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terça-feira, 7 de julho de 2020

TAP: matar o ator do ato inevitável

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/07/2020)

Na falsa indignação com o inevitável desfecho na TAP não conta apenas o ato. Também conta o ator. Pedro Nuno Santos contará sempre com menos tolerância mediática do que dirigentes do PCP ou do BE. Uma coisa é ter alguém mais à esquerda nos partidos da chamada esquerda radical. Outra é ter um socialista claramente situado à esquerda com ambições de liderança no PS.


escrevi sobre o controlo público da TAP e a minha posição não mudou. Ela podia ser, com esforço e se fizessem muita questão, ideológica. Num tempo em que os Estados perderam soberania monetária, têm pouco controlo das suas fronteiras comerciais e sobre o mercado de capitais e que o seu espaço de manobra nas políticas fiscais se reduz a pouco mais do que a possibilidade de baixar impostos às empresas, sobra a detenção de algumas empresas fundamentais. Isto não é ser contra a economia de mercado, é defender que o Estado deve ter instrumentos para ser um estratega e não apenas um regulador. Eu diria que a minha posição é mais moderada do que a dos que defendem que ao Estado cabe apenas ser árbitro, mas a moderação e o radicalismo depende sempre do lugar de onde se olha.

Esta seria a razão pela qual defenderia uma TAP pública. Não porque preste um serviço público, como os transportes urbanos ou ferroviários. Mas porque tem uma função económica que nos permite garantir alguns restos de soberania, não dependendo completamente da vontade de terceiros. É a mesma razão pela qual defendo, numa economia de mercado, que a nossa dimensão aconselha a pôr em mãos públicas não só monopólios naturais, como a REN, não só a exploração e a distribuição de bens, como a água e a energia, mas também alguns instrumentos estruturantes, como um banco público – a CGD, por exemplo. E recuso que a minha posição esteja mais toldada por qualquer preconceito ideológico do que aquela que acredita na tendência natural do mercado e da concorrência para o equilíbrio, desmentida diariamente pela realidade.

Mas, infelizmente, não foi por nada disto que levou à nacionalização da TAP e da Efacec – não distingo, no essencial, controlo maioritariamente público e nacionalização. Na TAP, foi porque a crise determinou que ou o Estado metia dinheiro na empresa sem qualquer controlo, ou a deixava falir ou a nacionalizava. E todos os que pensaram nas consequências dessa falência têm muitíssimo cuidado e não a defendem. Na Efacec foi porque o problema de um acionista poderia levar à falência de uma empresa produtiva, lucrativa e importante para o país.

Muitos dos que se juntaram ao clamor contra o dinheiro que vai ser injetado na TAP defenderam a inevitabilidade de o fazer no Novo Banco. Com a diferença que no primeiro caso isso ainda permite que o Estado controle o que é feito com esse dinheiro, no segundo, como sabem, não. Mas a coisa que mais me perturba é a quantidade de pessoas que, para não ter uma posição impopular, diz que a falência seria péssima e que a nacionalização é um escândalo. Assim é fácil. Ninguém minimamente responsável se atreve, depois de criticar a nacionalização, a defender a falência sabe quanto isso custaria à economia nacional. Para não dispersar, deixo para outro texto o que significaria a falência de uma empresa da dimensão e importância da TAP.

Na falsa indignação não conta apenas o ato. Também conta o ator. Com a cada vez mais habitual ausência de António Costa sempre que as coisas são mais difíceis, foi o ministro das Infraestruturas que teve de lidar publicamente com um dossier quer herdou. E Pedro Nuno Santos é da ala esquerda do PS. E contará sempre com menos tolerância dos poderes mediáticos do que dirigentes do PCP ou do BE. Uma coisa é ter alguém de esquerda nos partidos da chamada esquerda radical. Outra é ter um socialista claramente situado à esquerda com ambições de liderança no PS. Todo o consenso tem de se fazer fora do socialismo democrático e quem se atreva a tentar ressuscitá-lo será cilindrado no espaço mediático.

