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terça-feira, 26 de maio de 2020

Uma vaga de palavras vagas

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João Cândido da Silva

João Cândido da Silva

Coordenador do Expresso Online

26 MAIO 2020

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Bom dia,
Uma taxa de crescimento dos novos casos de infecção de 0,5% e um aumento de 1% no número de vítimas mortais, com uma subida para 4,32% da relação entre os portadores do novo coronavírus que desencadeia a covid-19 e os óbitos. Estes são, em resumo, os dados mais recentes da direcção-geral da Saúde sobre a evolução da pandemia em Portugal, onde os doentes que recuperaram totalizam, agora, perto de 18 mil. Aparentemente, o surto permanece sob controlo em território português e o facto de esta segunda-feira apenas se terem identificado novas situações de infeção nas regiões do Norte e de Lisboa e Vale do Tejo dá um sinal de que a progressiva reabertura da economia e o regresso da sociedade à nova normalidade comportam riscos que podem ser controlados. Mas será assim tão fácil?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) está a transmitir perspectivas difíceis de compatibilizar. Em causa está a possibilidade de eclosão de uma segunda vaga, com um novo pico que forçaria a novas restricções. Uma dose de bom senso, ainda que esquálida, permite constatar que o vírus não desapareceu, tem uma forte capacidade de propagação, não existe vacina e não se conhecem fármacos plenamente eficazes, realidades que aconselham prudência e cumprimento das regras de distanciamento e de protecção. Neste cenário, uma segunda vaga não pode ser um mero tema de especulação e debate fútil entre peritos que apreciem discordar.
Michael Ryan, que tem a responsabilidade de liderar o programa de Emergências Sanitárias da OMS, foi claro durante a conferência de imprensa que deu nesta segunda-feira. É preciso "estar ciente de que a doença pode disparar a qualquer altura", afirmou Ryan: "não podemos supor [que os números de novas infecções] vão continuar a descer e que teremos alguns meses para nos preparar para uma segunda vaga. Pode acontecer um segundo pico, como aconteceu noutras pandemias, como na da gripe pneumónica".
Maria Van Kerkhove, principal responsável técnica da OMS no combate à covid-19, alertou que os estudos de seroprevalência já efetuados são poucos. "Se encontrar uma oportunidade, este vírus provocará surtos. Uma característica única deste coronavírus é a capacidade de se amplificar em certos ambientes fechados, com uma super-propagação, como temos visto em lares de idosos ou hospitais", acrescentou. Até aqui, parecia reinar o consenso no interior da organização, mas María Neira desfez as ilusões.
Durante uma entrevista à rádio catalã RAC1, a diretora do Departamento de Saúde Pública da OMS afirmou ser "cada vez mais" improvável a ocorrência de uma segunda grande vaga, embora tenha recomendado muita prudência. E adiantou que os modelos de previsão com que a organização trabalha "avançam muitas possibilidades, desde novos surtos pontuais a uma nova vaga importante, mas esta última possibilidade é cada vez mais de descartar". Com estas palavras de natureza potencialmente tranquilizadora, María Neira acabou por deixar as coisas um pouco confusas. E preocupantes.
Para representantes dos médicos, enfermeiros e psicólogos portugueses, as mensagens divergentes transmitidas por altos responsáveis da OMS não trazem nada de positivo. Exigem uma comunicação feita com clareza, sublinham que é necessário evitar a "ansiedade" e o "afrouxamento" resultantes da "incerteza" e avisam para os perigos do "futurismo". “É arriscado falar-se à volta de probabilidades sem que exista já um grau de certeza minimamente consensualizado. Quando se está a comunicar à frente de um organismo destes [OMS], aquilo que se diz tem um elevadíssimo impacto nas pessoas e no que elas sentem”, afirma Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos.
A segunda vaga de covid-19 é uma possibilidade, mas as palavras vagas que chegam da OMS são uma certeza. Em qualquer dos casos, não são coisas que se desejem.

Saiam da bolha

posted: 25 May 2020 02:36 AM PDT

«Há cerca de dois meses o país tinha acabado de entrar em confinamento e todos nos lembramos de ouvir discursos a romantizar a pandemia e as possibilidades de aprendizagem que ela nos traria.

Era o tempo em família, a redução da nossa gigantesca pegada ambiental, o travão num modelo económico assente em consumo e lucro imediato, o nascimento de iniciativas de solidariedade capazes de vencer a solidão.

