(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 06/07/2020)
Daniel Oliveira
No imaginário da direita conservadora, as universidades estão, como nos anos 60, dominadas pela esquerda, prontas para formar exércitos de “antifas” e relativistas culturais que querem reescrever a História e nacionalizar a economia. Mas depois da peregrina tese do “marxismo cultural”, que só prova que já ninguém ensina Marx nas faculdades, há a realidade.
Há, como é evidente, cursos onde o pensamento de esquerda será dominante. Hoje, ao contrário do que acontecia no passado, talvez isso seja verdade em antropologia e em algumas áreas da História. Em geral, em cursos que ainda interessam pouco ao mercado. Mas no que lhe interessa, que é o que interessa hoje à política, a insinuação de tal domínio é até contraintuitiva. E isso é evidente nas faculdades de economia e gestão, as que mais determinam as grandes escolhas políticas.
O pensamento único e ortodoxo e a quase ausência do ensino de História do pensamento económico permitem que um aluno de economia chegue ao fim da licenciatura sem quase nunca ter ouvido falar noutras correntes que não a dominante. Os que conhecem Keynes, ficam pela interpretação que é feita pelo mainstream. De Marx, nem ouvem falar. A generalidade dos economistas é ignorante em relação ao pensamento económico e, por isso, ignorante em relação à História e, por isso, ignorante em relação à Economia.
E não apenas em relação ao passado, mas em relação ao que hoje mesmo desafia a ortodoxia económica. Uma ortodoxia que é lhes é vendida como a única abordagem científica à Economia. O resto é ideologia. Isto tem uma razão profunda: a liberdade académica foi capturada. E tem consequências: o Estado, a sociedade e as empresas foram limitadas na sua capacidade de fazer escolhas. O monolitismo e falta de pluralismo do pensamento económico é transposto para as instituições e para os media, afunilando o debate e limitando a democracia. E isto tanto acontece nas universidades privadas como nas públicas.
Não há qualquer diferença entre a esquerda e a direita na vontade de dominar a academia. Assistimos, em alguns sectores de algumas ciências sociais, a uma quase asfixia da dissensão académica. A aversão à divergência em estruturas fortemente hierarquizadas é transversal. A diferença, neste caso, é onde está o dinheiro. E a mercantilização da academia tornou esse no elemento mais determinante nos limites à liberdade e pluralismo académicos.
Nas poucas universidades públicas que não cederam a esta mercantilização – melhor seria dizer nos poucos cursos ou faculdades que, por não terem um produto apelativo para o mercado não o puderam fazer –, o poder do Estado para limitar a liberdade académica é praticamente nulo. Mesmo a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) segue, apesar de tudo, critérios mais transparentes, por via dos júris. Nas universidades onde o mercado dita as prioridades científicas o dinheiro determina grande parte das escolhas. E o dinheiro tem cor. Nenhum empresário está interessado em quem se dedica a estudar o sindicalismo ou alternativas que, de alguma forma, limitem o seu próprio poder. E é natural que não esteja.
NÃO SE MORDE A MÃO DE QUEM PAGA
Mesmo as universidades públicas transformaram-se num negócio, graças à “bondosa” ideia de integrar a “sociedade civil” (as empresas) nos seus conselhos e a uma filosofia de gestão totalmente privada – foi para isso mesmo que as fundações serviram.
O exemplo máximo e mais vanguardista deste espírito é Nova School of Business and Economics (Nova SBE) – sim, é uma universidade pública portuguesa de onde o português foi quase banido, porque assim dita a competição no mercado académico global. O seu campus, construído à beira da praia para atrair o turismo académico, foi quase integralmente pago por mecenas. E isso é apresentado como um exemplo engenhoso para que outras instituições académicas deviam olhar. Os mecenas viram salas com os seus nomes. Mas, lamentavelmente, o preço não é só alimentar o ego da família Soares dos Santos. Como diriam os neoliberais, não há campus grátis.
No ano passado surgiu até um escândalo por dois professores da Nova SBE terem feito, como tal, um estudo onde se queria demonstrar que a EDP não recebia rendas excessivas. Estudo que agora até foi usado na defesa judicial de António Mexia e colegas. Problema? A EDP, que foi quem encomendou o estudo, é, ela própria, mecenas da SBE. Estava posta em dúvida, de forma absolutamente legítima, a credibilidade e independência do estudo. Pode mesmo dizer-se que o seu valor é nulo e foi assim que foi visto por todos.
A COLUNISTA INCÓMODA
Na semana passada soubemos, através da “Sábado”, de outro episódio que, apesar de menos grave nas suas consequências, é mais revelador do que se passa naquela que é vista, por muitos, como o modelo a seguir pelas restantes instituições académicas. O Conselho de Catedráticos, primeiro, e o Conselho Restrito de Catedráticos e Associados, depois, mostraram incómodo por uma professora associada que escreve no “Público” assinar os seus artigos identificando-se como professora da Nova SBE. Mesmo que aleguem que o seu nome nunca foi referido, Susana Peralta é a única professora associada que escreve uma coluna regular e que assina, como muitos outros académicos de outras instituições, desta forma.
