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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Resistir ao medo patológico

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/06/2020)

Daniel Oliveira

Defendo medidas de contenção que devem avançar e recuar conforme as necessidades, como ainda está a ser feito. E que o poder político se mantenha insensível à pressão mediática, sempre pronta a entrar em histeria. Não pode acompanhar o medo patológico que tomou conta da nossa sociedade.


É claro que há, um pouco por toda a Europa, um recrudescimento do vírus. E os que menos casos tiveram tenderão a ter mais agora. Era inevitável que isso acontecesse com o desconfinamento. E por razões que deixarei para o meu texto deste sábado, na edição semanal do Expresso, é natural que grande parte dos novos casos aconteça nas periferias mais pobres de Lisboa.

Mas antes que especialistas em epidemiologia e doenças respiratórias – que naturalmente só pensam em epidemiologia e doenças respiratórias – convençam a opinião publica e esta convença o Governo a destruir o país por muitos anos, rebentando com o pouco que resta da economia, matando centenas de pessoas com outras doenças que não a covid por falta de acompanhamento médico, enfiando a nação numa depressão profunda e destruindo a democracia e as liberdades cívicas, gostava de fazer um exercício impossível neste tempo: pôr as coisas em perspetiva.

Olhando para os números da semana passada e para os divulgados esta quinta-feira, o que corresponde à evolução que permitiu que se instalasse de novo o pânico e o discurso da catástrofe, o que temos é isto: mais 2.326 infetados, o que é compensado por mais 2.372 recuperados, o que corresponde a menos 46 infetados ativos. Mas vamos ao que interessa para quem acreditou e continua a acreditar que o objetivo de achatar a curva era garantir resposta do SNS para evitar mortes evitáveis: temos mais vinte internados do que há uma semana (com 436, continuamos próximos de 10% da capacidade), mais seis internados em cuidados intensivos (num total de 73, também muito longe da capacidade máxima) e vinte novos óbitos a lamentar. A situação é de tal forma “dramática” que Lisboa decidiu reduzir o número de camas em hospitais de campanha que nunca chegaram a ser usados.

Como o mundo não se divide entre pessoas responsáveis, de um lado, e Bolsonaro e Trump, do outro, quero voltar a deixar claro o que já deixei há muito tempo: defendo, sempre defendi, medidas de confinamento e restrição para lidar com a pandemia. Não nego os riscos que ela acarreta. Não acho que isto seja igual a uma gripe. Defendo que essas medidas devem avançar e recuar conforme as necessidades. E defendo que, para que isso aconteça sem causar vítimas (quer por causa da pandemia, quer por causa da crise económica) desnecessárias, os políticos têm de se manter insensíveis à pressão mediática, sempre pronta a entrar em histeria para ter assunto.

O poder político não pode acompanhar o medo patológico que tomou conta da nossa sociedade. Não pode perder a noção das proporções e estar disponível para destruir a economia global, os direitos fundamentais, as regras democráticas e, coisa que tem sido pouco falada, a vida social nas empresas e nas escolas só para apaziguar o pânico coletivo. Sente-se, aliás, um indisfarçável prazer de muita gente, incluindo jornalistas, quando se usa a expressão "medidas musculadas". Se há coisa que ficou clara para mim, nesta pandemia, é que o amor de muitos à liberdade não passa de um namorico, sem empenhamento ou projetos para o futuro. E isso é assustador.

É por isso que é fundamental, neste momento, resistir à histeria. Os que não a acompanham têm o dever de o dizer publicamente, sem receio de serem chamados irresponsáveis ou “bolsonaristas” e “trumpistas”, insulto que acompanha a irracionalidades destes líderes, que transformaram este debate num confronto de trincheiras. Se não o fizerem, seremos levados na voragem da irresponsabilidade dos “responsáveis”. Sem conseguirmos, no meio do pânico, calibrar as medidas às necessidades, como ainda está a ser feito. Sabendo que estar vivo é um risco. E que os riscos se reduzem, não se apagam.