À distância, percebemos que as afirmações de que nada seria como dantes terão sido manifestamente exageradas e é bastante provável que, à semelhança do que nos mostrou a história em crises anteriores, nos esqueçamos rapidamente das lições que era suposto o universo revelar-nos em forma de minúsculo vírus. Só mesmo alguém com a gigantesca fé do Papa Francisco acreditará que este declarado "ano especial" sirva para refletir sobre sustentabilidade e meio ambiente, numa louvável iniciativa que coloca a Igreja no meio do Mundo e dos seus mais pobres.

Quase um mês depois de se iniciar o desconfinamento, no geral há dois extremos comportamentais - simplificando, claro, porque a realidade nunca se descreve em meia dúzia de palavras. Há quem continue sem contactos sociais, evitando a todo o custo lojas, praias e parques. E quem se exponha a transportes públicos, às ruas, a locais de trabalho cheios de gente.

Os indicadores já recolhidos em sucessivos estudos mostram que o isolamento é um privilégio não acessível a todos, que aumenta à medida que sobe a escolaridade e o rendimento. A pandemia acentuou desigualdades e os níveis de desemprego e pobreza vão continuar a aumentar quando se clarificar a situação de empresas hoje em lay-off que poderão a médio prazo não ser viáveis.

E quando começarem a apertar os compromissos adiados com moratórias em créditos e outros benefícios a prazo. O isolamento é uma opção legítima, mas não pode ser sinónimo de alheamento. A nova normalidade não é só a ausência de beijos e abraços. A nova normalidade é um país com mais gente desprotegida e a passar dificuldades. E esta é uma lição à qual ninguém pode fechar os olhos.»

Inês Cardoso

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uma espiral de silêncio

Posted: 24 May 2020 03:10 AM PDT

«É comum dizer-se que os economistas apenas estudam Economia e nada sabem de História, Antropologia, etc. Ainda assim, têm opiniões convictas sobre tudo. Desde alterações climáticas a modelos epidemiológicos. Como economista, encarno esses defeitos. Há uma vantagem: somos frequentemente convidados para tratar de assuntos que não são da nossa área e, à custa disso, aprendemos coisas. Talvez por isso, fui há uns anos convidado para arguir uma tese de doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior.

O autor, José Carlos Alexandre, do Instituto Politécnico da Guarda, escreveu sobre a teoria da espiral de silêncio, de Elisabeth Noelle-Neumann, uma cientista política alemã. A tese central é simples: quem se sente em minoria tem tendência a manter-se em silêncio, deixando o espaço público entregue à opinião maioritária (reforçando a ideia de que se está mesmo em minoria, o que alimenta o silêncio, etc.). Que circunstâncias proporcionam essa espiral? Para Noelle-Neumann, o medo do isolamento é a força que a põe em marcha. O medo do isolamento é maior do que o de estar errado e é alimentado pela forma como a sociedade trata os que desafiam o consenso. Conjugado com a ameaça do isolamento e a perceção de que se está em minoria, o medo do isolamento leva ao silêncio.

Com a covid-19, criaram-se as condições para uma espiral de silêncio. Não só o assunto tem uma forte carga moral, o que leva a que, em vez de se discutir o que está certo ou errado, se discuta o bem e o mal, como a comunicação social se mostrou mais empenhada em dar conselhos do que notícias. Quantas vezes nos explicaram que éramos agentes de saúde pública e que tínhamos de proteger os outros, em especial os velhinhos? Que dizer das homilias de Rodrigo Guedes de Carvalho nos telejornais da SIC ou das “reportagens” sobre a Suécia que tantas vezes nos informaram de (inexistentes) volte-faces?

Quando Jorge Torgal, especialista em saúde pública, defendeu que as escolas permanecessem abertas e comparou a covid a uma gripe mais violenta, foi linchado no altar das redes sociais e da opinião publicada. Uma das premissas de Noelle-Neumann, a ameaça do isolamento, funcionou em pleno.

Jorge Torgal terá sido o primeiro, mas não foi o único. Fosse nas redes sociais, fosse nos jornais ou televisões, quem emitisse uma opinião ligeiramente ao lado era imediatamente vilipendiado; quem apontasse para a Suécia era imediatamente colado a Bolsonaro; quem lembrasse a destruição da economia era acusado de ser materialista e não querer saber das pessoas e das mortes. Havia quem fosse para a rua tirar fotografias às pessoas que estavam na rua para as denunciar nas redes sociais.

