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segunda-feira, 4 de maio de 2020

O mistério da Cultura

Posted: 03 May 2020 03:33 AM PDT

«Raymond Chandler foi convidado, um dia, para escrever um argumento para o realizador Billy Wilder. Apesar de considerar que Hollywood era uma mansão mal-afamada, Chandler aceitou. Mas colocou uma condição. Tinham de pagar-lhe 150 dólares pelo trabalho. Wilder respondeu que tal não seria possível: o estúdio já tinha decidido pagar-lhe 750 dólares. Nunca houve o perigo de alguém chegar ao Ministério da Cultura e ser surpreendido por uma resposta assim. A generosidade tem limites na instituição sitiada no Palácio da Ajuda.

O Ministério da Cultura é um OVNI. Consta que os agentes Scully e Mulder chegaram a investigá-lo, mas o episódio dos X-Files com esta averiguação nunca foi exibido. De nada vale tocar à campainha do MC. Está desligada. Como se está a provar agora. Perante a implosão do sector da cultura em Portugal, o que fez? Criou um festival televisivo, que custaria um milhão de euros, e preparou um pacote para ajudar as editoras no valor de 400 mil euros. Com essa extremosa actividade, a sr.ª Graça Fonseca ganhou a distinção de “inexistência ministerial de 2020”. Não é um acaso. A sr.ª Fonseca, exemplar executiva, está no cadeirão do MC como poderia estar noutro lugar qualquer. Está lá em comissão de serviço para gerir uma casa sem destino e sem dinheiro. Viveu até agora de aparências.

Muitos acreditaram numa ilusão. Que, com a passagem de secretaria de Estado a ministério, a cultura ganharia dignidade. E dinheiro, o célebre maná do 1% (ou, mesmo, a utopia dos 2%). Errado. Nada mudou, só o nome. O resto, o dinheiro, continuou a ser uma miragem. A comédia continuou em marcha. Até agora. O momento da verdade. Acreditar que este MC existe é acreditar que Elvis Presley continua vivo. O MC é a caverna de Ali Babá. Bem os artistas podem clamar: “Abre-te, Sésamo!” A única coisa que de lá saem são personagens da Rua Sésamo. Divertem-nos, mas não têm ideias para a cultura nem dinheiro para fazer o que seja. São inúteis. Embora, bondosamente, acreditem (e acho que alguns acreditam mesmo) que estão ali para mudar o mundo.

O que custa mais é que o MC não tem uma estratégia para a cultura em Portugal. E isso é grave. O sucesso de um país depende das pessoas e das ideias. Não é só contabilidade. Há dias, o realizador Costa-Gavras dizia no El Mundo: “Creio que as coisas do espírito, a cultura, ainda mais nos tempos de crise, ajudam a reflectir, a unir as pessoas. A cultura liberta-nos dos nossos medos e faz-nos melhores. Por isso deve dar-se à cultura a mesma consideração, se não mais, que a todas as demais necessidades da sociedade.” Este poderia ser um momento de ruptura. Teme-se que seja o do colapso total.

Estes tempos lembram o célebre fim do século XIX, numa Viena por onde deambulava Karl Kraus. Aí, a política tornara-se a menos empolgante das artes performativas. Não eram os políticos, mas os actores, pintores, escritores e músicos que capturavam a imaginação das classes médias e altas. Com o império Habsburgo a desintegrar-se, parecia a Kraus que ali a vida já não imitava a arte. Estava a parodiá-la. Assistimos a tempos destes, e a política (como se viu nas propostas minimalistas e vazias para o sector da generalidade dos partidos políticos na última campanha eleitoral) trata a cultura como um acessório.

A existência da sr.ª Graça Fonseca à frente de um OVNI, o MC, é o fruto da inexistência de uma estratégia cultural do Estado em Portugal. Seja a nível das ideias, seja a nível do dinheiro para que elas se concretizem. Criou-se uma comédia: os políticos ainda gostam de rodear-se de artistas antes das eleições, mas rapidamente os substituem por visitas aos programas de entretenimento. O intelectual deixou de ser um passaporte de credibilidade. E, por isso, a cultura tornou-se um cálice frágil. Basta reler o OE de 2020 para ver que estão afectados a todas as áreas tocadas pelo MC muito menos de 0,5%, para sectores que vão da preservação de património ao cinema, teatro, dança ou literatura. É uma comédia para não rir.

