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quarta-feira, 17 de junho de 2020

Jens Stoltenberg: "A União Europeia não pode substituir a NATO"

De  Darren McCaffrey & Euronews  •  Últimas notícias: 17/06/2020 - 18:00

Jens Stoltenberg: "A União Europeia não pode substituir a NATO"

Direitos de autor euronews

A crise do coronavírus causou danos a nível mundial. Surgiram novas ameaças. O equilíbrio político do mundo inclinou-se mais para Leste. Será a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) ainda relevante no meio desta ordem mundial em mutação? Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, falou à Euronews sobre o futuro da organização dentro da atual conjuntura política e militar mundial.

Darren McCaffrey, Euronews: Vimos, nos últimos dias, nas notícias, a confirmação de Donald Trump de que vai retirar nove mil soldados da Alemanha. A informação foi revelada pela primeira vez, no The Wall Street Journal de 5 de Junho. Quando é que teve esta informação pela primeira vez?

Jens Stoltenberg, Secretário-geral da NATO: "Esta foi uma questão que discuti com o Presidente Trump por telefone, na semana passada. E nesse telefonema, afirmei muito claramente que a presença da América do Norte, tanto das tropas norte-americanas, como das canadianas na Europa, é importante para todos nós, para a Europa, mas também para a América do Norte. E, portanto, o que eu saúdo é o facto de termos assistido nos últimos anos a um aumento da presença dos Estados Unidos da América (EUA) na Europa, com mais tropas na Polónia, liderando um grupo de combate com mais presença nos países bálticos, na região do Mar Negro e também noutros locais".

O que me interessa é manter uma presença significativa da América do Norte na Europa, porque isso é importante tanto para a Europa, como para a América do Norte

Jens Stoltenberg

Secretário-geral da NATO

D.M.: "Não lhe parece estranho que, na qualidade de Secretário-Geral da NATO, descubra pela imprensa estes cortes bastante significativos no número de tropas na Alemanha, em vez de ser informado antecipadamente ou mesmo consultado sobre o assunto? De certa forma, é um pouco insultante, não é?"

J.S.: "A questão da presença dos EUA na Europa é uma questão que vimos discutindo há muito tempo no seio da NATO e, em particular, no meu diálogo com os EUA, como nossos aliados da NATO. O que os EUA deixaram agora claro é que não foi tomada qualquer decisão final sobre como e quando essa intenção será implementada".

D.M.: Mas este passo não envia a melhor mensagem sobre a aliança, pois não? E quase parece fazer parte de uma campanha em curso, por parte do Presidente dos Estados Unidos da América, para tentar chegar à NATO. Não acha que a presidência de Donald Trump prejudicou a reputação da NATO e, na verdade, a aliança?

J.S.: "A minha mensagem é também que a presença dos EUA na Europa não se trata apenas de proteger a Europa, mas também de projetar o poder dos EUA além da Europa. Sabemos que muitas das operações dos EUA no Iraque, no Afeganistão, em África, saem de bases norte-americanas na Europa. O Comando Africano dos EUA não está em África, mas sim em Estugarda, na Alemanha. Portanto, mais uma vez, agora temos de ter uma conversa sobre este assunto na NATO e o que me interessa é manter uma presença significativa da América do Norte na Europa, porque isso é importante tanto para a Europa, como para a América do Norte".

Não se trata de a NATO se deslocar para o Mar do Sul da China, mas do facto de a China se estar a aproximar de nós com sistemas de armamento que podem alcançar-nos a todos

Jens Stoltenberg

Secretário-geral da NATO

D.M.: Passando agora à minha introdução e àquilo de que acaba de dizer, sobre o equilíbrio mutável das ameaças. É claro que a NATO foi fundada para manter a URSS sob controlo. Não acha que a China representa uma ameaça militar maior em muitos aspetos, uma ameaça maior para a ordem mundial ocidental do que a Rússia?