Eu, que, com a exceção de manter as escolas fechadas até setembro, concordei com as principais opções do Governo, senti falta das minorias. Ainda por cima, a teoria dominante estava cheia de pontas soltas. Como é que em abril ainda se falava num pico para maio quando todos os dados indicavam que o mesmo já tinha ocorrido na última semana de março? A ausência de opiniões minoritárias empobrece-nos. Sem ser desafiada, não há nenhuma garantia de que a opinião dominante seja a que tem melhores argumentos. Passa a ser uma mera materialização da tirania da maioria de Tocqueville.

Essa diversidade existe em economia. É fácil encontrar nas colunas de opinião economistas keynesianos, marxistas ou hayekianos. Entre os economistas, a diversidade é tanta que é fácil encontrar alguns que nada sabem de economia. No entanto, num assunto tão novo e sobre o qual se sabe tão pouco como a covid, era raro haver opiniões dissonantes. No mundo dos opinion makers regulares, a principal exceção terá sido José Miguel Júdice, que, obviamente, não tem nenhuma espécie de autoridade académica para opinar sobre o vírus. Já o credenciado Pedro Simas, em diversas entrevistas foi-nos suavemente sugerindo que o confinamento geral talvez não fosse a melhor forma de combater o vírus.

Na minha bolha das redes sociais, as principais vozes dissonantes foram as de Henrique Pereira dos Santos (arquiteto paisagista), Paulo Fernandes (especialista em fogos florestais), André Azevedo Alves (cientista político), Rodrigo Adão Fonseca (especialista em ciber-risco), Pedro Santa Clara (economista) e André Dias. Este tem credenciais académicas na área e, talvez por isso, foi quase acusado de ser um psicopata. Foi desafiado a escrever nos jornais e, compreensivelmente, recusou, explicando que não estava para ser linchado. O meu artigo no Expresso online de 6 de abril era uma contestação às teorias de André Dias. Não o nomeei, porque ele evitava a exposição nos jornais. Entretanto já escreveu um artigo no jornal online “ECO”.

A todas as vozes dissonantes, quer as que referi quer outras, tiro o meu chapéu. Graças a elas, a espiral de silêncio que nos envolveu não foi ainda maior.»

Luís Aguiar-Conraria

Quem foi que disse que nada será como dantes?

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/05/2020)

1 Eu fui um deles: eu fui um dos que tive uma esperança, ainda que ténue, de que tivéssemos aprendido alguma coisa com esta lição. Mas ainda nem vemos o fim do pesadelo nem alcançámos todas as suas consequências e já se percebeu que quem manda nisto — no mundo, no planeta, neste “capitalismo que mata”, como disse o Papa Francisco — pretende fazer tudo igual, mas ainda mais depressa e pior, se possível.

As Bolsas animam-se com a retoma económica na China, puxada a todo o gás pelas centrais a carvão; a Amazónia, escondida temporariamente dos satélites pelas nuvens e pela pandemia à solta em terras do Brasil, aumentou em 171% a área desflorestada em Abril, em comparação com igual mês de 2019 (529 km2 a menos de floresta tropical); e na Europa, sob pressão das companhias aéreas, Bruxelas abandonou qualquer veleidade de limitar a lotação dos aviões, um dos mais intensos poluidores atmosféricos e um dos mais eficazes focos de propagação do vírus.

Entre nós, muito se escreveu e falou sobre um regresso ao campo e à pequena agricultura familiar e biológica, cujos benefícios e atractividade o confinamento forçado tinha permitido redescobrir, e também se escutaram juras de revisão do modelo de turismo assente nas multidões e na destruição de habitats naturais: quase me vieram lágrimas aos olhos com esses textos lindos, comoventes, inesperados. Pois, aí está: a agricultura que é apoiada, financiada por dinheiros europeus e aquela por onde vagueiam exércitos de trabalhadores asiáticos semiescravos é a agricultura superintensiva, predadora da terra e esbanjadora de água.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