OMS diz que contágios deverão chegar aos 10 milhões na próxima semana

De  euronews  •  Últimas notícias: 25/06/2020 - 09:36

OMS diz que contágios deverão chegar aos 10 milhões na próxima semana

Direitos de autor Sott Keeler/Tampa Bay Times via AP

O número de novos casos de covid-19 não pára de crescer. A Organização Mundial da Saúde fala de um milhão de novas infeções por semana.

O representante da organização admite que o pico da pandemia ainda não foi atingido e que é espectável que na próxima semana o número de infeções ultrapasse os 10 milhões.

A Organização Mundial da Saúde alerta também para a redução do stock de suporte de oxigénio nos hospitais, indespensável para o tratamento.

O coronavírus está a espalhar-se de forma galopante na América do Sul. Até agora, regista 76 mil mortes de pessoas infetadas, 70% destas no Brasil.

Apesar dos dados, o presidente do país, Jair Bolsonaro, tem vindo a menosprezar a ameaça do vírus, mas, na última aparição pública, foi visto a usar máscara, algo raro mas de acordo com as ordens que recebeu do executivo federal.

Na Índia foram registados nas últimas 24 horas 16.000 novos casos, o maior número diário desde o início da panemia. Em Nova Deli, o governo convocou o exército para gerir os novos centros de tratamento. O vice-representante da capital admite que a prioridade é criar estruturas que diminuam o sofrimento das pessoas infetadas.

Nos EUA, apesar das restrições, surgiram, no último dia, quase 35 mil novos contágios. O segundo maior número diario alguma vez registado no país. Em Nova Iorque, o governador avisa que, se as pessoas não tomarem as medidas de precaução, a hipótese de quarentena poderá regressar. Ou seja, 14 dias de confinamento obrigatório. Para quem não cumprir, "haverá multas", diz.

Em Pequim, na China, em pleno novo surto de Covid, as pessoas foram proibidas de sair da cidade durante o feriado de três dias do Festival do Barco do Dragão, que começa esta quinta-feira.

COVID-19 progride em diversos países europeus

De  Euronews  •  Últimas notícias: 19/06/2020

COVID-19 progride em diversos países europeus

Direitos de autor Matt Dunham/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved

Novos focos de infeção na Alemanha; aumento de número de casos em Portugal; aumento do número de mortos em Itália, assim vai a evolução da Covid-19 na Europa.

Na Islândia foram testadas, nas últimas 24 horas, 927 das 1100 pessoas chegadas à ilha. Cinco novos casos foram detetados e dois cidadãos romenos foram detidos por estarem infetados e romperem a quarentena. Uma agente da polícia terá sido infetada no momento da detenção dos cidadãos romenos.

Na Roménia os níveis de contágio continuam bastante altos e vários hospitais atingiram o ponto de saturação e deixaram de receber pacientes. O presidente, Klaus Iohannis, adverte que a situação é preocupante e apela ao cumprimento das regras de higiene e distância social.

Nas últimas 24 horas surgiram 320 novos casos e morreram 22 pessoas.

Em Portugal, o número de infeções tem subido numa média de mais de 300 por dia, com uma subida acentuada na quinta-feira, com mais 417 casos. A maior concentração de novos casos continua a ser na área metropolitana de Lisboa, mas há novos focos também no Algarve.

O aumento dos casos de infeção em Portugal levou cerca de uma dezena de países europeus a proibirem ou imporem restrições à entrada de cidadãos portugueses. O governo português protesta contra esta a decisão - tomada à revelia das decisões da União Europeia - e admite impor também restrições à entrada de cidadãos desses países, utilizando o princípio da reciprocidade.