A ideia de que pode nascer um discurso político e económico alternativo ao que domina o centro-esquerda desde o inicio dos anos 90 deixa quem tem as chaves dos portões do que é razoável fora de si. A ponto de a nacionalização da TAP, que infelizmente nada tem de programático, ser intolerável. A ponto de preferirem ver a TAP falir, coisa que nem os empresários mais liberais deste país desejam, a dar razão a quem a nacionaliza A ponto de os mesmos que defenderam que se despejassem quantias exorbitantes na banca privada rasgarem as vestes contra a injeção de dinheiro público numa TAP pública.

Não há campus grátis

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 06/07/2020)

Daniel Oliveira

No imaginário da direita conservadora, as universidades estão, como nos anos 60, dominadas pela esquerda, prontas para formar exércitos de “antifas” e relativistas culturais que querem reescrever a História e nacionalizar a economia. Mas depois da peregrina tese do “marxismo cultural”, que só prova que já ninguém ensina Marx nas faculdades, há a realidade.

Há, como é evidente, cursos onde o pensamento de esquerda será dominante. Hoje, ao contrário do que acontecia no passado, talvez isso seja verdade em antropologia e em algumas áreas da História. Em geral, em cursos que ainda interessam pouco ao mercado. Mas no que lhe interessa, que é o que interessa hoje à política, a insinuação de tal domínio é até contraintuitiva. E isso é evidente nas faculdades de economia e gestão, as que mais determinam as grandes escolhas políticas.

O pensamento único e ortodoxo e a quase ausência do ensino de História do pensamento económico permitem que um aluno de economia chegue ao fim da licenciatura sem quase nunca ter ouvido falar noutras correntes que não a dominante. Os que conhecem Keynes, ficam pela interpretação que é feita pelo mainstream. De Marx, nem ouvem falar. A generalidade dos economistas é ignorante em relação ao pensamento económico e, por isso, ignorante em relação à História e, por isso, ignorante em relação à Economia.

E não apenas em relação ao passado, mas em relação ao que hoje mesmo desafia a ortodoxia económica. Uma ortodoxia que é lhes é vendida como a única abordagem científica à Economia. O resto é ideologia. Isto tem uma razão profunda: a liberdade académica foi capturada. E tem consequências: o Estado, a sociedade e as empresas foram limitadas na sua capacidade de fazer escolhas. O monolitismo e falta de pluralismo do pensamento económico é transposto para as instituições e para os media, afunilando o debate e limitando a democracia. E isto tanto acontece nas universidades privadas como nas públicas.

Não há qualquer diferença entre a esquerda e a direita na vontade de dominar a academia. Assistimos, em alguns sectores de algumas ciências sociais, a uma quase asfixia da dissensão académica. A aversão à divergência em estruturas fortemente hierarquizadas é transversal. A diferença, neste caso, é onde está o dinheiro. E a mercantilização da academia tornou esse no elemento mais determinante nos limites à liberdade e pluralismo académicos.

Nas poucas universidades públicas que não cederam a esta mercantilização – melhor seria dizer nos poucos cursos ou faculdades que, por não terem um produto apelativo para o mercado não o puderam fazer –, o poder do Estado para limitar a liberdade académica é praticamente nulo. Mesmo a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) segue, apesar de tudo, critérios mais transparentes, por via dos júris. Nas universidades onde o mercado dita as prioridades científicas o dinheiro determina grande parte das escolhas. E o dinheiro tem cor. Nenhum empresário está interessado em quem se dedica a estudar o sindicalismo ou alternativas que, de alguma forma, limitem o seu próprio poder. E é natural que não esteja.

NÃO SE MORDE A MÃO DE QUEM PAGA

Mesmo as universidades públicas transformaram-se num negócio, graças à “bondosa” ideia de integrar a “sociedade civil” (as empresas) nos seus conselhos e a uma filosofia de gestão totalmente privada – foi para isso mesmo que as fundações serviram.