O olival já transbordou do Alqueva e pode ver-se em faixas da A2, a caminho do Algarve, ou na Barragem do Maranhão, onde antes se nadava e fazia remo e que agora está coberta de uma espuma Oliveira da Serra, vinda dos fertilizantes que era suposto serem biodegradáveis. Mas ao Alqueva também já chegou o amendoal intensivo, que, depois de ter secado as terras da Califórnia, procura países do Terceiro Mundo que não defendam a sua água e ainda subsidiem os seus predadores — e não há muitos. Na Costa Vicentina, temos as estufas dos frutos vermelhos intensivos, onde só o dito Parque Natural é nosso, tudo o resto é estrangeiro: os donos, os trabalhadores, os frutos. No Algarve, enfim, ao abacate, esse fruto que entrou na moda via ceviche e que é tão português e tão amigo da pouca água que lá há, veio agora juntar-se apressadamente, no Sotavento e por via covid, a cultura intensiva dos laranjais: a montante da A22, terraplena-se a toda a força, planta-se aos milhares e abrem-se furos como se ali debaixo corressem rios, entretanto secando a jusante as pequenas hortas e culturas dos agricultores locais. E, mais para baixo e para poente, a Lone Star (sim, a do Novo Banco) prepara-se para começar aquilo a que o dirigente da Almargem Luís Brás chamou, adequadamente, “um projecto do século passado, desajustado ao presente e ignorando o futuro”: trata-se (eu adoro esta linguagem dos arquitectos a soldo dos patos-bravos) de “uma peça arquitectónica integrada num parque ambiental que inclui mais de 6o hectares de zonas húmidas”. Trocando por miúdos ou por milhões: trata-se de construir uma “cidade lacustre”, no pesadelo que já é Vilamoura, acrescentando-lhe mais 2400 camas e para tal desviando a ribeira de Quarteira e criando um ninho de criação de mosquitos numa zona onde recentemente foram detectados focos de doenças causadas pelos mosquitos e que estavam há muito desactivadas. Em tempos de pandemia, com tanto que se tem dito e escrito sobre os vírus causados pela agressões à biodiversidade dos ecossistemas, é caso para dizer que não podia haver projecto mais actual e mais integrado no ar do tempo!

Tudo isto suponho que seja apoiado pelo Turismo, sei que é financiado e acarinhado pela Agricultura e, como habitualmente, passa tudo ao lado daquele senhor que tem como alcunha ministro do Ambiente. Como é que nada poderá não ser como dantes?

2 Procurem no Google a Villa de São Paulo, no Estoril. Trata-se de um palacete em óptimo estado de conservação, que aparece descrito como o melhor espaço de Portugal para um estrangeiro se vir casar. Tem três andares, servidos por elevador interno, 14 quartos, diversas cozinhas, salas e salões e um enorme terraço com piscina em cima do mar e com acesso directo à praia, ali em baixo. Não vale menos de 10 milhões de euros, a preço de ocasião. Mas o Novo Banco vendeu-o por 3 milhões, integrado num pacote que envolvia também um terreno em Alverca, um prédio no Chiado e uma quinta em Sintra — tudo representado por um crédito de 17,4 milhões, mas que o banco vendeu por 5,7 (um desconto de 67%) ao “Rei dos Frangos”, o maior accionista privado do Benfica, de cujo presidente é sócio e amigo (e o qual, por sua vez e através das suas empresas, é dos maiores devedores do NB). São créditos destes (quantos — dezenas, centenas?) que o NB não “consegue” cobrar e que se vê “obrigado” a vender com descontos de 70%, que depois regista como imparidades e de que apresenta a factura para pagamento aos contribuintes. Mas isto é só a superfície do negócio. Quem sabe, escavando mais fundo, se não se descobre ainda petróleo debaixo disto tudo? Como no Texas, de onde eles vieram.

3 Há quem, interna e externamente, não suporte o Presidente francês, mas Emmanuel Macron tem provado ser o mais euro­peísta e menos chauvinista Presidente francês desde há muito tempo — além do facto, apenas interno, de ter quase toda a razão no conflito contra os “coletes amarelos”, defensores de privilégios geracionais insustentáveis. Macron teve a perseverança necessária para convencer Angela Merkel a dar o passo decisivo e, enfim, sem as dizer, a pronunciar as palavras mágicas: dívida europeia mutualizada. E de quem mais pode para quem mais precisa, tal como ensinou Marx. Fazendo-o através do Orçamento da União, ela contorna internamente a questão jurídica levantada pelo Tribunal Constitucional Alemão junto do BCE — e a que este faria bem em nem sequer responder. Nada pode ainda ser dado como adquirido, mas o peso da Alemanha deve ser suficiente para forçar a mão aos renitentes austríacos, suecos e dinamarqueses. Isso deixaria a Holanda isolada contra 26 e com a agravante de já gozar da má fama de ser o vazadouro fiscal onde as empresas dos outros pagam impostos que eram devidos nos países de origem.