A crise da cultura portuguesa, com as livrarias, os cinemas, as galerias e as salas de espectáculos fechados, é uma tragédia sem nome. O resultado de uma ilusão colectiva. Num mundo em que o economista substituiu o intelectual como referente, este sector sente na pele o quase desprezo pela cultura. Como se fosse um puro objecto comercial que deva ser colocado sob o signo das implacáveis leis de mercado. Sem mais. A cultura e o pensamento assumiram um papel subordinado face aos números e são incapazes de reivindicar o seu valor. Longe vão os tempos em que uma seguradora, a New England Life, usava uma biblioteca como referência num anúncio. Isso perdeu-se. Vamos descobrir rapidamente porquê.»

Fernando Sobral

domingo, 3 de maio de 2020

A pobre Igreja Católica precisa da nossa esmola

por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 02/05/2020)

Alegando que por ter igrejas fechadas não tem "receitas" para pagar salário dos sacerdotes, a Igreja Católica quer ir para lay-off. Não espanta: desde que a conhecemos que esta alegada benemérita se pendura no erário público enquanto esconde os proventos. O ponto é: vai o governo nesta vergonha?


O Tribunal de Contas de Espanha debruçou-se, pela primeira vez, sobre as contas da Igreja Católica espanhola. Fê-lo com base no financiamento efetuado pelo Estado à instituição por via da possibilidade de consignação de 0,7% do IRS devido por cada contribuinte, que anda numa média de 250 milhões anuais, e em relação a 2017.

Uma das primeiras conclusões do relatório preliminar, divulgado em fevereiro na imprensa, é de que a Igreja Católica é pouco transparente na justificação do destino que dá a esse dinheiro - e "os sucessivos governos da democracia não se preocuparam em exigir que acabe com essa opacidade". Outra é de que a Igreja Católica apresentou naquele ano um superavit - ou seja, um lucro - de 15,9 milhões de euros.

Esse superavit foi usado pela Conferência Episcopal Espanhola para financiar uma sociedade comercial, a cadeia Trece (o canal de TV católico), para criar um fundo de reserva. Os juízes lembram, porém, que o compromisso acordado com o Estado espanhol em 1979, na Concordata, é de que este "cooperará com a Igreja Católica na prossecução do seu adequado sustento económico". Os magistrados consideram que sobrar dinheiro à instituição pode constituir uma violação do acordo.

Acresce, dizem, que a Concordata não especifica quais as necessidades da Igreja Católica para cujo adequado sustento deve contribuir o Estado, e que "seria conveniente concretizar a natureza desses gastos", até porque o relatório anual entregue pelos bispos não permite descortiná-la. Aliás, nem sequer tem contas certas: no de 2017, entregue em setembro de 2019, falta justificar 300 mil euros do valor recebido via consignação. Ainda assim, frisam os magistrados, a Igreja Católica dá as contas como "definitivas sem que se explique a origem e a razão da desconformidade", usando termos vagos como "envio para as dioceses para seu sustento" ou "atividades pastorais nacionais". Atividades nas quais, segundo o diário El País, a Igreja Católica incluía até há poucos anos o financiamento do referido canal de TV católico. Em 2013, por exemplo, 80% do valor dedicado às "atividades pastorais" - seis milhões de euros, o mesmo que entregou à Cáritas nesse ano - foram para financiar o canal.

Tudo isto é, para qualquer português minimamente informado, caso para ficar de queixo caído. Não pelas revelações - temos o caso da Cáritas, com milhões no banco enquanto se queixava de falta de dinheiro para ajudar os pobres em plena crise da troika, e de misericórdias investigadas por pagamentos "debaixo da mesa" de milhares de euros para aceitar idosos em lares e "sacos azuis" assumidos como forma de esconder a riqueza do Estado e poder continuar a pedir-lhe dinheiro - mas pelo extraordinário que é um Tribunal de Contas analisar contas da Igreja Católica. O simples facto de haver contas apresentadas é um maravilhamento: ao contrário do que se passa em Espanha desde 1980, a Igreja Católica portuguesa não está obrigada a qualquer relatório de contas. Se o Tribunal de Contas espanhol se queixa de opacidade, que dirão os portugueses?