Apesar da hipocrisia geral, a conversa era evidentemente sobre ela. E o incómodo é especialmente estranho quando a pessoa que primeiro levantou a questão foi o vice-reitor Ferreira Machado, tendo ele próprio assinado um artigo no Observador, este mês, já depois da polémica reunião, com vice-reitor (“vice rector”, que ali ninguém tem cargos em português) da instituição. E ainda mais estranho quando a direção da faculdade enviou um mail aos docentes, em abril, pedindo para usarem, nos seus artigos de opinião, “identificação onde apareça Nova SBE” para que seja possível o “clipping fazer o tracking”.
UMA MARCA QUE SE VENDE
O receio, ao que parece, é que a “marca Nova SBE” seja colada às opiniões de Susana Peralta. Uma posição absurda, já que as instituições académicas devem pautar-se pelo pluralismo e todas as posições de todos os académicos são sempre suas e apenas suas (ou das equipas que as assinam). E, para quem escreve sobre Economia, a fronteira com a opinião é impossível de determinar. Sobretudo para quem, como Peralta, cita bastantes trabalhos científicos nos seus artigos.
Sempre que aparece um economista de uma instituição académica nos media está a transmitir a sua opinião sobre o tema que é inquirido coma base científica que o seu trabalho e formação garantem (espera-se). E isso não passou a ser menos verdade com Susana Peralta só porque ela tem um pensamento desalinhado do mainstream da instituição. E desalinhado, neste caso, é isto: não sendo uma economista heterodoxa (é uma economista perfeitamente inserida no paradigma neoclássico), Peralta é de esquerda. Mas muito mais grave e o que me parece ser realmente relevante neste caso: critica opções públicas que favorecem alguns dos mecenas da SBE. Como a EDP, a GALP ou o Novo Banco.
Foi o próprio diretor da instituição, que não alinhou nas críticas a Susana Peralta na tal reunião, que reconheceu a existência de telefonemas de “stakeholders” (termo de uma honestidade desconcertante, quando falamos de uma instituição pública) mostrando incómodo.
O temor em ver o nome de uma académica com a coragem de ser incómoda para os “stakeholders” associado ao da Nova SBE contrasta com a bonomia com que o professor catedrático da instituição e atual presidente do Conselho Científico, Miguel Ferreira, usou a mesmíssima assinatura para aparecer num anúncio do BPI (também ele mecenas da instituição), que garante não ser pago mas que na forma e no conteúdo se confunde com publicidade, promovendo empréstimos à habitação com taxa fixa. Ao professor não ocorreu que houvesse um problema ético em fazê-lo e explicou: “A Nova SBE considera que este tipo de colaboração está incluída na relação de parceria com as empresas. Porque elas contratam alunos, fazem estágios com alunos, fazem cursos vá, patrocinam conferências académicas...”
O diretor da instituição, Daniel Traça (que conheço e por quem tenho bastante estima pessoal, mas a vida de articulista é o que é), é administrador não-executivo do Santander (igualmente mecenas) e é escolhido pelo Conselho de Faculdade onde têm assento várias instituições empresariais, incluindo o seu presidente, Luís Amado, chairman da EDP.
Sobre esta promiscuidade, onde uma instituição académica do Estado confunde a cooperação com empresas com deveres contratuais pouco claros para a promoção de produtos dessas empresas, e todos os pormenores sobre este episódio e o seu historial, aconselho vivamente a leitura de dois excelentes textos de Luís Aguiar-Conraria e de Fernanda Câncio. Neles, assim como no trabalho de Bruno Faria Lopes (para assinantes), e nos tweets em que o jornalista deixou tudo ainda mais claro, encontrarão o essencial do factual deste caso.
O DINHEIRO CALA
O incómodo de alguns daqueles catedráticos foi ver o nome da instituição associado a alguma liberdade de pensamento face aos interesses económicos que pagaram o campus e garante rendimentos extra aos seus catedráticos (e não só). Podem queixar-se do Estado, mas ele nunca teria a capacidade de fazer chegar este incómodo de forma tão eficaz ou telefonar a diretores para tentar condicionar uma académica.
A verdade é que uma faculdade que aceita que aqueles que de alguma forma investiga lhe paguem as contas está condenada na sua liberdade científica. Dificilmente a SBE poderá fazer um estudo que ponha em causa as vantagens de continuar a dar tanto poder concorrencial a grandes distribuidores como a Jerónimo Martins ou a dizer o oposto do que disse no estudo encomendado sobre as rendas para a EDP. Um dos principais objetos de estudo da Economia, como é tratada na Nova SBE, é a forma como funcionam os mercados. Permitir que as maiores empresas paguem as contas implica um conflito de interesses.
Os constrangimentos impostos pela busca de financiamento não têm consequências apenas para a academia. Como se percebe, aliás, pela forma como os próprios responsáveis pela SBE olham para o seu poder e influência política (voltarei a este artigo de Owen Jones mais tarde). E é por isso que esta limitação à liberdade académica condena o saber que devia alimentar o poder público nas suas decisões. Condena o rigor da informação que é veiculada pela imprensa por especialistas destas instituições académicas. Condena a formação dos quadros que tomarão decisões no Estado e nas empresas. Condena toda a comunidade a um saber amputado por quem tem dinheiro para financiar um campus à beira mar. A não ser quando aparece uma carta fora do baralho.
Numa academia livre isso não seria problema, seria uma vantagem. O incómodo com os artigos de Susana Peralta é só a parte mais patética, menos relevante mas mais reveladora do ponto a que os limites impostos pela mercantilização das universidades públicas chegou. Porque o dinheiro é, neste tempo, o mais forte instrumento de censura e condicionamento.