J.S.: "A ascensão da China está a alterar fundamentalmente o equilíbrio global do poder. A China terá em breve a maior economia do mundo e já tem o segundo maior orçamento de defesa. E a China está a investir fortemente em novo armamento militar de longo alcance, mísseis que podem chegar a todos os aliados da NATO na Europa, e a modernizar as suas forças nucleares. E não se trata de a NATO se deslocar para o Mar do Sul da China, mas do facto de a China se estar a aproximar de nós com sistemas de armamento que podem alcançar-nos a todos, com o aumento da presença chinesa no ciberespaço, no Ártico, em África, mas também de investir fortemente em infraestruturas na Europa, e a NATO tem de responder a isso. E é extremamente importante que a América do Norte e a Europa se mantenham unidas porque, em conjunto, somos metade do poderio militar e do poder económico do mundo. Assim sendo, a ascensão da China torna ainda mais importante a manutenção dos laços entre a América do Norte e a Europa, os laços transatlânticos".

D.M.: Fala em não se mudar para lá, para o Mar do Sul da China, mas porque não? Como referiu, a NATO está envolvida em partes de África, no Afeganistão. Porque não enfrentar frontalmente essa ameaça, se ela de facto vier do Mar do Sul da China, e ver a NATO expandir as suas operações na Ásia Oriental?

J.S.: "Porque a NATO é uma aliança regional, a nossa responsabilidade é proteger aquilo a que chamamos o espaço do Atlântico Norte, a Europa e a América do Norte. Mas precisamos da abordagem global e precisamos de compreender plenamente as consequências da ascensão da China. É claro que alguns aliados da NATO operam no Mar do Sul da China. Estados Unidos da América, Reino Unido, França, que é também uma nação do Pacífico. Por conseguinte, há vários aliados que operam lá. Mas penso que é bom para todos que não se trate de uma missão da NATO, não sob o comando da NATO. Mas precisamos de adaptar a nossa presença aqui na Europa para podermos responder de uma forma coordenada".

Não temos indicações de que o coronavírus seja feito pelo homem. Mas, como é evidente, a própria pandemia alerta-nos para o potencial perigo relacionado com uma guerra biológica

Jens Stoltenberg

Secretário-Geral da NATO

D.M.: O surto do coronavírus, causou, em muitos aspetos, enormes prejuízos em termos de mortes e, também nas economias de todo o mundo. E lembra-nos que algo como coronavírus ou a covid-19 poderiam ser usados como arma. Já ouvimos falar de guerras biológicas no passado.

J.S.: "Antes de mais, não temos indicações de que o coronavírus seja feito pelo homem. Mas, como é evidente, a própria pandemia alerta-nos para o potencial perigo relacionado com uma guerra biológica. E, como agora investimos mais na modernização das nossas forças militares, também investimos mais em capacidade para lidar com ataques químicos e biológicos. Estamos a fazer mais exercícios e estamos a intensificar os esforços para lidar com este tipo de crise ou de guerra".

D.M.: "E, finalmente, não deveria ser este o momento em que a NATO se afasta e a UE entra com o seu próprio exército, com a sua própria força militar para afastar realmente estas ameaças?

J.S.: "Congratulo-me com os esforços comunitários em matéria de defesa. Mas não podem substituir a NATO. Temos de ter presente que 80% das despesas de defesa da NATO provêm de aliados não pertencentes à União Europeia. Portanto, saudamos mais esforços da União Europeia em matéria de defesa, mas também sabemos que quase 60% da população da NATO não vive num país da União Europeia. É evidente que a União Europeia não pode substituir a NATO, mas a NATO e a União Europeia podem complementar-se mutuamente. E saudamos mais esforços comunitários em matéria de defesa".