O exemplo máximo e mais vanguardista deste espírito é Nova School of Business and Economics (Nova SBE) – sim, é uma universidade pública portuguesa de onde o português foi quase banido, porque assim dita a competição no mercado académico global. O seu campus, construído à beira da praia para atrair o turismo académico, foi quase integralmente pago por mecenas. E isso é apresentado como um exemplo engenhoso para que outras instituições académicas deviam olhar. Os mecenas viram salas com os seus nomes. Mas, lamentavelmente, o preço não é só alimentar o ego da família Soares dos Santos. Como diriam os neoliberais, não há campus grátis.

No ano passado surgiu até um escândalo por dois professores da Nova SBE terem feito, como tal, um estudo onde se queria demonstrar que a EDP não recebia rendas excessivas. Estudo que agora até foi usado na defesa judicial de António Mexia e colegas. Problema? A EDP, que foi quem encomendou o estudo, é, ela própria, mecenas da SBE. Estava posta em dúvida, de forma absolutamente legítima, a credibilidade e independência do estudo. Pode mesmo dizer-se que o seu valor é nulo e foi assim que foi visto por todos.

A COLUNISTA INCÓMODA

Na semana passada soubemos, através da “Sábado”, de outro episódio que, apesar de menos grave nas suas consequências, é mais revelador do que se passa naquela que é vista, por muitos, como o modelo a seguir pelas restantes instituições académicas. O Conselho de Catedráticos, primeiro, e o Conselho Restrito de Catedráticos e Associados, depois, mostraram incómodo por uma professora associada que escreve no “Público” assinar os seus artigos identificando-se como professora da Nova SBE. Mesmo que aleguem que o seu nome nunca foi referido, Susana Peralta é a única professora associada que escreve uma coluna regular e que assina, como muitos outros académicos de outras instituições, desta forma.

Apesar da hipocrisia geral, a conversa era evidentemente sobre ela. E o incómodo é especialmente estranho quando a pessoa que primeiro levantou a questão foi o vice-reitor Ferreira Machado, tendo ele próprio assinado um artigo no Observador, este mês, já depois da polémica reunião, com vice-reitor (“vice rector”, que ali ninguém tem cargos em português) da instituição. E ainda mais estranho quando a direção da faculdade enviou um mail aos docentes, em abril, pedindo para usarem, nos seus artigos de opinião, “identificação onde apareça Nova SBE” para que seja possível o “clipping fazer o tracking”.

UMA MARCA QUE SE VENDE

O receio, ao que parece, é que a “marca Nova SBE” seja colada às opiniões de Susana Peralta. Uma posição absurda, já que as instituições académicas devem pautar-se pelo pluralismo e todas as posições de todos os académicos são sempre suas e apenas suas (ou das equipas que as assinam). E, para quem escreve sobre Economia, a fronteira com a opinião é impossível de determinar. Sobretudo para quem, como Peralta, cita bastantes trabalhos científicos nos seus artigos.

Sempre que aparece um economista de uma instituição académica nos media está a transmitir a sua opinião sobre o tema que é inquirido coma base científica que o seu trabalho e formação garantem (espera-se). E isso não passou a ser menos verdade com Susana Peralta só porque ela tem um pensamento desalinhado do mainstream da instituição. E desalinhado, neste caso, é isto: não sendo uma economista heterodoxa (é uma economista perfeitamente inserida no paradigma neoclássico), Peralta é de esquerda. Mas muito mais grave e o que me parece ser realmente relevante neste caso: critica opções públicas que favorecem alguns dos mecenas da SBE. Como a EDP, a GALP ou o Novo Banco.

Foi o próprio diretor da instituição, que não alinhou nas críticas a Susana Peralta na tal reunião, que reconheceu a existência de telefonemas de “stakeholders” (termo de uma honestidade desconcertante, quando falamos de uma instituição pública) mostrando incómodo.