Pandemia, catástrofe e desigualdade

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 25/06/2020)

Alexandre Abreu

Walter Scheidel, historiador austríaco baseado na Universidade de Stanford, publicou em 2017 um livro intitulado The Great Leveler(qualquer coisa como “o grande nivelador” – o livro não está ainda disponível em português) que desenvolve um argumento bastante trágico: que ao longo da história da humanidade, os episódios mais eficazes de redução generalizada dos níveis de desigualdade envolveram a ação de acontecimentos catastróficos. O argumento é trágico porque conduz à conclusão que um objetivo que a maioria de nós considera meritório (mais igualdade e mais justiça social) dificilmente pode ser alcançado de forma eficaz sem a intervenção de um dos quatro “cavaleiros do apocalipse”: guerra, revolução (em geral violenta), colapso do Estado ou epidemia.

Os mecanismos descritos, como se imagina, não são simpáticos. A redução da desigualdade é alcançada ou através da eliminação física dos grupos anteriormente dominantes, ou através do colapso das instituições existentes e desenvolvimento de novas instituições, ou da redução da disponibilidade de mão-de-obra e alteração da sua relação quantitativa com os meios de produção existentes. Vale a pena sublinhar que o argumento é analítico e factual, não é normativo – trata-se de argumentar como é que as coisas em geral aconteceram ao longo da História, não se trata de argumentar que os fins justificam esses meios. E trata-se de uma argumento que pode ser disputado, claro: podemos por exemplo chamar a atenção para a limitação da desigualdade nas economias avançadas na segunda metade do século XX e atribuí-la essencialmente a mecanismos reformistas, democráticos e não calamitosos no contexto do contrato social keynesiano-fordista – se bem que será um erro minimizar o efeito que a guerra (de ’39-’45) e a revolução (russa, através da ameaça política que constituía) tiveram também nesse contexto.

Como seria de esperar, o argumento de Scheidel foi imediatamente recuperado a propósito da atual pandemia. Seria possível que deste acontecimento catastrófico, com toda a destruição e todas as vítimas que lamentavelmente tem vindo a provocar, pudesse resultar algo que, pelo menos a um certo nível, tivesse algo de ‘nivelador’? Este argumento, ou expectativa, foi desenvolvido entre outros por Peter Radford no blogue Real-World Economics Review logo no final de março: a epidemia de coronavírus poderia ser “o nosso momento Scheidel”, com o potencial para pôr em causa o poder das elites e a ideologia dominante ao ponto de permitir superar o neoliberalismo e os níveis elevadíssimos de desigualdade que este produziu.

Ao longo dos meses seguintes, a realidade tem-se mostrado exatamente contrária: pelo mundo fora, em todas as sociedades incluindo a nossa, os efeitos diretos e indiretos da epidemia de coronavírus, do confinamento e da crise económica e social resultante afetaram desproporcionalmente os mais pobres e desprotegidos, expondo as desigualdades existentes e criando novos eixos de desigualdade (por exemplo, na exposição ao risco médico-sanitário) que intersetam e aprofundam as desigualdades preexistentes. Isso mesmo tem sido mostrado por estudo após estudo, mas também pela experiência diária de cada um de nós.

Pareceria por isso que o argumento de Scheidel estaria definitivamente posto de lado, pelo menos na sua aplicabilidade ao contexto presente. Porém, repare-se que o argumento nunca foi que os efeitos da epidemia e da crise económica incidiriam desde logo principalmente sobre os mais ricos. O argumento é antes que esta crise poderá abalar de tal forma os fundamentos da nossa organização social, tanto no plano material como ideológico, que imponha ou pelo menos propicie mudanças num sentido promotor de mais igualdade. Tem a palavra o próprio Scheidel, em entrevista ao "Guardian"há algumas semanas: “Depende de quão profunda for esta crise, de quanto tempo vai durar e de até que ponto afetar as cadeias de abastecimento globais. (....) Se, em resultado do Covid-19, tivermos pela frente uma depressão duradoura, julgo que estará em cima da mesa a possibilidade de políticas mais radicais do que sucedeu em muito tempo”.