Estupefacto com os estupefactos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/06/2020)

Daniel Oliveira

A relação do Estado com o Novo Banco é de débito direto. Pode vir a ter de injetar dinheiro não apenas para limpar o legado do BES mas para compensar o capital que o banco não foi buscar por causa da pandemia. Perante isto, o Presidente da República mostrou-se “estupefacto”. É assim que vai estar, até às eleições, perante qualquer notícia impopular. Das duas uma: ou não conhece os termos da venda do Novo Banco e é incompetente, porque é seu dever estar informado num tema desta relevância, ou conhece e é demagogo.

O ministro das Finanças e o Banco de Portugal já vieram desmentir esta ideia. É como acionista (o Fundo de Resolução tem 25% do Novo Banco) que o Estado pode ser chamado a injetar ainda mais dinheiro, ao abrigo de uma rede de segurança de último recurso. É mais dinheiro público, mas não tem nada a ver com o mecanismo de capital contingente, descansam-nos. A primeira coisa a fazer é acabar com esta charada. Tornar públicos – e não apenas para os deputados – os contratos de venda do Novo Banco e toda a documentação que corresponda a qualquer dever do Estado.

Depois, todos os que apoiaram esta venda devem assumir as suas responsabilidades políticas. E isso inclui Mário Centeno, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Mas não devemos ficar por aí. Os organizadores da venda são responsáveis: Sérgio Monteiro, um homem obscuro que continua a passar pelos pingos da chuva e que recebeu meio milhão de euros por este rico trabalho; e Carlos Costa. Os dois também têm de responder perante o país, sem direito a qualquer tipo de reserva que impeça o escrutínio democrático.

Só depois disto podemos andar ainda mais para trás. Discutir aquela que foi, como disse Centeno, “a mais desastrosa resolução bancária alguma vez feita na Europa”. Aí, os responsáveis são o mesmíssimo Carlos Costa, o sempre eretamente rigoroso Passos Coelho e a inenarrável Maria Luís Albuquerque, que disse que uma solução que já custou cinco mil milhões ao Estado não teria custos para os contribuintes.

Depois desta catástrofe, havia três possibilidades para o Novo Banco: deixar falir, dissolvendo-o; vender em condições tais que o Estado ficaria a pagar tudo; e nacionalizar. A primeira era impossível sem um efeito sistémico em toda a banca e na economia; a segunda era ruinosa e tirava todo o poder ao Estado; a terceira era ruinosa mas dava poder ao Estado. Eu defendi a terceira, batendo-se Portugal com quem, na Europa, impôs ao país uma resolução experimentalista e desastrosa. Quem defendeu a segunda, que corresponde à nacionalização dos riscos e privatização dos ganhos, tem de assumir as suas responsabilidades. Sabendo que, depois de esmifrar o Estado, a Lone Star fará o que entender com o banco. E que todas as garantias que agora nos são dadas valem o mesmo do que as anteriores: nada.

Um novo sistema de valores

Posted: 16 Jun 2020 03:18 AM PDT

«As manifestações anti-racistas surgidas em todo o mundo como reação ao assassinato gratuito de George Floyd por um polícia branco norte-americano podem indiciar uma mudança no sistema de valores, não só quanto a referências, mas também quanto a práticas concretas.

Poder-se-ia dizer que este movimento pelos direitos dos negros norte-americanos, vitimizados por táticas brutais da polícia desde a emancipação falhada do final da Guerra Civil em 1866, está na linha de vários protestos, desde o início do século XX, contra permanente abuso e linchamento, ate ao movimento dos anos 60, que finalmente abriu caminho aos direitos civis, com largos custos, como o assassinato de Martin Luther King, Jr.

Contudo, há algumas diferenças radicais em relação a protestos anteriores. Os movimentos racistas e supremacistas brancos estão em declínio; até aos anos 60 eram eles que assaltavam bairros negros e originavam os protestos. As pilhagens que se verificaram agora nalguns protestos, prejudiciais ao movimento anti-racista, têm sido condenadas, mas não os protestos em si. Nestes protestos vêem-se muitos brancos e asiáticos, ao contrário do que acontecia até aos anos 60. Finalmente, este movimento social tem-se espalhado a outros países, onde o legado colonial é visível nos locais de memória, na topografia e nos monumentos.