Poder-se-á alegar que a Igreja Católica portuguesa como tal (há inúmeras organizações católicas que o fazem) não aderiu à possibilidade de consignação do IRS, que em Portugal é de 0,5%. Podendo escolher entre a consignação e a devolução do IVA, preferiu esta última (confiará pouco nos seus fiéis?). Mas num caso ou noutro trata-se de uma benesse estatal, ou seja, um subsídio direto efetuado com o dinheiro de todos os contribuintes (mesmo a consignação, sendo dinheiro devido ao Estado pelo contribuinte, é de todos e não do indivíduo considerado), o que deveria pressupor apresentação de contas.

De resto, a soma de subsídios estatais de que a Igreja Católica beneficia é algo que nunca foi contabilizado. Gozando, para a generalidade do seu património imobiliário, de isenção de IMI, ninguém parece saber a quanto isso corresponde em termos de impostos não cobrados (já pedi essa informação ao Ministério das Finanças e nunca obtive resposta). Só sabemos que quando em 2016 o fisco quis aplicar a letra da lei, cobrando IMI aos imóveis da Igreja Católica não afetos ao culto, os protestos furiosos dos bispos, falando da "forma sôfrega com que se tenta cobrar impostos por tudo e por nada e em todo o lado", levaram a melhor, e ficou tudo na mesma.

Sabemos também que os sacerdotes só começaram a pagar IRS a partir de 2005 - mesmo os que como professores de Religião e Moral ou capelães nos hospitais e nas Forças Armadas eram funcionários públicos não pagavam até aí - e que em termos de Segurança Social tiveram até muito recentemente (2009) um regime específico, no qual o total da TSU era de apenas 12% (4% para o padre e 8% para a Igreja), acrescendo a isso que a média de salário declarado andava, em 2008, nos 366 euros, bastante longe do valor efetivamente auferido, cerca de 800. Uma das justificações de uma taxa tão baixa de TSU e de os sacerdotes escolherem fazer o cálculo sobre um valor tão baixo era o facto de não recorrerem a subsídio de desemprego - por não estar em causa alguma vez um padre ser despedido.

É imperioso recordar tudo isto agora que a Igreja Católica portuguesa anuncia querer recorrer ao instituto do lay-off. Definido no Código do Trabalho e no decreto especial que lhe permite o acesso simplificado em tempo de pandemia, o lay-off é um instituto de socorro do Estado, por via da Segurança Social, a empresas em risco que visa salvaguardar postos de trabalho. Tal está claramente explicitado no decreto-lei 10-G/2020, de 26 de março, que "estabelece uma medida excecional e temporária de proteção dos postos de trabalho, no âmbito da pandemia covid-19 (...) tendo em vista a manutenção dos postos de trabalho e a mitigação de situações de crise empresarial".

Talvez por falta de capacidade minha, não vislumbro como é que a Igreja Católica portuguesa, cujas contas ninguém conhece e faz parte de um conglomerado internacional riquíssimo governado pelo Vaticano, para o qual, como é uso nas multinacionais, remete parte dos seus proventos, pode alegar risco de falência ou de despedimento de sacerdotes. Não podendo invocar nenhuma dessas coisas, que legitimidade tem para pedir à Segurança Social, sem mãos a medir perante a crise que atravessamos, que a ajude?

Mais incrível ainda é conhecer as justificações apresentadas. "A maior parte das receitas chegam dos peditórios e dos ofertórios que a igreja faz nos locais de culto. Com as igrejas fechadas temos dificuldades em fazer face aos vários salários que temos nas nossas instituições", diz um padre da Diocese do Porto à TSF, enquanto no Correio da Manhã fazem-se contas: "Com a anulação de celebrações, festas e romarias e o fecho de igrejas e santuários, a quebra de esmolas e oferendas, entre 15 de março e 15 de maio, deverá ser superior a 55 milhões de euros."