O temor em ver o nome de uma académica com a coragem de ser incómoda para os “stakeholders” associado ao da Nova SBE contrasta com a bonomia com que o professor catedrático da instituição e atual presidente do Conselho Científico, Miguel Ferreira, usou a mesmíssima assinatura para aparecer num anúncio do BPI (também ele mecenas da instituição), que garante não ser pago mas que na forma e no conteúdo se confunde com publicidade, promovendo empréstimos à habitação com taxa fixa. Ao professor não ocorreu que houvesse um problema ético em fazê-lo e explicou: “A Nova SBE considera que este tipo de colaboração está incluída na relação de parceria com as empresas. Porque elas contratam alunos, fazem estágios com alunos, fazem cursos vá, patrocinam conferências académicas...”

O diretor da instituição, Daniel Traça (que conheço e por quem tenho bastante estima pessoal, mas a vida de articulista é o que é), é administrador não-executivo do Santander (igualmente mecenas) e é escolhido pelo Conselho de Faculdade onde têm assento várias instituições empresariais, incluindo o seu presidente, Luís Amado, chairman da EDP.

Sobre esta promiscuidade, onde uma instituição académica do Estado confunde a cooperação com empresas com deveres contratuais pouco claros para a promoção de produtos dessas empresas, e todos os pormenores sobre este episódio e o seu historial, aconselho vivamente a leitura de dois excelentes textos de Luís Aguiar-Conraria e de Fernanda Câncio. Neles, assim como no trabalho de Bruno Faria Lopes (para assinantes), e nos tweets em que o jornalista deixou tudo ainda mais claro, encontrarão o essencial do factual deste caso.

O DINHEIRO CALA

O incómodo de alguns daqueles catedráticos foi ver o nome da instituição associado a alguma liberdade de pensamento face aos interesses económicos que pagaram o campus e garante rendimentos extra aos seus catedráticos (e não só). Podem queixar-se do Estado, mas ele nunca teria a capacidade de fazer chegar este incómodo de forma tão eficaz ou telefonar a diretores para tentar condicionar uma académica.

A verdade é que uma faculdade que aceita que aqueles que de alguma forma investiga lhe paguem as contas está condenada na sua liberdade científica. Dificilmente a SBE poderá fazer um estudo que ponha em causa as vantagens de continuar a dar tanto poder concorrencial a grandes distribuidores como a Jerónimo Martins ou a dizer o oposto do que disse no estudo encomendado sobre as rendas para a EDP. Um dos principais objetos de estudo da Economia, como é tratada na Nova SBE, é a forma como funcionam os mercados. Permitir que as maiores empresas paguem as contas implica um conflito de interesses.

Os constrangimentos impostos pela busca de financiamento não têm consequências apenas para a academia. Como se percebe, aliás, pela forma como os próprios responsáveis pela SBE olham para o seu poder e influência política (voltarei a este artigo de Owen Jones mais tarde). E é por isso que esta limitação à liberdade académica condena o saber que devia alimentar o poder público nas suas decisões. Condena o rigor da informação que é veiculada pela imprensa por especialistas destas instituições académicas. Condena a formação dos quadros que tomarão decisões no Estado e nas empresas. Condena toda a comunidade a um saber amputado por quem tem dinheiro para financiar um campus à beira mar. A não ser quando aparece uma carta fora do baralho.

Numa academia livre isso não seria problema, seria uma vantagem. O incómodo com os artigos de Susana Peralta é só a parte mais patética, menos relevante mas mais reveladora do ponto a que os limites impostos pela mercantilização das universidades públicas chegou. Porque o dinheiro é, neste tempo, o mais forte instrumento de censura e condicionamento.