Há duas novidades que mostram a mudança rápida de opinião. Em primeiro lugar, o ajoelhar durante o hino nacional como protesto contra a discriminação racial, iniciado em 2016 no desporto, rapidamente condenado e banido, é agora autorizado, ao mesmo tempo que se vêem polícias brancos a ajoelhar em solidariedade com os protestos. Esta nova atitude estende-se a tradicionais corridas de automóveis organizadas no sul dos Estados Unidos sob a bandeira da Confederação, agora banida. Em segundo lugar, as autoridades locais, que durante décadas bloquearam qualquer discussão sobre estátuas controversas, consideram agora a sua transferência para museus.

A vandalização e destruição de estátuas podem ser contraprodutivas, dado o enraizamento de figuras do passado na memória coletiva. Ainda se está para ver as consequências políticas de todo este movimento, por exemplo, ao nível das eleições para a presidência americana em novembro. Contudo, Trump foi colocado na defensiva, é visível a perda de iniciativa depois de uma primeira tentativa militarista falhada por recusa das chefias militares e governadores de Estados. A verdade é que movimentos iconoclastas fazem parte da história, envolvendo a religião hebraica, o Islão e um breve período da Igreja Ortodoxa Grega, a reforma Protestante com exclusão de imagens em diversas regiões da Europa, a revolução francesa com o esvaziamento de igrejas, enquanto o pós-guerra, a descolonização e o pós-comunismo geraram natural substituição de estátuas públicas com sentido político.

Haverá um conflito de memória entre diferentes grupos sociais com interesses políticos opostos, mas na minha opinião estamos num ponto de viragem. A noção de direitos humanos, baseada na dignidade de todos os seres humanos onde quer que eles vivam e qualquer que seja a sua origem e religião, tende a prevalecer. Não se trata já da noção abstrata de Rousseau, que tanto influenciou a declaração dos direitos humanos proclamada pela revolução francesa, mas só se referia a brancos, ou a declaração de independência dos Estados Unidos, que retirou a referência ao esclavagismo dados os interesses dos estados do sul. Trata-se agora de uma atualização, na prática, da declaração universal dos direitos humanos aprovada pelas Nações Unidas em 1948.

Já nessa altura, o debate em torno dos direitos do indivíduo face ao Estado, considerado por Samuel Moyn como pedra angular, abriu-se aos direitos económicos e sociais. A meu ver, a posição de Moyn é limitada, os direitos humanos devem ser entendidos na sua complexidade. O respeito pelas minorias e a rejeição do racismo estão ali inscritos dado o genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. Mas o que as últimas décadas trouxeram de novo foi um impulso coletivo para a concretização, na prática, desses princípios, ao nível do acesso a residência, emprego, educação, formas de mobilidade social que permitam quebrar a espiral de pobreza em que minorias e classes sociais estão encerradas.

Entretanto, os direitos das comunidades indígenas e os direitos do ambiente e dos animais têm-se afirmado, apesar dos recuos dramáticos em certos países, sobretudo no Brasil, onde a capacidade destrutiva do governo de extrema-direita podia ter ido ainda mais longe sem a resistência de instituições estaduais e federais. Esses direitos definem novas formas de solidariedade e de responsabilidade por uma relação equilibrada com o planeta onde vivemos e do qual dependemos. Mas há mais, o respeito pelas minorias de orientação sexual alternativa enraíza-se em muitos países, enquanto o respeito pelos direitos dos consumidores e pelos direitos dos trabalhadores, inclusive nos países em vias de desenvolvimento, se torna cada vez mais sensível. As empresas envolvidas em práticas de exploração de salários baixíssimos, ou de produção abaixo dos padrões mínimos de qualidade, arriscam processos de boicote que podem custar a quebra na bolsa ou a simples bancarrota.