E o melhor, também no Correio da Manhã: "Mais de metade dos católicos que costumam pagar a côngrua (o valor de um dia de trabalho) na altura da Páscoa, este ano, devido ao afastamento da vida da Igreja, acabarão por não o fazer. Só neste particular, o prejuízo será superior a 33 milhões de euros."
Devemos, pois, concluir, pelas informações prestadas, que o "prejuízo" causado à Igreja Católica advém da falta de esmolas - as esmolas, ficamos a saber, que considera "receitas". E que numa situação de crise, ao invés de se disponibilizar para servir, recorrendo às suas reservas, Igreja Católica procura servir-se.

Nada de surpreendente, dir-se-á. Não é de facto. A única coisa que importa mesmo é saber se o governo vai ceder, aceitando financiar de mais esta forma uma organização que se esmera em fugir a todas as contribuições e se furta a qualquer sindicância, tendo ainda por cima a suprema lata de querer apresentar-se como a grande provedora dos pobres.

Jornalista

Doze zeros, fora nada

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 01/05/2020)

O Governo desdobrou-se em três afirmações paradoxais. O ministro das Finanças saiu meteoricamente do seu retiro para prometer 12 zeros no apoio europeu às economias. E o ministro da Economia veio repetir, com o apoio do primeiro-ministro, que “despesas do Estado hoje são impostos amanhã”. Ao mesmo tempo, o Governo tem reafirmado que a austeridade foi um erro que não será repetido. Estas declarações são simplesmente contraditórias. Ou há dinheiro ou não há, e os 12 zeros ainda não deram um ar da sua graça. E, como o Estado está a aumentar a despesa para responder à pandemia, o ministro da Economia parece anunciar um aumento dos impostos para amanhã, a tal austeridade tão indesejável. Portanto, ou se trata de uma contradição, dado que a não-austeridade e a austeridade não podem ocorrer ao mesmo tempo no mesmo país, ou se trataria de um subterfúgio, revelando o que o Governo daria por certo, os “impostos amanhã”. Partindo do princípio de que não se trata de uma matreirice e que o Governo, sabendo o custo da austeridade, queira evitar o caminho da punição da vida social, vale a pena discutir o paradoxo do ministro Siza Vieira.

Seria desconsiderar o ministro, homem cuidadoso na formulação das suas opiniões, se se resumisse esta frase a uma trivialidade, “cá se fazem e cá se pagam”. Ora, a questão deve ser colocada exatamente ao contrário do que sugere o aforismo do ministro: se não houver agora despesa pública é que de certeza teremos mais impostos, como João Ferreira do Amaral explicou. Perante o impacto da covid-19, só o aumento da despesa do Estado (em gastos no serviço de saúde, em apoios a salários ou evitando que empresas vão à falência) é que permite evitar o agravamento da recessão. E, como só a recuperação da economia poderá garantir o aumento da receita fiscal sem aumentar as taxas dos impostos, a chave para a salvação é manter o emprego e reorganizar as cadeias produtivas, ou seja, investir para evitar a queda. Só nos salvamos da austeridade se a economia for relançada. Como não haverá investimento privado de monta, é o investimento público inteligente que nos protege do abuso dos impostos.

Em todo o mundo, o endividamento público gerado pela resposta à doença vai disparar. Os cálculos do FMI são que o défice dos países desenvolvidos será em média de 11% este ano e, assim, a dívida total dos países desenvolvidos aumentará no conjunto em seis biliões de dólares, mais 10%, alcançando 122% do PIB dessas economias. O pior que poderia acontecer seria mesmo que todos os ministros da Economia pensassem e agissem como se todas estas despesas tivessem que ser traduzidas em aumento de impostos.

Nesse caso, teríamos uma espiral depressiva à nossa porta, com medidas aplicadas nos vários países para garantir mais redução do PIB para solucionar uma redução do PIB. O que seria um erro num país transformar-se-ia num vírus generalizado no mundo. Já lhe conhecemos o nome, chama-se austeridade.

Ora, o que se aplica a Portugal aplica-se a todos. Os governos precisam de ajudar a cuidar das vidas. Isso tem um preço (mas o custo de não o fazer era maior), é défice e dívida. Mas, se a taxa de crescimento futuro (mais a inflação, mesmo que pequena) for maior do que a taxa de juro, o peso da dívida vai sendo absorvido e tende a diminuir, se for dívida a longo prazo. Combinadas com medidas de monetarização da dívida, que os EUA e o Reino Unido adotarão, porventura mais do que a zona euro, são as políticas de crescimento que evitam o aumento de impostos.