4 A questão da atribuição da nacio­nalidade aos judeus sefarditas expulsos daqui no reinado de D. Manuel e a mando dos seus sogros, os Reis Católicos espanhóis, Fernando e Isabel, é muito mais interessante do que comecei por supor — embora, aparentemente, não venha a mobilizar mais do que alguns escassos milhares de pedidos. Ou talvez não, se, com a alteração proposta na lei, não for necessário qualquer período de residência antes de se pedir a nacionalidade portuguesa.

O meu interesse começa na curiosidade de saber como é que se fará prova de uma descendência que remonta há mais de 500 anos e quem é que irá apreciar tais provas. Depois, há uma questão de timing diplomático: o momento em que Portugal se prepara para reconhecer a nacionalidade aos judeus que daqui expulsou há cinco séculos é o momento em que Israel se prepara para anexar a Cisjordânia aos palestinianos, assim consumando um longo processo, iniciado com o regresso à Terra Prometida, politicamente sustentado também na expulsão de que se reclamavam vítimas há dois mil anos. E, uma vez regressados, foi o que se sabe: guerra após guerra, colonato a colonato, Israel foi roubando a Palestina aos palestinianos, estando agora na iminência de abocanhar o último pedaço que lhe interessa. Felizmente, dessa ameaça estamos livres, mas, se há alguma moral nestas coisas da geopolítica, cabe lembrar isto aos futuros novos portugueses.

Mas o que me chamou a atenção para a questão foi o excelente texto do Henrique Monteiro no Expresso online (“O antissemitismo à solta”). Tem ele toda a razão quando enaltece o povo judeu, os seus 120 prémios Nobel, os seus extraordinários músicos (e escritores e etc.). Tem ainda toda a razão quando afirma, na esteira de vários historiadores, que a expulsão dos judeus, além de um acto de perseguição religiosa, hoje intolerável, foi um acto altamente prejudicial para Portugal, em vários aspectos. Aliás, os judeus daqui expulsos não tiveram muita sorte, pois voltaram a cruzar-se connosco no Brasil, para onde foram na expedição holandesa celebrizada por Maurício de Nassau, com o objectivo de nos roubar o comércio do açúcar, e de onde acabaram todos expulsos, 40 anos depois, por uma decisiva aliança de portugueses, espanhóis, índios e negros. E, de terra em terra, de exílio em exílio, como é sua sina, acabaram eles, saídos 150 anos antes de Portugal, por ir fundar mais a norte a cidade de New Amsterdam, a que hoje chamamos Nova Iorque.

Porém, onde a argumentação a favor da sua nacionalidade me parece insuficiente é quando ela tem como único título de legitimação o facto de terem sido expulsos daqui há mais de 500 anos. De acordo com esse princípio, raros devem ser os povos que não teriam também o poder de baralhar as leis de nacionalidade estabelecidas por esse mundo fora. A começar logo aqui: muito anos antes de expulsarmos os judeus já tínhamos expulsado os mouros, que aqui haviam chegado 600 anos antes de Portugal existir, quando Tarik atravessou o estreito. Os mesmos Reis Católicos expulsaram-nos definitivamente de Espanha em 1492 e nós quase dois séculos e meio antes, quando D. Afonso III conquistou o Algarve e estabeleceu as fronteiras definitivas de Portugal. O que diría­mos agora se, invocando o mesmo princípio que os judeus sefarditas, os mauritânios (presumo que a população inteira...) nos batessem à porta a pedir a nacionalidade?

Eu sou a favor de um país diverso e misturado. Mas não de uma identidade nacional completamente descaracterizada, ao sabor de vistos gold ou direitos de antiguidade tão antigos que já perderam há muito qualquer relação com o país que hoje somos. Por isso, acho que aos clássicos jus soli e jus sanguini, como fundamentos da nacionalidade, se deve acrescentar a aquisição por efeito de residência — efectiva, actual e continuada durante um certo período —, a qual, a par do conhecimento da língua, garante a tal relação entre um cidadão e o seu país. Mas não mais do que essas vias.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Costa e Marcelo, duas raposas (com picos de ouriço)