A pandemia e a questão social

Posted: 06 Jul 2020 03:35 AM PDT

«Trabalho há mais de vinte anos no contexto territorial onde se verificam os maiores níveis de pobreza e exclusão social da cidade do Porto. Conheço bem o assistencialismo e a caridade religiosa. São estratégias e instrumentos importantes, sobretudo em contextos de crise e emergência social. Valorizo a solidariedade e o voluntariado, mas como refere o professor José Reis, da Universidade de Coimbra, é na ação coletiva e na esfera pública que se travam as lutas decisivas.

No Porto há centenas de crianças que não têm computador nem acesso à internet, famílias que ficaram com o frigorífico vazio porque os filhos deixaram de almoçar na escola, utentes que esperam mais de dois meses para realizarem atendimento presencial nos serviços da Segurança Social. A Rede Local de Intervenção Social que apoia os carenciados residentes na zona oriental da cidade acolheu mais alguns milhares de processos de apoio por estes meses, mas não viu transferidos para a IPSS os meios correspondentes por parte da Segurança Social para reforçar a sua equipa técnica.

Convém explicar que muito antes da tragédia do vírus da covid-19 invadir as nossas vidas já os pobres sofriam na pele a incerteza, a humilhação, a vergonha, o risco, a privação, a dependência, a necessidade de se fazerem à vida através da economia informal ou com estratégias de sobrevivência desviantes para garantirem um prato de comida na mesa. As políticas socias da direita (e o PS nunca foi de esquerda) sempre foram de mínimos: salário mínimo, rendimento mínimo, prestações sociais de mínimos. Dizem os construtores de opinião de serviço que o país não cria riqueza suficiente para distribuir mais. Os recursos são escassos. Queria só recordar que para o Novo Banco a última tranche de dinheiro público foi de 580 milhões de euros. Para suportar as rendas com as Parcerias Público-Privadas rodoviárias o Estado vai gastar este ano 1500 milhões de euros.

Estes recursos financeiros permitiriam financiar um conjunto de medidas de apoio extraordinário para quem perdeu rendimentos e não tem acesso a proteção social, como os trabalhadores independentes e informais, um subsídio de desemprego temporário de subsistência, facilitar as regras de acesso ao subsídio social de desemprego, aumentar e alargar o abono de família, pagar integralmente do salário a quem está em layoff, entre outras medidas tão urgentes e necessárias como a criação de emprego, a valorização dos salários e o investimento nos serviços públicos.

As políticas sociais do capitalismo destruíram a integração económica dos cidadãos através da falta de emprego, flexibilizaram as leis laborais, privatizaram bens e serviços essenciais (água, eletricidade, transportes, telecomunicações, habitação) desindustrializaram o país, venderam as principais empresas a grupos económicos estrangeiros, amarraram Portugal aos tratados orçamentais e às metas cegas do défice de Bruxelas, faliram o estado social. E agora, com a maior das hipocrisias, alguém acorda do pesadelo e, por causa da crise pandémica, grita bem alto.

Precisamos de outro modelo de crescimento económico, que respeite a natureza, os direitos e a dignidade do ser humano. Precisamos de adotar outros modos de vida, mais ecológicos e menos consumistas. Precisamos de voltar à normalidade, mas como diz Frei Bento Domingues, a vida normal já demonstrou as velhas e novas desigualdades vergonhosas. Não acredito, sinceramente, que esta crise seja uma verdadeira oportunidade para operacionalizar políticas que favoreçam mais coesão, justiça e igualdade social.

Nas crises cíclicas do capitalismo já sabemos que quem paga a conta e sofre com as consequências são sempre os mais vulneráveis, os mais desfavorecidos, aqueles que dispõem de menos recursos económicos, culturais, escolares e simbólicos. Mas também é verdade, como afirma D. José Ornelas, líder da Conferência Episcopal Portuguesa, que uma sociedade que não é justa e não garante dignidade aos seus cidadãos, ou gera escravos ou bandidos. A globalização económica vai ter capacidade de se adaptar, vai aproveitar todas as vulnerabilidades causadas pela pandemia para explorar mais, oprimir mais, lucrar mais. Não sei se vai ser com vigilância eletrónica, com teletrabalho ou sugando os recursos do Estado, mas sei que o esclarecimento, a informação, a consciencialização e a politização dos pobres é o único caminho de resistência indestrutível.»