Se Siza Vieira me permite uma sugestão, diga aos seus colegas europeus que tirem da ideia essa bizarria de fazer pagar em impostos o esforço para salvar vidas e empregos e se esforcem em criar mecanismos de cooperação para absorver o choque e para relançar as economias.


No fim do jogo ganha sempre a Alemanha

Gary Lineker era um bom futebolista, mas decerto não antecipava a covid-19. E, no entanto, teve razão numa constatação que se tornou banal: mesmo quando são onze contra onze, a Alemanha tem a arte e o poder de ganhar o jogo. Com a pandemia, essa regra volta a funcionar.

Ao longo de duas décadas, a economia alemã beneficiou do euro em dois sentidos precisos: usou uma moeda menos valorizada do que o marco seria e captou transferências de valor dos países do sul, através dos desequilíbrios das balanças de uma e outros. A Alemanha foi financiada pelo sul da Europa. Tudo pareceria normal se os dias de hoje não pintassem a realidade com tintas cruéis.

Essa realidade é que, mesmo que não se saiba ainda como vão ser financiados e definidos os planos europeus (os triunfais 12 zeros que foram prometidos), já está em curso o mecanismo que o Governo de Berlim aproveitará para acentuar a sua vantagem, no contexto de endividamento que lhe é favorável. O árbitro deste processo é sofisticado. O jogo começa com a queda económica e, ao mesmo tempo, o disparar dos gastos com a doença e com os sistemas de proteção social, que geram défices elevados. Em consequência, os Estados emitem dívida. Péssima notícia para a Itália, ótima notícia para a Alemanha. A primeira fica obrigada a um juro que cresce (mais de 2%, a dez anos) e a última beneficia de um juro que desce (-0,4%); quanto pior é a crise do endividamento e maiores as incertezas, mais baixo o juro alemão, dado que a sua dívida é considerada um refúgio seguro. Ou seja, a pandemia é uma notícia para festejar: o mundo está a pagar para que o Governo de Berlim financie os seus gastos públicos. Mas ainda vamos na primeira parte do jogo. Como está auto-autorizado a fazer “ajudas de Estado” (que eram proibidas até agora, para obrigar as economias endividadas a privatizarem as grandes empresas públicas), o Governo de Merkel pode usar esse dinheiro que lhe é oferecido para reforçar, reconstituir ou recapitalizar as empresas nacionais que estejam em dificuldades. Ganha a todos, mesmo aos Estados Unidos. A Ford norte-americana, por exemplo, emitiu em abril oito mil milhões de dólares em obrigações com juros entre 8,5% e 9,6%. A dívida norte-americana a dez anos está 1% acima da da Alemanha. Ora, o Governo alemão, financiado a juro negativo, já despejou uma quantia semelhante à da aflição da Ford em três empresas: Adidas, a marca de equipamento desportivo, Tui, um operador turístico, e Lufthansa, a companhia aérea. O jogo ainda não acabou, mas está por ora a confirmar o prognóstico de Lineker.


Cuidado com a calamidade

O estado de emergência tem um enquadramento constitucional explícito e controlável. O Parlamento autoriza e o Presidente decreta os seus termos concretos, articulado com o Governo, com prazos limitados. Só nesse contexto são condicionáveis alguns direitos constitucionais, como o da liberdade de circulação e de reunião, ou atividades económicas e sociais. Os decretos incluíam ainda provocações ideológicas, como a suspensão do direito de greve na saúde e noutros serviços, ao mesmo tempo que reforçavam o poder de controlo de preços ou de mobilização de empresas privadas. Este último deveria ter sido um instrumento de grande intensidade na organização de recursos, ficará por saber porque foram requisitados hotéis mas não o hospital dos SMAS ou porque foi definido um preço máximo para o gás doméstico mas não para as máscaras. Em todo o caso, a norma da emergência constitucional estava regulada.