O novo sistema de valores envolve uma nova ética de respeito pelas pessoas e pela natureza. O sistema económico capitalista baseia-se no lucro, mas os dias da sobreexploração de pessoas e recursos podem estar contados dada a tomada de consciência dos direitos humanos e ambientais. Os efeitos da globalização, como já tinha previsto Norbert Elias, poderão incluir a difusão desses direitos renovados e readaptados, com novos códigos de conduta a vários níveis, empresarial, organizacional, estatal. O desenvolvimento da economia social, com favorecimento de cooperativas, é uma opção que deve ser tida em conta neste novo período de ética social. A reforma do sistema, prometida por Elizabeth Warren, pode ser imposta simplesmente pela extraordinária crise atual, é uma ilusão pensar que tudo voltará ao que era.

Uma última palavra sobre Portugal: a ideia de que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de opinião no Brasil, em 1988, no centenário da abolição da escravatura, na qual 97% dos inquiridos respondeu não ter preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre familiares e amigos... O Brasil não é comparável, mas existem numerosos estudos da equipa de Jorge Vala desde 1995, bem como as sondagens regulares do Eurobarómetro, que mostram a existência de um racismo consistente, com preconceitos biológicos e culturais, no nosso país. Os dados disponíveis não colocam Portugal no grupo dos países europeus mais inclusivos. Temos claramente um problema educativo, que o negacionismo de parte da classe política certamente não ajuda a resolver.»

Francisco Bethencourt

Fixe este nome: Dexametasona. Vai ouvir falar dele

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Paula Santos

Paula Santos

Diretora-adjunta

17 JUNHO 2020

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Dizem que é uma estrada, mas não passa de uma ausência”.
Ricardo Marques, jornalista do Expresso, começava assim, no dia 18 de junho de 2017, o texto de uma reportagem que nos transportou para as horas de terror vividas no dia anterior numa estrada nacional a que se colou o rótulo da “estrada da morte”.
O país despertou em choque para as consequências inéditas e violentas de um incêndio que, apesar dos avisos da meteorologia, não foi devidamente acautelado e cujas marcas o presente vai disfarçando sem nunca apagar. Só naquela estrada morreram 47 pessoas, encurraladas pelas chamas. “Não tiveram hipótese” contava um homem da terra à conversa com o jornalista.
O incêndio de Pedrógão foi há exatamente três anos. Ao todo morreram 66 pessoas, nove eram crianças.
O Expresso revisitou agora a estrada que ficou em cinzas para retomar o filme de uma tragédia, “a maior” em Portugal como lhe chamaria naquela mesma noite de 2017 António Costa. As jornalistas Christiana Martins e a Ana Baião percorreram o troço de 400 metros onde o fumo, as chamas e as altas temperaturas não deram hipótese aos moradores em fuga. Reencontraram as vítimas e as histórias do muito que ainda está por recuperar.
Vidas interrompidas pelas sequelas do pior dia de sempre. Promessas por cumprir, responsabilidades por apurar. “Ainda há dor em muitas famíliasdizia esta manhã o Presidente da República em entrevista à rádio Observador.
O incêndio começou num sábado à hora do almoço sem que ninguém o travasse nas horas que se seguiram. Galgou muros, ruas, atravessou casas, espalhou-se pela floresta e pelo mato, apanhou tudo e todos de surpresa e alimentou-se de falhas de outros tantos. A começar pelos serviços de emergência e segurança, sob alçada do Estado.
Em 2020, aprendeu-se a lição, assegura o Governo. Perante um verão que se antevê de temperaturas altas, os ministros do Ambiente e da Administração Interna acabam de assegurar que o país está “mais bem preparado” do que estava em 2017.