José António Pinto

Pedro Nuno vs Medina: um insustentável peso nos ombros

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Vítor Matos

Vítor Matos

Editor de política

07 JULHO 2020

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Bom dia!
“Odiar não é um sentimento bom”, escreveu o ministro. Sempre é melhor do que a ameaça do antigo colega que há uns anos prometeu aos críticos uns “salutares tabefes” no Facebook e foi corrido do Governo a tempo de prevenir mais disparates. Apesar de ontem Pedro Nuno Santos ter recusado falar de aviação - "sobre a TAP direi zero. Tenho falado sobre a TAP todos os dias" - passou o dia a divertir-se e a fazer comentários no Twitter por causa da TAP. “Há alguém irritante do que Pedro Nuno Santos?”; perguntava uma Beatriz. E respondia o ministro: “Mas o que é que eu fiz? :(“. A um tal de Joe mais agressivo - “nunca odiei tanto um ministro como odeio o Pedro Nuno Santos, p*** que o pariu” - eis que o membro do nosso Governo lhe escreveu, magnânimo, aquela frase maravilhosa: odiar não. Mas houve mais comentários ministeriais: pode ler outras pérolas do mesmo calibre nesta recolha da Liliana Valente, inclusive uma troca de mimos com João Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal, mas o tema é demasiado dramático para brincadeiras.
Esta crise leva a tantas crises que todas engrossam o caudal da Grande Crise. Tudo começa na pandemia e desagua na pandemia, na crise de doença, morte, medo, falência, desemprego. A TAP será, possivelmente, o nosso caso de efeito económico mais dramático a seguir às mortes, aos traumas e ao desemprego. Pedro Nuno Santos pode ter piada no Twitter, pode até ter uma elevação provocatória que desarma críticos anónimos, mas no Governo agora “a música é outra”. O ministro fez o que tinha de ser feito? Mas o que tinha de ser feito vai ter custos enormes, incalculáveis, e vamos passar anos a avaliar o que aconteceu na semana passada, vamos passar anos a avaliar os moldes da venda aos privados do Governo Passos/Portas e a analisar o processo de reversão do Governo Costa/’geringonça’ e a nacionalização negociada que começa agora - será uma aposta segura dizer que haverá comissões de inquérito. Pedro Nuno Santo será jovial nas redes sociais, mas arrastará tudo o que acontecer na TAP pelo futuro do país e pela sua carreira política - e tanto mais pesado será o fardo nos seus ombros quanto mais subir, ou seja, se chegar lá.
Se de um lado temos a semana difícil de um candidato à sucessão no PS, do outro assistimos a uma péssima semana do delfim do líder socialista na câmara de Lisboa. Fernando Medina não cometeu o pecadilho das redes sociais como o seu "rival", mas não evitou o pecado da gula pela imprensa estrangeira. Medina não tem acertado. Depois de o PS o ter isolado nas críticas à gestão do surto de Covid-19 em Lisboa - quando ele tinha razão - e de ter sido corrigido quanto à inexistência de testes aos fins-de-semana, eis que o presidente da câmara de Lisboa decidiu escrever um artigo no "The Independent", um jornal inglês, sobre um tema cujo público é exclusivamente português. Uma trapalhada. Ora se Medina achava que o jornalismo de referência da velha "albion" era uma vantagem perante a piolheira cá da terra, enganou-se. Os ingleses sabem lá quem é o Medina e abusaram no título, cuja ideia era esta: Lisboa ia acabar com os Airbnb e substituí-los por arrendamento para trabalhadores. Ora o tema principal do texto era exatamente que Lisboa ia tentar inverter a natureza dos Airbnb (não eram para acabar, como é evidente) e convertê-los e arrendamento de maior duração.