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Vítor Matos

Vítor Matos

Editor de política

25 MAIO 2020

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Bom dia!
Líderes há muitos, estilos também, mas podemos dividi-los em dois grandes grupos: as raposas e os ouriços. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa teriam entrado em choque se não fossem duas (velhas) raposas que aceitam jogar o mesmo jogo. A comparação ficou famosa quando Isaiah Berlin escreveu o ensaio “O Ouriço e a Raposa”, a partir de uma frase do poeta grego Arquílico de Paros: “A raposa sabe muitas coisas, mas o porco espinho sabe uma coisa grande”. Simplificando: o ouriço é mais inflexível, focado num objetivo, e a raposa tem mil ardis, adapta-se e por vezes hesita e volta atrás.
Uma destas raposas começou esta manhã um jogo novo. À hora em que ler este texto, António Costa está a começar as reuniões com os partidos para encontrar terreno comum para o orçamento suplementar - o tema político que marcará esta semana. É o político ardiloso em ação. O consenso correu bem durante o estado de exceção, agora Costa quer prolongá-lo na resposta à crise: ouvir a oposição e amanhã os parceiros sociais, admitir algumas propostas, garantir que passa sem drama. O Governo vai lançar agora um Plano de Estabilização Económico e Social, que mais não será do que um penso rápido, com um horizonte de atuação até ao final do ano - como escreveram a Liliana Valente e a Rosa Pedroso Lima no Expresso este sábado -, enquanto não chega o dinheiro da União Europeia, para uma resposta mais musculada de verdadeira emergência.
Encontrei a ‘fábula’ de Berlin recuperada por John Lewis Gaddis no livro “A Grande Estratégia” que a temperou com uma frase de Scott Fitzgerald para mostrar que os líderes são todos um misto de raposa e ouriço: uma inteligência de primeira ordem tem a “capacidade de manter ao mesmo tempo na cabeça duas ideias opostas e mesmo assim conservar a capacidade de funcionar”. Ou seja, numa realidade a preto e branco, Costa seria uma raposa e Passos Coelho um ouriço, por exemplo, mas a verdade é que o primeiro-ministro é uma raposa com forte ascendente em ouriço. E em Marcelo Rebelo de Sousa, apesar de o totem da raposa ter grande preponderância, também lá estão uns picos de ouriço.
Primeiro Costa. Só uma raposa poderia ter montado a ‘geringonça’ com um objetivo fixo (a parte do ouriço) de chegar ao superávite, ou seja: ter na cabeça o fim de ir além das exigências de Bruxelas, mas fazê-lo com o apoio da esquerda, que defende exatamente o contrário. A raposa domina o perfil do PM, como se pode perceber neste artigo do Miguel Santos Carrapatoso sobre as melhores jogadas políticas de António Costa, mas o ouriço dá-lhe o pragmatismo para manter o poder.
Já Marcelo é uma raposa típica, “sabe muitas coisas” mas falta-lhe o foco. Pensa demais, avalia todos os quadros e todos os ângulos, umas vezes hesita outras avança por impulso, tem o objetivo de comer a galinha com a vantagem de já ter a canja garantida, mas estuda tantos cenários para entrar no galinheiro que por vezes acaba ultrapassado por outras raposas: por António Costa, que o forçou a assumir a recandidatura seis meses mais cedo, e por Rui Rio, que o deixou pendurado sem declarar já o apoio explícito (sabendo toda a gente que Marcelo será o candidato do PSD), embora o Presidente tenha aproveitado estar ao lado do líder social-democrata para equilibrar os pratos da balança em relação ao PS. Por mais raposa que seja, não se tem dado mal, e também tem o seu lado pragmático: é a única direita no poder, não tem o apoio da direita toda, mas aceita o endorsement da esquerda não só por necessidade mas também por adorar estas supremas ironias na política (ver o PS e os seus eleitores a votarem em si, que socialista nunca foi).
Entretanto, Ana Gomes vai mantendo uma atitude de raposa com objetivos de ouriço: ontem à noite, no seu comentário na SIC, a diplomata socialista voltou a dizer que está a "refletir", sem "pressa", sobre a sua eventual candidatura à Presidência.
As próximas presidenciais têm vencedor anunciado, mas isso não lhes tira importância não só pela circunstâncias sanitárias em que se vão realizar mas pelo impacto que podem ter no sistema. Se forem a rampa de lançamento de André Ventura para os dois dígitos, o embate será sistémico à direita. E para o regime.
Entre raposas e ouriços, alguém há-de escapar.