Em contrapartida, com o estado de calamidade, que alguns sempre defenderam como uma alternativa virtuosa, entramos no domínio da penumbra constitucional. É, por isso, preocupante ouvir o Governo defender que pode fazer o mesmo, desta vez com decisões administrativas do Conselho de Ministros, sem tutela parlamentar e por prazo indefinido. Não pode. Isso seria concentrar um poder de exceção sem controlos de exceção. O facto é que a calamidade só se aplicou até hoje por necessidades locais (incêndios) e, a ser estendida no território, teria que ter contornos legais claros e tempo limitado. O Governo deve disso prestar contas e não é concebível que use esta regra como a nova forma de gestão, sendo que a única justificação invocada é a pedagogia da adaptação a um desconfinamento cuidadoso. Maio não pode ser o mês do nevoeiro constitucional.

A sociedade zombie

Posted: 02 May 2020 03:48 AM PDT

«Toda a gente gosta de dar o seu contributo para a crise, de preferência ganhando algum com isso. Toda a gente tem uma ideia, uma ideia salvífica ou uma ideia catástrofe. A ideia mais útil neste momento, em que mal entrámos na crise — e a palavra crise foi tão gasta que está desvalorizada e pode ser aplicada a tudo, desde a crise existencial à crise sistémica —, é a de que da próxima vez será pior. Os especialistas do cataclismo avisam que isto não é nada, um nadinha, e que a próxima pandemia, outra palavra a perder valor na bolsa lexical, será pior, muito pior. Virá da China, como todas as pandemias, será mais mortal e mais devastadora do que esta, matará mais e será o resultado não do morcego e do pangolim ou de outros animais exóticos que se queiram juntar ao âmago do problema mas sim do modo como tratamos a Natureza. A Natureza seria, portanto, uma entidade orgânica unívoca, com um comportamento semelhante ao humano e que pratica e conhece os estados da vingança e da retribuição. A Natureza parece-se muito com uma mulher lívida de raiva, nesta leitura dominante.

Na próxima pandemia, teremos variações extremas da febre hemorrágica, assim entre o ébola e o Marburg, e os coronas descem de posto. Do lado desta extensa família de vírus, mais antiga do que a família humana e muito mais numerosa, a despromoção poderá não ser bem recebida, pelo que não é de excluir que se vinguem e que tenhamos em cima de uma pandemia pior do que esta outra pandemia mais ou menos parecida com esta. Estas distopias não servem para ganhar dinheiro, a não ser transformadas em livros ou em filmes catástrofes, e, como de filmes estamos parados, os livros são uma boa ideia. Devido à crise do livro, tais teorias esdrúxulas são oferecidas gratuitamente nas redes e distribuídas por todos os espíritos crédulos, que em vez de resolverem o problema que têm gostam de conhecer os problemas que não têm.

Nos especialistas do apocalipse contam-se vários cientistas, um grupo social muito sobrevalorizado, onde florescem os cientistas malucos. A caricatura do cientista maluco deslizou por vários filmes e livros de paupérrima ficção e atingiu o seu esplendor nos vilões do James Bond. É uma figura da banda desenhada, agora recuperada para a virologia e a futurologia. De todas as teorias malucas, a mais fácil e logo adquirida pelos ecologistas malucos é a de que a espécie humana é um vírus do planeta e que o planeta, ou a Terra, a tal Terra vingativa e feminina, está a eliminá-lo com doses maciças de viroses, lixívia do Trump e remédios para a malária. Para estes, a Terra sem humanos é um paraíso. Creio que ninguém perguntou aos dinossauros a opinião, um contributo bem-vindo, se os pudéssemos ressuscitar. Coisa que os chineses, com as suas pesquisas laboratoriais avançadas e seguríssimas e as suas clonagens de humanos, decerto poderão fazer no futuro, como espécie dominante.

Convém avisar que o melhor livro sobre pandemias assustadoras acaba de ser publicado e é de Lawrence Wright, o autor do melhor livro sobre o 11 de Setembro e a Al-Qaeda do Osama, “A Torre do Desassossego”. Wright tem a particularidade de escrever livros sobre catástrofes pendentes e que são publicados quando as catástrofes deixam de ser pendentes. Escrevendo habitualmente para a “New Yorker”, Wright é uma voz com autoridade sobre factos e a prudência de os colocar antes dos argumentos. O que quer dizer que é um ótimo jornalista de investigação. Este “The End of October”, saído nos Estados Unidos, traz-nos mais uma febre hemorrágica, Wright estava a pensar no ébola e não no corona. Tendo investigado os vírus de fio a pavio, incluindo os SARS, de que a covid faz parte, conclui para nosso desassossego que os vírus vieram para ficar e que existem mais vírus do que estrelas nas galáxias. São muitos, só os morcegos albergam milhões, mais do que os nossos sete biliões. O que espanta não é que tenhamos uma pandemia, é como é que não tivemos uma pandemia por mês. Mistérios da Natureza.

