por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/06/2020)
Daniel Oliveira
A direita conservadora consegue ter, em simultâneo, dois discursos: o que ataca o "marxismo cultural”, uma mixórdia ignorante que tenta dar nome ao facto de a esquerda estar, como a direita, na disputa do espaço público e das instituições; e a revolta contra a "cancel culture", adaptação de um termo juvenil para o processo pelo qual o “politicamente correto” combaterá, por via da sociedade civil e geralmente nas redes sociais, valores que lhe desagradam.
Note-se que esta franja da direita ultraconservadora, cada vez mais hegemónica no seu espaço político, considera como valores da esquerda ou mesmo marxistas (têm um olhar benigno da história do movimento marxista) os valores da tolerância com modos de vida e orientações sexuais diferentes dos maioritários. Aqueles que estão, aliás, inscritos na nossa Constituição. Em resumo: os mesmos que querem afastar de todo o espaço gerido pelo Estado valores constitucionais, revoltam-se por cidadãos se mobilizarem contra uma mensagem que os repugna. Censura de Estado, excelente; censura social, claustrofóbica.
Na semana passada assistimos, no entanto, à mais descarada campanha de “cancel culture”. Foi contra a série de animação “Destemidas”, dirigida ao público infanto-juvenil. A produção da France Télévision e apoiada pela União Europeia, muito premiada e transmitida em várias televisões (sem que nunca a sua transmissão tenha sido suspensa, que eu saiba), está a passar na RTP 2. Conta a vida de várias mulheres que desafiaram as convenções ao longo da História. O que levou à polémica foi o episódio sobre Thérèse Clerc, uma feminista francesa homossexual que lutou pela legalização do aborto. Os indignados não se limitaram a criticar a série, exigiriam censura. O que é curioso é esta pressão, em parte bem sucedida, ter sido veiculada pelas mesmas pessoas que passaram o último mês a dizer que havia quem quisesse apagar a História.
Admitindo a possibilidade de se ter perdido, na dobragem, a adequação da linguagem ao público mais jovem, é importante deixar já clara uma coisa: os programas infantis e juvenis, mesmo na televisão pública, não têm de agradar a todos os pais nem de veicular valores em que todos eles se reconheçam. Isso tornaria impossível qualquer série. A maioria dos desenhos animados, mesmo os que parece banais aos olhos de muitos, transmitem valores sobre o papel do homem e da mulher que me desagradam. Se respeitarem a lei, não ando a pedir que sejam retirados. Só espero uma televisão plural onde também caibam os valores que quis transmitir à minha filha e quererei transmitir aos meus netos. E é isso mesmo que me querem recusar. Que o meu mundo, aquele que desejo para a minha filha, e que ainda por cima está totalmente sintonizado com os valores constitucionais, não tenha lugar na televisão pública.
Já quem diz que não aceita que pessoas com determinados valores formem os seus filhos por via da televisão vive num equívoco: os programadores de televisão não substituem os pais. São os pais que decidem o que os seus filhos veem, com que idade veem e se precisam de acompanhamento para verem. Ninguém obriga os seus filhos a ver aquela série. O que eles querem é proibir os meus de a verem. Eles podem limitar o que os seus filhos veem, mas desejam limitar o que os meus veem. A razão porque querem proibir aquele episódio não é a necessidade de proteger os seus filhos – basta mudarem de canal –, é retirar do espaço público um ponto de vista de que discordam.
Resolvida a questão das crianças e adolescentes, que só é questão para quem quer que a televisão substitua os pais, o que quer dizer que se preocupa pouco com a educação dos filhos, resta o facto de aquilo passar na televisão pública. A televisão pública é um espaço plural, não transmite um olhar único sobre a sociedade. Transmitia os programas de José Hermano Saraiva, com olhar ultrapassado do ponto de vista científico e académico sobre a História. Transmite todas as semanas uma missa católica, apesar de o Estado ser laico. Transmite imensas coisas de que discordo. E devo recordar que, como eles, também pago impostos e financio a RTP. A fronteira é, para mim, a Constituição. Esta série respeita-a integralmente.
Não gosto do conceito de “cancel", pelo menos como tem sido adaptado para o confronto político e cultural. Não gostar dele não o torna ilegítimo. As pessoas têm o direito à indignação organizada. Essa é a contrapartida de leis liberais no que toca à liberdade de expressão. O que não suporto é sonsos. E tenho memória. A “cancel culture” sempre existiu. Foi ela que se mobilizou para impedir a exibição de "Je Vou Salue, Marie", de Godard, na Cinemateca; para censurar “A Última Ceia”, de Herman José; contra a transmissão do “Império dos Sentidos”, no canal 2; contra o cartoon de António em que o Papa aparecia com um preservativo no nariz; contra a aparição de Rui Tavares na telescola, por ser um historiador de esquerda; ou contra este episódio das “Destemidas”. Foi ela que tentou e continua a tentar impedir a chegada de outros mundos ao espaço público. E apesar do discurso instalado contra um “politicamente correto” irrelevante em Portugal, são os sectores ultraconservadores que têm revelado uma permanente vontade de calar aqueles de que discordam. Incluindo a sua História.
Dito isto, quero que fique claro: os valores não valem todos o mesmo. A tolerância não vale o mesmo que o ódio, a igualdade não vale o mesmo que a supremacia, a liberdade não vale o mesmo que a opressão, a misoginia, o racismo e a homofobia não valem o mesmo que os valores inscritos na nossa Constituição. Pelo menos para o Estado, para as suas escolas e para a sua televisão. Não se chama marxismo cultural. Chama-se democracia. Aquela que, ao contrário do que disse Bolsonaro, não permite que a maioria esmague as minorias.