em Novembro, Trump e aquela múmia paralítica que faz de vice-presidente, Mike Pence, são dispensados pelos americanos de os continuarem a governar durante mais quatro anos; que Vladimir Putin deixa de se ocupar tanto com conspirações, perseguições aos adversários internos e exibicionismo do seu ego; que Xi Jinping e a nomenclatura chinesa reconhecem que o sistema de poder do PCC, fundado no autoritarismo, centralismo e secretismo, evitou que o mundo fosse avisado a tempo da emergência de um novo vírus letal, tornando a sua difusão planetária incontornável e as subsequentes consequências económicas devastadoras para todos. E, enfim, imaginemos ainda que alguns subfigurantes, não mais recomendáveis mas menos importantes — Bolsonaro, Duterte, das Filipinas, Orbán, da Hungria, Erdogan, da Turquia, Daniel Ortega, da Nicarágua, os Queridos Kim, da Coreia do Norte, Nicolás Maduro, da Venezuela, alguns fantoches africanos, o assassino príncipe saudita, o carniceiro sírio ou o aldrabão israelita —, saíam de cena ou eram obrigados pela comunidade interna­cional a portarem-se como gente decente durante uns tempos.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

E, então, vamos imaginar que, sob a égide das Nações Unidas, do Banco Mundial, do FMI e de agências como a OMS, a FAO e a UNESCO, era lançado um plano de recuperação económica à escala global baseado nos seguintes pontos: apetrechamento dos serviços de saúde públicos; plano de emergência contra a fome e a escassez de água; prioridade à recuperação dos postos de trabalho perdidos; desenvolvimento económico assente no combate às alterações climáticas, privilegiando as indústrias, sectores e actividades não poluentes; investimento na diminui­ção significativa das desigualdades económicas regionais e sociais; apoio determinante ao sector cultural e à imprensa de referência. Acordados estes princípios, passar-se-ia às medidas concretas:

— lançamento de um imposto extraordinário sobre 50% dos lucros nos próximos três anos das mil maiores empresas do mundo. Imposto este cuja receita reverteria metade para o FMI, que a utilizaria no finan­ciamento da recuperação económica dos países, de acordo com os critérios acima definidos, e metade ficaria nos países de origem das empresas, sendo obrigatoriamente aplicada nos sistemas de saúde, no desenvolvimento de energias limpas, agricultura sustentável e reconversão das indústrias poluentes;

— moratória de cinco anos acordada entre os dez maiores produtores e vendedores de armas, durante os quais esses países se comprometiam a não produzir ou comercializar qualquer nova arma, nuclear ou não nuclear, navio, avião, canhão ou tanque. O dinheiro poupado com essa moratória seria integralmente entregue à ONU, que, através das suas várias agências, o aplicaria no combate à fome, à distribuição de água, à eliminação das desigualdades, ao fortalecimento dos sistemas de saúde, ao fomento do combate às alterações climáticas e à promoção da cultura e da informação séria;

— ‘imposto’ particular em espécie sobre a China e a favor de África, reconhecendo quer a particular responsabilidade da China na pandemia do coronavírus quer a particular vulnerabilidade de África para a enfrentar. O imposto consistiria na doação ou financiamento de hospitais e respectivo apetrechamento, incluindo camas, salas de operações, UCI, ventiladores, etc., em quantidade minimamente suficiente;

— tributação extraordinária e à escala global sobre todas as empresas multinacionais cuja dimensão de mercado seja considerada demasiado grande, a ser efectuada em todos os países de actuação das empresas e a uma mesma taxa.

— idêntica tributação extraordinária sobre combustíveis fósseis, cuja receita os Estados só poderiam aplicar em medidas de descarbonização;

— limitação do número de voos consentidos diariamente no planeta, distribuindo os direitos de voo pelos países em proporção com a população e o grau de CO2 emitido;

— estabelecimento de uma lista de locais considerados absolutamente essenciais para a conservação da biodiversidade do planeta e para o controle do aquecimento global, elaborando uma Carta das Reservas Naturais do Planeta Terra, as quais permaneceriam intocáveis, sendo os países cujas fronteiras as integrassem compensados financeiramente todos os anos pela sua não exploração;

— medidas concertadas e eficazes contra as offshores e as empresas sediadas em offshores, começando logo pela impossibilidade de recorrerem a quaisquer apoios estatais ou outros e de participarem em concursos internos ou internacionais, e, dentro da UE, começando por pôr fim aos seus membros que funcionam como offshores: Holanda, Luxemburgo, Malta e Irlanda (não esquecendo a ilha da Madeira).