E é aqui que o argumento materialista de Scheidel, por muitos visto como trágico e pessimista, pode ser recuperado para uma leitura mais otimista: em última instância, todos estes processos materiais são mediados pela política, o que significa que deixamos a esfera das inevitabilidades e introduzimos variabilidade e indeterminação histórica em função da capacidade de mobilização, organização e persuasão.

Combater as desigualdades mais iníquas no mundo contemporâneo implica limitar a esfera do mercado, proporcionar saúde, educação, habitação e trabalho a todos e financiar tudo isto através de impostos progressivos. Não há nenhuma lei de ferro que nos impeça de avançar coletivamente neste sentido – de preferência, ao mesmo tempo que limitamos a pandemia.

Mas que doença é esta, afinal?

Posted: 25 Jun 2020 03:48 AM PDT

«Assinalou-se no último sábado, dia 20 de junho, o Dia Mundial do Refugiado. O dia dos mais de 26 milhões de refugiados em todo o mundo. 26 milhões. Este número é, para muita gente, isso mesmo, só um número, mas deixa de o ser quando conhecemos as pessoas que ele representa, as suas vidas, as suas histórias e os seus sonhos. Deixa de o ser quando conhecemos o Ahmad que veio dos Camarões porque foi obrigado a alistar-se a uma milícia terrorista e, como ritual de iniciação, teria que matar a sua própria mãe. Deixa de o ser quando conhecemos o John, do Congo, que fugiu do seu país porque mataram toda a sua família. Deixa de o ser quando nos contam que só querem poder recomeçar e reconstruir-se. Não deveria ter de haver um dia mundial do refugiado para nos lembrarmos deles, não deveria ter que existir um dia 20 de junho para pensarmos neles. O dia mundial do refugiado são todos os dias, porque todos os dias, a cada dois segundos há uma pessoa que é forçada a abandonar a sua casa devido a conflitos armados ou perseguição étnico-racial. Dois segundos.

Hoje talvez seja mais importante do que nunca falar sobre vocês, porque, a cada ano que passa, o problema agrava-se e este ano, no contexto em que vivemos, são vocês, como sempre, que mais sofrem. Uma crise como esta é sempre tremendamente desigual, não há crises que afetem todos da mesma forma e isso é hoje flagrante: são os mais pobres os mais afetados e com menos possibilidades de combater a pandemia, são os bairros mais precários que têm um maior número de casos e propagação da covid-19, e esta crise, como todas as outras, irá agravar o enorme fosso entre classes sociais.

Imaginemos agora, que viveríamos num campo de refugiados, com capacidade para 3000 pessoas e que alberga 20.000. Imaginemos agora que, não bastando as condições desumanas em que esses milhares de pessoas vivem, com famílias inteiras a viver durante dois anos numa tenda de 5 metros quadrados, fecham o campo de refugiados, não deixam ninguém entrar ou sair, para impedir a propagação do vírus. Imaginemos que exigem a essas 20.000 pessoas que mantenham a distância social e que lavem as mãos com frequência. Que distância social se mantém num contentor com 30 pessoas a dormir no chão? Que lavagem das mãos é possível com uma torneira para cada 500 pessoas? Que vida lhes resta quando os poucos bens ou ajudas que já tinham, escasseiam pela impossibilidade das ONG trabalharem, sendo obrigados a comer comida crua depois de 3h numa fila à espera? E tudo isto, sob a desculpa das políticas sanitárias no contexto da pandemia. Mas que doença é esta que nos faz esquecer a humanidade, que não nos deixa dar a mão ao outro quando se está a afogar às portas da Europa? Que doença é esta que criminaliza a ajuda humanitária e exige o impossível a quem não tem tecto, água e as mínimas de higiene? Não, não se chama covid-19. Esta é a degradante doença da desumanidade, do oportunismo político e da cegueira.