O sarilho acabou com um assessor a telefonar para as redações, incluindo para o "The Independent", que corrigiu o título da peça: "After coronavirus, Lisbon is replacing some Airbnb and turning short term holiday rentals into homes for key workers". Escrever em estrangeiro para leitores que querem lá saber, mostra cá em casa a aflição do presidente da câmara a um ano de eleições. Depois de o turismo massificado ter esvaziado o centro de Lisboa, depois de ter reagido tarde quando decidiu criar áreas de contenção ao alojamento local em setembro do ano passado - já havia bairros vazios de moradores tradicionais - agora a inversão nas políticas. Não há turistas, regressem os moradores. É a decisão lógica, pois é. É o que deve ser feito (agora), claro que é, mas com o turismo a borbulhar a opção dificilmente seria essa, mesmo para bem da cidade. Tal como Pedro Nuno carregará o peso da TAP aos ombros, Medina terá no esvaziamento da cidade em nome de um el dourado que parecia não acabar a sua nemesis. Vai ter de batalhar em 2021.
Ora foi Fernando Medina que desencadeou, e muito bem, uma destas cadeias de crise, quando denunciou as falhas no combate à pandemia, que depois levaram a duas manchetes do Expresso: primeiro sobre a falta de técnicos e depois sobre as discrepâncias nos números de infetados. Ontem, Duarte Cordeiro, secretário de Estado com o pelouro da pandemia e Lisboa - e ex-vice de Medina em Lisboa -, deu mais um contributo do Governo e do PS para deixar Fernando Medina sozinho nas críticas, ao dizer que “as decisões tomadas foram no sentido certo” e rápidas. O Ministério da Saúde anunciou que a Direção-Geral da Saúde vai ter uma plataforma única, em vez de três, para juntar as bases de dados nacionais e locais, para não haver mais discrepâncias e Graça Freitas disse que os números estão “o mais perto possível da realidade”, e que nada tem a ver com “esconder casos”. No primeiro discurso sobre a pandemia, o Presidente da República tinha garantido que "ninguém vai mentir a ninguém", mas os dados não têm andado certos. O tempo dirá se Marcelo Rebelo de Sousa terá de divergir em matéria de pandemia, já que se colocou como penhor da verdade, se os números continuarem a falhar.
Noutra área de tutela partilhada entre Pedro Nuno Santos e Fernando Medina (os transportes em Lisboa) as operadoras estão disponíveis para ajudar no desfasamento de horários entre trabalhadores e estudantes para baixar o risco de propagação do vírus. Mas depois de o ministro da Educação ter dito ao Expresso na entrevista publicada sábado que pouco mudará no funcionamento das escolas para além do uso de máscara, parece difícil esse objetivo de evitar um provável aumento de passageiros à hora de ponta, que pressione a lotação máxima de dois terços dos transportes públicos. Registe-se para futuro esta frase de Tiago Brandão Rodrigues na mesma entrevista: “Estou convencido que haverá poucos sítios mais seguros do que as escolas”. É o que veremos: proclamações destas são pouco avisadas.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