O que resultaria daqui? Desde logo, triliões de dólares, de euros, como jamais visto ou imaginado. Triliões destinados a uma causa comum e com objectivos comuns e concretos. Resgatar-nos a todos desta crise planetária de saúde e de sobrevivência económica. Deixar a Humanidade mais saudável, mais próspera, mais segura, mais justa, mais informada e menos indiferente à sorte alheia. E, simultaneamente, começar a limpar o planeta em que vivemos e que vimos paulatinamente exaurindo ano após ano.

Tenho lido textos de variada e bem-intencionada gente defendendo o contrário: que nem o vírus tem alguma coisa a ver com a forma predadora como tratamos a Natureza nem a recuperação económica, que todos desejamos seja tão rápida quanto possível, se poderá dar ao luxo de se preocupar minimamente com questões ambientais. E li até, do Henrique Raposo, aqui, uma versão intermédia e verdadeiramente possessa: a de que o vírus tinha vindo da Natureza, sim, da “natureza fascista”, a qual, segundo percebi, tinha de ser vergada e derrotada pela superioridade do Homem. Contra o fascismo, marchar, marchar!

Ora, meus caros, duas coisas: factos e oportunidade. Quanto aos factos, não há como ver para perceber. Tal como já aqui escrevi há tempos, contrariando os arautos do olival superintensivo de Alqueva, aconselho-vos, agora que vamos todos ter férias cá dentro, a darem um passeio até lá: se alguma vez viram um olival ou uma paisagem de montado alentejano, não vão reconhecer aquilo. Aquilo, que o Governo tanto apoia, não é nem agricultura nem paisagem natural e não vai acabar bem, basta ver. Mas prolonguem o passeio e vão ver os eucaliptais da serra da Ossa ou da serra de Monchique, que já são antigos: quando estiverem a olhar para aquela Natureza literalmente morta, deserta de qualquer sinal de vida, compreenderão por que razão aquilo já não tem nada a ver com serras, mas apenas com um estaleiro de incêndios. Está dito, está escrito, está provado há muitos anos que qualquer monocultura intensiva é um desastre ecológico, paisagístico e humano. Quando a terra fica exangue, quando desaparecem todos os animais e humanos, quando pega fogo, a culpa é da Natureza? Exemplos destes poderia dar dezenas, desde o que era a paisagem do fundo do mar no Algarve há 30 anos e o que é hoje, o que era voar sobre a Amazónia de noite há 30 anos e já então ver dezenas, centenas de fogos a abrirem feridas de morte no coração da mata. Dou apenas um número que, por sua vez, dá a noção das coisas: morreram de covid 4600 chineses, mas, nos dois meses em que a economia chinesa esteve quase parada, segundo um estudo da Universidade Stanford, a ausência de poluição atmosférica nos céus da China poupou quatro vezes mais vidas de chineses do que aquelas que o vírus levou.

Quanto à oportunidade, ela é simples: aproveitar ou não aproveitar este terramoto económico sem precedentes em todo o mundo para tentar regressar começando a fazer diferente. Há anos, há décadas, que se fala nisso, mas nunca houve ocasião para desacelerar, porque os governos tinham sempre eleições para ganhar e os governados tinham sempre mais para reivindicar. Agora foi mais do que uma ocasião: esbarrámos contra uma parede. Nunca mais teremos uma oportunidade como esta para fazer diferente.

Eu sei que tudo o que escrevi acima é uma utopia. Sei que raramente os grandes do mundo são gente de bem e, mesmo quando o são, há qualquer coisa no poder que parece que torna sempre mais importante conservá-lo do que exercê-lo em nome de um ideal de bem. Por vezes, o apelo para o mal vem de baixo e o poder não lhe resiste ou até aproveita para o cavalgar: é assim que gente tão desprezível como um Trump ou um Bolsonaro chegam ao poder.