Esta é a doença que já corre na Europa há muitos anos e que foi exponenciada pela pandemia. É a doença que deixa em terra dois barcos de resgate no mediterrâneo de migrantes e refugiados durante dois meses, incapacitados de fazer o seu trabalho, pelo “risco de contágio associado a esta prática”, mas que já existia quando não havia coronavírus, ao obrigar embarcações com centenas de migrantes a ficar semanas ao largo de Itália pela impossibilidade atracar. É a doença que deixa uma embarcação três dias ao largo da ilha de Lesbos, na Grécia, sob o olhar da Guarda Costeira Grega, com mais de 30 pessoas vindas da Turquia, com uma grávida doente que acabou por parir na embarcação e teve uma grave hemorragia pós parto. Mas é a mesma doença que impediu os migrantes recém-chegados à Grécia de requerer asilo, que fez dezenas de pushbacks ilegais ao longo das fronteiras no início deste ano. É a mesma doença que o ano passado fez o Parlamento Europeu chumbar as resoluções que apoiavam o resgate e salvamento de vidas no mediterrâneo. É a doença que corrói a Europa, que faz com que o tão apregoado continente charneira dos Direitos Humanos, seja o mesmo que se descarta de salvar vidas, que financia milícias terroristas na Líbia e que ergue fortalezas e muros. Esta é a mesma doença que é filmada quando há fogo mas esquecida quando as cinzas quentes se espalham, esta é a doença que tem a nossa atenção quando a ferida jorra sangue, mas que que é renegada depois, enquanto o músculo apodrece e morre. E infectados por esta doença, lembramo-nos vagamente que em 2017 750 mil rohingyas fugiram do Myanmar para o Bangladesh, mas ignoramos que passados três anos tudo está na mesma. Recordamos as imagens dos milhares de pessoas a fugir da Venezuela há três anos e não sabemos, ou não queremos saber, que hoje em dia milhares de venezuelanos ainda passam a fronteira para fugir da miséria, e que insistimos em chamar “crise de refugiados” ao influxo de pessoas na chegada à Europa em 2014, ignorando que 2019 foi o ano em que mais gente chegou ao continente dos últimos cinco.

Esta é a doença crónica mais grave dos nossos tempos, que transformou o mediterrâneo na fronteira mais mortífera do mundo, onde jazem mais de 10 mil pessoas que vinham em busca de uma nova vida. É a doença que deixa um milhão de rohingyas no Bangladesh, sem acesso à Internet, sem possibilidade de aceder a serviços públicos, confinados no maior campo de refugiados do mundo, sem perspectivas nenhumas de poderem regressar à sua casa ou de poderem reerguer uma nova.

Esta é a mesma doença que trouxe ao Parlamento português, o discurso xenofóbico, racista e autoritário pela primeira vez na história da democracia portuguesa. Hoje, há um deputado a sugerir a criação de autênticos guetos para ciganos e a prometer a prisão e punição para quem diga mal ou insulte as forças de segurança. Hoje, mais do que nunca, temos que falar de vocês e de humanidade, por ser cada vez mais urgente, e porque calar é consentir.

Qual a cura para esta doença, perguntar-se-ão muitos dos leitores. É difícil e morosa, e implicaria outro infindo texto sobre políticas migratórias e de asilo.

A solução ideal passaria, obviamente pela resolução do problema a montante e pela salvaguarda de condições de paz e segurança que permitissem a estas pessoas regressar à sua nação. Ao contrário do que muitos pensam, os refugiados fogem da sua casa por causa da guerra ou perseguições étnico-raciais incomportáveis, e fazem-no com uma dor e uma amargura inimagináveis. Gostavam de nunca ter saído e abandonado o seu país, mas não tiveram alternativa, e queriam um dia poder regressar. Mas como se regressa à Venezuela, à Síria, ao Myanmar ou ao Congo? É impossível. Basta olhar para os números: o tempo médio que um refugiado fica em exílio, impossibilitado de regressar a casa, são 17 anos. 17 anos é uma infância inteira.