O plano de gestão integrada dos fogos rurais, agora apresentado, é o novo mapa a seguir e mal seria que não refletisse uma nova realidade, depois da tragédia. Ainda assim, às falhas e atrasos apontados já este ano pelo Observatório Técnico Independente, sublinha-se a resposta do ministro Eduardo Cabrita: são “projeções especulativas”.
Durante a manhã em Figueiró dos Vinhos, acendem-se 66 velas em memória das vitimas de Pedrógão. Com Marcelo Rebelo de Sousa presente e a ministra Ana Abrunhosa a representar o Governo na homenagem.

Este ano, pela primeira vez, António Costa foi convidado. Compromissos no Parlamento (vamos a eles daqui a pouco) impediram a deslocação.

terça-feira, 16 de junho de 2020

A História reescreve-se por novas mãos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/06/2020)

Daniel Oliveira

Sem querer entrar em polémica com Vítor Serrão, porque é de outra coisa que quero tratar, foi-me impossível ler uma frase do seu texto sem espanto, apesar de ela repetir uma das muitas ideias indiscutíveis que foram ditas e escritas nestas semanas. Referindo-se à “vandalização de monumentos que em algum momento passaram a ser vistos como símbolos nefastos por parte de determinadas dinâmicas políticas, sociais, religiosas, ou de defesa de um gosto preestabelecido”, coisa que mostra “à saciedade quão acéfalo é o pendor dos homens para a violência gratuita”, o historiador escreve: “a violência contra as obras de arte é sempre um ato fascista, sejam quais forem as razões invocadas ou as bandeiras que se desfraldem para o levar à prática.” Recordo que se está a falar de monumentos no espaço público, a que genericamente se chama “obras de arte”, mandados erguer pelo poder político circunstancial para celebrar o passado de uma determinada forma, e não de peças de museu para o compreender.

D.R.

Não consegui, ao ler esta frase, deixar de me recordar das cabeças das estátuas de Hitler, numa rua de Berlim depois da libertação, e de Estaline, em Budapeste, durante a revolta húngara. Ou as de Lenine um pouco por todo o bloco de Leste. Ou a de Saddam, em Bagdad. Terão sido aqueles atos violentos contra objetos manifestações de “fascismo”? É das poucas coisas que aqui escreverei com toda a certeza: mil vezes não. E só alguém tão embrenhado na sua função zeladora do objeto mas totalmente desprovida de sentido de justiça política e empatia pode atrever-se a dizer que o foi. Foi um ato libertador, e não há coisa mais justa para dizer que as estátuas do poder que oprime estão condenadas a cair dos seus pedestais. Porque elas não se limitam a ser obras de arte para os estudiosos observarem. São instrumentos de poder e, quando enfrentadas, de libertação.

D.R.

Dirão que não faz sentido comparar aquelas estátuas decapitadas ou derrubadas com o que se passa hoje. Não estou ainda aí. O autor diz que é “sempre”, por isso só pode incluir estes momentos numa demonstração de “fascismo" “acéfalo". Não me passaria tal ideia pela cabeça, talvez por achar que os símbolos são isso mesmo: símbolos. Pelo menos quando estão numa praça. Outra coisa, bem diferente, é quando são removidos para um museu. Mas, para que isso aconteça, é preciso que o poder político o decida fazer. É preciso um ato político. A forma como isso acontece em democracia já a deixei no meu texto de sábado e não preciso de voltar a ele. Mas talvez comece, como começou em Bristol, por uma revolta.

Se me acompanham no regozijo de ver o povo celebrar a queda de estátuas de genocíidas como Hitler e Estaline, quer dizer que abandonaram a posição principista que transforma estátuas construídas pelo poder em objetos sagrados. Ótimo, porque isso torna o debate mais complicado e, em regra, menos “acéfalo”.

Passemos para a outra frase que por aí campeia: que a História não se reescreve. Até se tem dito mais: que ela não se apaga - mas disso também já tratei no sábado. Quando uma comunidade se confronta como uma estátua que está no espaço público que usa faz o oposto de apagar a História. Está a sublinhar a História. Apagar a História é a estátua ficar lá, já sem qualquer significado, como mero adorno, sem que a maioria saiba quem é o representado.