Nem sequer apregoando o bem, mas ostensivamente oferecendo a patifaria e a cruel­dade como programa politico — e há momentos na vida dos países em que o povo gosta. Sei, pois, que a minha utopia não tem qualquer viabilidade. Mas, com muito menos ambição, alguma coisa de diferente pode e deve ser feita. Seríamos imensamente estúpidos se achássemos que tudo pode voltar a ser igual sem consequências.

2 A generalidade da imprensa adorou o discurso de Marcelo no 25 de Abril. Eu não. Se ele queria intervir na polémica levantada pelas celebrações na Assembleia (que tinha razões válidas de ambos os lados), deveria ter sido para unir o que a ridícula postura de caça-fascistas de Ferro Rodrigues tinha dividido e jamais para se colar a um presidente da Assembleia da República que tem feito tudo o que alcança para promover o Chega e desprestigiar-se a si próprio. Mas o 25 de Abril foi apenas um pretexto: o que Marcelo fez foi o discurso de lançamento da sua recandidatura. Encostando-se descaradamente ao eleitorado do PS e acenando ao do BE.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

01.05.1973 - Uma «despedida» do 1º de Maio em ditadura

Posted: 01 May 2020 03:37 AM PDT

Às 2:50 minutos do 1º de Maio de 1973, as Brigadas Revolucionárias executaram uma das suas acções mais espectaculares, da qual resultou a destruição de dois andares do Ministério das Corporações (actual Ministério do Trabalho e da Segurança Social), na Praça de Londres em Lisboa.

Explicaram mais tarde em comunicado (que pode ser lido AQUI, na íntegra): «O Ministério das Corporações é, por um lado, o instrumento mais directo dos patrões portugueses e estrangeiros, que através dele fixam as condições de trabalho do proletariado – salários, horários – enfim, exploração e repressão (…); e, por outro, um instrumento de exploração directa dos trabalhadores, através da Previdência (…) que fornece serviços de Saúde e Previdência miseráveis.»

Durante a tarde, foram recebidos telefonemas com falsos alertas de bomba em várias grandes empresas de Lisboa. Veio a saber-se depois que se tratara também de uma iniciativa ligada às Brigadas Revolucionárias, cujo objectivo era «libertar» mais cedo os trabalhadores para que pudessem participar na manifestação.

Facto demasiado grave e espectacular para que a censura o silenciasse, foi noticiado nos meios de comunicação social e objecto de todas as conversas, num dia quem que se preparavam manifestações proibidíssimas, precedidas por largas dezenas de detenções, como a CNSPP (Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos), de 09.05.1973 veio a relatar:

«Tem-se verificado, nas últimas semanas, um acentuado agravamento da repressão política no nosso país: com o pretexto de impedir quaisquer manifestações públicas por ocasião do 1.º de Maio, procedeu a Direcção-Geral de Segurança à prisão indiscriminada de um elevado número de pessoas, em várias localidades e pertencendo aos mais diversos sectores de actividade profissional. Só durante o período que decorreu de 7 de Abril a 7 de Maio tem a CNSPP conhecimento de terem sido presas 91 pessoas, cujos elementos de identificação se possuem já. Sabe-se, no entanto, que muitas outras dezenas de pessoas foram detidas (...)

As forças policiais desencadearam, nos primeiros dias deste mês, uma desusada onda de violência. No 1.° de Maio, as zonas centrais da cidade de Lisboa e Porto foram teatro de grandes concentrações por parte das forças das diversas corporações policias e parapoliciais (com agentes fardados e à paisana). No Rossio e em toda a área circundante essa presença não se limitou ao papel de intimidação ou de repressão, mas adquiriu características de verdadeira agressão: espancamentos brutais e indiscriminados, grande número de feridos, dezenas de prisões. Dessa agressão, foram vítimas muitos trabalhadores, assim como estudantes e outras pessoas que se limitavam a passar pelo local»