De surto em surto até à vacina final (e a fadiga do desconfinamento)

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João Pedro Barros

João Pedro Barros

Coordenador

06 JULHO 2020

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Bom dia,
O Instituto Politécnico da Guarda decidiu suspender os exames presenciais devido à confirmação de infeção em pelo menos oito estudantes – no total há 12 jovens infetados, que se terão contagiado numa festa de aniversário. O Centro Escolar de Paços de Ferreira e uma fábrica na mesma cidade foram encerrados para "interromper as cadeias de transmissão". O número de óbitos relacionados com o surto em Reguengos de Monsaraz, no distrito de Évora, subiu para 12. Há 38 casos positivos nas Caldas da Rainha, num lar e num infantário, sendo cinco deles relativos a crianças. Cerca de 70 brasileiros que residem na aldeia de Santo Estevão, em Benavente, estão confinados, após cinco casos positivos.
Não quero com a enumeração destes casos alarmar o leitor, mas apenas sublinhar aquele que cada vez mais parece ser o novo normal da covid-19: surtos que vão surgindo aqui e ali, com origens muitas vezes difíceis de detetar, e aos quais as autoridades nem sempre conseguem responder com rapidez. E, para além destes casos relativamente delimitados, há um problema muito maior: a situação em Lisboa e Vale do Tejo.
Este domingo, em Portugal, registaram-se mais 328 casos de infeção e nove vítimas mortais, revelou a Direção-Geral da Saúde, que entretanto suspendeu a divulgação do número de infetados por concelho, após o Expresso ter feito manchete, no sábado, com a informação de que não estão a ser contabilizados todos os casos, havendo laboratórios, universidades e médicos que não registam os positivos.
Na região da capital assinalaram-se 254 novos casos, ou seja, 77% do total do país. Hoje – dia em que os números são habitualmente mais baixos, devido ao menor número de testes realizados no fim de semana – logo se verá, mas parece claro que ainda não se atingiu um caminho descendente que nos permita, por exemplo, ter o tal corredor aéreo com o Reino Unido, que traga os turistas e descanse os emigrantes portugueses que lá residem.
Aliás, a Madeira ainda não desistiu de argumentar que os britânicos que pisarem o arquipélago devem ficar dispensados da tal quarentena obrigatória no regresso à pátria: o presidente da Câmara do Funchal escreveu uma carta a Boris Johnson e Marcelo diz que as dúvidas serão “dissipadas” em breve. O Presidente da República passou o fim de semana na Madeira e fala mesmo da região como um “exemplo”.
A propósito, o Reino Unido não foi definitivamente o melhor exemplo de desconfinamento este fim de semana, em que pares e pubs puderam finalmente reabrir. Apesar da desvalorização por parte das autoridades e do próprio ministro da Saúde britânico, Matt Hancock, fotos como a que publicamos neste artigo mostram que, para um grande número de pessoas, as regras de distanciamento social e de uso de máscaras foram às malvas, talvez antes do primeiro pint.
Podemos falar em fadiga do desconfinamento, mas é difícil encontrar razões que justifiquem comportamentos generalizados de desprezo pelas recomendações. Que atire a primeira pedra quem respeitou TODAS as regras ao longo de quatro meses – e não devemos precipitar-nos a estigmatizar quem contrai o vírus –, mas um surto com origem em situações deste tipo pode pôr em risco toda uma comunidade e a economia de um país. Até porque ainda sabemos pouco sobre este SARS-CoV-2: tão pouco que especialistas de 32 países pedem à OMS para repensar as diretivas de proteção, porque acreditam que, afinal, o vírus também se transmite pelo ar.
Pede-se responsabilidade e sublinhe-se que não é só em Portugal que há novos surtos e medidas de reconfinamento. Na Inglaterra, em Leicester, procuram-se as causas de uma segunda vaga; na Catalunha, a região de Segrià (com mais de 200 mil pessoas) pode ficar confinada mais de duas semanas; na Galiza, e em vésperas de eleições regionais, uma região da província de Lugo, com cerca de 70 mil pessoas, está isolada; em Melbourne, na Austrália, há milhares de pessoas em confinamento; Marrocos registou ontem um novo recorde diário de infeções; a Grécia fechou as fronteiras aos cidadãos sérvios, após um aumento de casos no país dos Balcãs.
Este parece ser o novo normal: o vírus não vai desaparecer tão cedo e é provável que, até que esteja amplamente disponível uma vacina (ou um antivírico), os surtos de covid-19 vão desparecer da região ou país x para reaparecerem acolá, na localidade y. Que essa viagem não ocorra pelo menos por mera negligência.