A ideia de que a História não se reescreve resulta de haver quem ache que ela já está escrita. Definitivamente. Na pedra. Não me espanta que alguns acreditem nisso. Há quem ache que a História é um conjunto de factos indisputáveis. Mas, verdade seja dita, ninguém acha mesmo isso. É conforme o desconforto e o conforto que sentem com o que já foi fixado. Os mesmos que pedem que não se reescreva a História gostam de ver historiadores como Rui Ramos a reescrever o que era apresentado como certezas sobre o Estado Novo. E vice-versa: os mesmos que querem rever a história dos “descobrimentos” chamam “revisionista”, em tom acusatório, a Rui Ramos por querer rescrever a história do Estado Novo.

Não fazemos outra coisa na História que não seja reescrever a História. Reescrevemos porque conhecemos novos factos. Reescrevemos porque mudam-se os valores e o nosso olhar muda sobre esses factos. Pelo menos sobre a forma como os ligamos e enquadramos. E reescrevemos porque são mãos diferentes, com origens diferentes, a escrever a História. A ideia de que não devemos ter um olhar anacrónico sobre o passado está globalmente certa mas tem os seus limites. A expulsão dos judeus aconteceu há mais de meio milénio e nenhuma pessoa decente deixa de dizer que foi intrinsecamente errada. Curiosamente, com menos rodriguinhos e adversativas do que quando se fala da escravatura. E dizê-lo nunca impediu que houvesse contexto.

Quando se fala de “devolver” artefactos às ex-colónias isso é tratado como um absurdo. A História não se repara, dizem. Quando se tratou de “devolver” a nacionalidade aos descendentes de judeus sefarditas a votação foi unânime no Parlamento. Concordo evidentemente com as duas mas, se não se importam, não quero debater o seu conteúdo. Quero tentar perceber porque está a nossa relação com os judeus que perseguimos e expulsámos relativamente pacificada, de tal forma que não nos importamos de fazer julgamentos supostamente anacrónicos sobre a História, e a nossa relação com os negros que escravizámos é tratada como algo que deve ser confinado ao seu contexto. Já nem falo dos ciganos, que pura e simplesmente foram obliterados da História, sem direito a que sequer se reconhecesse a perseguição de que também foram alvo.

A diferença está no facto de os judeus, depois da segunda guerra, terem conquistado o direito à visibilidade e terem, até porque contaram com o apoio de grande parte dos vitoriosos, passado a ser fazedores da sua própria História. O seu sofrimento coletivo, mesmo quando herdado pela memória, passou a condicionar a forma como olhamos para o passado. De tal forma que garantimos aos herdeiros da expulsão, muitos séculos passados, o direito à nacionalidade. Reparámos uma História que nem sempre foi contada como se conta hoje. E fizemos muito bem. Fomos forçados a isso.

Quando as pessoas se perguntam como pode um jovem negro sentir-se insultado com a estátua de um traficante de escravos, que morreu há séculos, não se pergunta porque se sente o judeu insultado com uma suástica ou, andando mais para trás, com qualquer glorificação de responsáveis pelos pogroms Porque a herança de sofrimento é aceite para uns e não é aceite para outros. E não é por o antissemitismo ter deixado de existir que é aceite para uns e não para outros. É porque uns conquistaram o direito à visibilidade, enquanto herdeiros e sujeitos da História, e outros não.

O que está a acontecer, um pouco por todo o mundo ocidental, é que novos sujeitos ganham (muito mais nos EUA e no Reino Unido do que cá, onde as ações espetaculares ainda são mimetismo inconsequente) o direito a reescrever a História. E é bom sublinhar que aqueles que não escreveram a História que está fixada também não tiveram o direito de erguer estátuas. Esta chegada de novos atores à disputa do espaço público e da História é dolorosa para quem acha que ela já está convenientemente escrita. Não percebendo – ou percebendo muito bem – que a disputa pelo passado é sempre uma disputa pelo presente.