Falando de coisas mais práticas, uma ideia que faz caminho é a da sociedade em plexiglass. Parece que a grande solução para o desconfinamento seria a introdução do plexiglass nas nossas vidas. Quem investir em plexiglass fica rico, esqueçam as apps e as startups. Esta é a manufatura futura. Comecemos pelos restaurantes. Toda a gente sabe que a alegria do restaurante, aquilo a que chamamos o ambiente, é uma das suas qualidades. A comida pode ser boa, mas um restaurante vazio e silencioso, onde os criados espiam o menor gesto e ouvem as conversas, é de evitar. Mesmo um Michelin estrelado. Vai-se ao restaurante para conversar, comer, conversar mais, beber. A chamada convivialidade, uma das palavras mais recentes e mais usadas, uma das palavras mais horríveis, é a base da ida ao restaurante. Imagine que para ir ao restaurante tem de usar luvas, máscara e botas de plástico, tem de ser testado com um termómetro, tem de ser borrifado com desinfetante e untado com gel, tem de ficar a milhas das outras mesas, tem de encomendar por linguagem gestual, usando menos perdigotos infecciosos, visto que o criado está a dois metros da mesa, e tem — aqui entra a ideia luminosa — de ficar separado dos outros comensais, incluindo os seus, por um plexiglass.

É verdade, um separador de plexiglass proteger-nos-á do corona e fará com que possamos jantar e almoçar à vontade, do nosso lado do acrílico, autorizando-nos a falar com a boca cheia. Claro que a ideia da sobremesa partilhada fica posta de parte, e sabe Deus como esta ideia vingou desde o assassínio do açúcar, e a ideia de uma ‘vaquinha’, um prato a meias, também. Para os casais felizes que apenas puxam do telemóvel e não dizem uma palavra durante a refeição, enquanto falam com os amigos no Facebook e fotografam a comida para o Instagram, a introdução do plexiglass não prejudicará. Para todos os outros, as pessoas normais, olhem, habituem-se. Deixarão também de ir ao restaurante, e de andar de avião, onde o plexiglass separará os assentos, as crianças e os velhos. As crianças porque são assintomáticas, sobrevivem e são perigosas para os adultos. E os velhos porque são doentes facilmente infetados e são um perigo para toda a gente, além de serem uma custosa maçada. Os velhos ficam confinados, e as crianças, que lidam mal com o plexiglass, logo se vê. Pode ser que inventem o restaurante com creche acoplada. Ora, o preço do bitoque e do arroz de marisco, do flan e da mousse caseira, não vai ser o mesmo. Vai custar mais do que andar de avião, para compensar os custos da proteção. Os hospitais privados já começaram a tributar-nos a dita.

Não podemos pôr de lado estas duas boas ideias, a da pandemia pior e a do plexiglass, porque na sociedade zombie onde vamos viver é assim que vai ficar tudo bem.»

Clara Ferreira Alves

Do lado das soluções e não dos problemas!

por estatuadesal

(Joaquim Vassalo Abreu, 30/04/2020)

Eu não me lembro de enxovalho assim desde aquele célebre dia em que João Galamba cilindrou Vitor Gaspar em pleno Parlamento, aquando daquela sua peregrina ideia de baixar a TSU às empresas ao mesmo tempo que a subia na mesma proporção aos trabalhadores.

Lembro-me do seu ar atónito e acabrunhado, assim como quem pensa para si mesmo “meti mesmo o pé na poça”. Desta vez, há dias e numa audição no Parlamento, assistimos a uma postura diferente do atingido: uma postura também ela de incredulidade mas jactante, tão jactante quanto a sua figura e ignorância.

Era acerca do futuro da TAP e o deputado do CDS, fazendo a figura de verdadeiro cão de fila, quando o Ministro Pedro Nuno Santos o informava que o Estado estava a avaliar todas as soluções, decretou: Mas nacionalização não aceitamos!