Assumindo esta inevitabilidade, pelo menos a curto prazo, há aceitar que os refugiados continuarão a existir e a tendência é que o número seja cada vez maior. O problema então coloca-se: como receber estas pessoas? Muitas delas ficam condenadas a passar anos sem fim em campos de refugiados e este é talvez o maior dos problemas: estes campos têm que se lugares de passagem, não podem ser sítios onde se ficam 3,4 ou mais anos, sem possibilidade de produzir, de ter rendimentos, ou de construir planos de vida. Conheci crianças em Lesbos que estavam num campo de refugiados há três anos à espera da resposta ao pedido de asilo. Três anos sem escola, sem conhecer mundo além daquelas cercas, sempre dependentes de ajuda e sem um plano ou uma ideia de futuro. O processo de pedido de asilo é extraordinariamente demorado, e a espera e a incerteza são um fardo insuportável para muitos deles. Assumindo que, infelizmente, a morosidade da resolução dos pedidos de asilo é difícil de resolver, pelos recursos humanos escassos ou, pela maior parte das vezes, por uma tremenda falta de vontade política, que sejam dadas condições dignas às pessoas enquanto esperam. Basta olhar para os campos da Jordânia, com pré-fabricados, espaço, organização e condições de higiene ou para os campos de Moria ou de Samos, com condições deploráveis e inimagináveis em que ninguém deveria ser obrigado a viver, ainda para mais na Europa. Há exemplos extraordinários por esse mundo fora de como é possível mudar este paradigma dos campos de refugiados, desde projectos de reflorestação que foram terreno fértil para a paz entre comunidades, a campos em África em que cada família de refugiado tem direito a um pedaço de terreno que pode cultivar, cuidar ou construir. Mas a mais eficaz de todas estas soluções, principalmente na Europa é uma e só uma: a abertura de fronteiras e o fim do tratado entre a Turquia e União Europeia.

Também aqui, em Portugal, são visíveis bons e maus exemplos da integração. No mesmo mês em que o Governo concedeu cidadania temporária a todos os requerentes de asilo para poderem aceder livre e gratuitamente a todos os serviços públicos, vieram a lume as condições precárias em que muitos migrantes vivem na cidade de Lisboa, encafuados em hostels sem a mínima capacidade de resposta, o que acabou por correr muito mal, como sabemos. E é nos países de acolhimento que o desafio é especialmente difícil: desmistificar a ideia da subsídio-dependência dos refugiados e de aproveitamento de recursos dos países que os recebem. Vários estudos indicam que o investimento inicialmente feito é rapidamente reposto após 2 anos, com retorno para a economia e diminuição das taxas de desemprego graças ao acolhimento e às políticas de integração.

Os tratamentos para esta doença são vários mas a primeira terapêutica é simples: aceitar que uma vida é sempre para salvar, aceitar que qualquer pessoa, seja cigana, branca, preta, muçulmana ou homossexual deverá ter as mesmas oportunidades que todas as outras, e aceitar que todas merecem uma vida: que a Julia poderá um dia ter trabalho e ser mãe, mesmo tendo fugido da sua casa a arder no Congo, que o Abdullah poderá um dia ser advogado para fazer justiça aos que foram tremendamente injustos com ele, e para que a cada dois segundos não haja uma nova Julia, um novo Abdullah neste mundo, cujos sonhos são destruídos por uma Europa inerte e por um mundo que vê num vírus uma desculpa para deixar de cuidar e olhar pelo outro e não uma alavanca para a igualdade e dignidade de todas as vidas.

Nos três minutos que demorou a ler este texto, cerca 90 pessoas foram obrigadas a fugir de casa, só com uma mochila às costas. Lembremo-nos delas hoje, para que possam crescer além do seu passado e recomeçar de novo, com dignidade e humanidade, em Portugal, na Europa ou em qualquer outra parte do mundo. Porque enquanto houver vontade, união e esperança, haverá sempre um porto seguro para vocês.»

Sebastião Castanheira Martins