A sua solução (a dos Privados que com 45% do capital “governam” a TAP) era a da obtenção por estes de um empréstimo de 350 milhões de Euros mas…com o Aval do Estado! Era “Governance” dizia ele…

“Governance” deve ter sido a única coisa que deverá ter aprendido pois todos nós sabemos, sejamos formados em Economia ou não, que quando uma empresa precisa de capital e os acionistas querem manter a sua posição societária têm que acorrer ao aumento de capital na devida proporção.

Mas o “inteligente”, defendendo os seus donos, queria que fosse o acionista Estado, que possui 50% do capital, mas sem “governance”, a garantir o empréstimo dos acionistas privados, que têm 45%, e tudo ficasse na mesma. Mas, na verdade, a isso foram sempre habituados…

Quando confrontado com a verdade quase “Lapaliciana” de que um Aval do Estado a gestores que já antes da crise do Covid 19 e em anos de alta apresentavam progressivos prejuízos, era um Aval do Povo Português, que fatalmente o teria que pagar…abanou os ombros e, naquele seu ar de boneco “Felliniano”, só disse, “ Governance”…

Depois PEDRO NUNO SANTOS deu-lhe uma autêntica aula de GOVERNO, mas ele não deve ter entendido nada: o sacar dinheiro ao Povo é a sua “Governance”, aquilo que lhes ensinaram e a única coisa que aprenderam…

Fantástico é ouvir depois comentadores e comentadores recriminarem Pedro Nuno Santos, o Ministro da pasta, e defenderem a gestão dos privados, como se a crise da TAP e da sua gestão tivessem começado agora com a crise da Pandemia. E mais, respaldando-se das palavras de Costa na entrevista à RTP que, não estando numa audição no Parlamento respondendo a perguntas concretas, estando em causa diversas variáveis e soluções, foi mais comedido e evasivo.

Logo concluíram essas aves de rapina todas, sedentas de alguma pequena fuga, incoerência ou desacerto, ter Costa dado uma autêntica “sapatada” no seu Ministro porque, dizem eles, será um putativo seu sucessor, e Costa isso não perdoaria!

À falta de melhor, porque Costa e o seu (nosso) Governo não lhes têm dado motivos, agarram-se a uma palhinha querendo logo fazer dela um palheiro! Mas sempre naquele confuso estado de alma que os apoquenta: Não podendo dizer que Costa tem estado mal e antes pelo contrário até são obrigados a dizer que esteve bem, têm que acrescentar um “mas”, sempre um “mas”…

Mas se eu hipoteticamente fosse por um desses perguntado ( e isto é apenas retórica), questionado ou pressionado, coisa que eu bem percebo da actividade jornalística, sobre algo que todos sabemos ser incerto e desconhecido, insinuando entre palavras dúvidas sobre as atitudes tomadas com destemor e coragem percebendo bem o pulsar da sociedade pelo Governo, também eu seria um pouquinho agreste e desmedido e responderia: E você, o que faria?

É claro que sendo isto apenas retórica, reflete apenas uma certa impaciência perante perguntas e mais perguntas completamente desajustadas como: “Acha que vamos poder ir para a praia no Verão”? Acha que vamos ter Festivais no Verão?”.É claro que a única resposta possível seria na mesma linha: E o Senhor, que acha?

Pelo que, sabendo qualquer pessoa a situação em que estamos e muito mais os Jornalistas, sabendo todos que ainda nada sabemos e nem sequer os cientistas, porque é que essa gente não se consegue imaginar na posição de quem tem de tomar decisões, sem qualquer informação ou intuição que não recurso ao bom senso, continua a pavonear a sua imbecilidade fazendo essas perguntas, sem qualquer achega que seja a um sentimento positivo?

Vi e ouvi há dias um Empresário Português, um daqueles que rápidamente conseguiu fintar a crise e falta de encomendas e mudar o objecto de produção da sua Empresa, dizer a frase basilar e que é aquela que nos distingue e levou a própria OCDE a afirmar estarmos em primeiro lugar no ranking dos Países que mais projectos inovadores lançaram nesta crise:

Nós estamos do lado das soluções e não dos problemas!