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quarta-feira, 8 de julho de 2020

Uma tourada de elite

Curto

Filipe Garcia

Filipe Garcia

08 JULHO 2020

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Há quem a veja como um bailado, uma exibição de elegância e coragem, quem elogie a garra e beleza dos animais. Do outro lado, fora das praças de touros, há quem considere o espetáculo bárbaro, violento, digno de tempos em que a crueldade com animais mais não era que piada. Por cá, a tauromaquia divide opiniões, aquece ânimos e esta terça-feira, nas palavras da social-democrata Fernanda Velez, transformou o Parlamento numa “verdadeira tourada”.
Em discussão não estava a proibição do toureio, apenas o fim do seu financiamento público. Ainda assim, do lado de PAN, BE e PEV, gritou-se pelos direitos dos animais, do outro lamentaram-se preconceitos quanto a uma manifestação que dizem ser tradição no país, assinalaram-se as penalizações em vigor - do IVA a 23% à falta de apoio do Ministério da Cultura - e sentenciaram-se as propostas.
Se os ânimos exaltados motivaram comparações com o ambiente das praças, para a votação desta quinta-feira ficou reservada outra semelhança. Não haverá cavaleiros em jogo, tão pouco bandarilhas ou trajes coloridos, mas tal como nas touradas o final está previamente definido: o touro acaba no chão, as propostas chumbam. Como os espetáculos, são melhores os debates a que não se conhece o desfecho.

Uma questão de responsabilidade

Posted: 07 Jul 2020 03:32 AM PDT

«A resposta inicial do Governo à crise sanitária gerou um consenso político raramente visto, mas perfeitamente justificado tendo em conta a natureza e gravidade da situação.

Não espanta, no entanto, que à medida que as crises económica e social se agravam surjam importantes divergências sobre a dimensão e direção das medidas de recuperação. Como se impede uma explosão de pobreza e fome? Como se fortalecem os serviços públicos essenciais? Que lições se tiram da vulnerabilidade causada pela precariedade laboral e o que se faz com essas lições? Como se cria emprego e em que setores? Para onde se dirige o investimento público?

A resposta de cada força política a estas questões vai marcar o debate do Orçamento para 2021, que será apresentado dentro de três meses. Nesse debate, toda a responsabilidade democrática será pouca. O país pagaria caro no futuro se, em outubro, soluções fortes cedessem lugar a consensos falsos.

O Orçamento Suplementar de 2020, por outro lado, serviu para financiar as medidas excecionais e de emergência já tomadas. Sem reabrir ou refazer todo o Orçamento de 2020, aprovado em fevereiro, o Suplementar cumpriu três propósitos relevantes: i) autorizou a Segurança Social a gastar mais 2600 milhões de euros em apoios extraordinários e de emergência; ii) tão ou mais importante: fez uma transferência extraordinária para a Segurança Social de forma a que os apoios de hoje não prejudiquem as pensões futuras; e iii) reforçou o SNS em 500 milhões.

Foi por estas razões que o Bloco cedo anunciou a sua viabilização, mesmo considerando as suas grandes insuficiências. No final do processo de especialidade, essas razões e essas insuficiências mantinham-se, apesar de alguns avanços conseguidos pelos partidos da Esquerda.

É certo que bastariam outros para viabilizar este diploma. Mas o Bloco vota com o seu voto - e não com o dos outros. Votar contra este Orçamento Suplementar seria recusar ao país, num contexto excecional, o urgente financiamento de medidas de emergência, mesmo sendo elas insuficientes. Mas que não se engane o PS. Esta não foi a primeira volta para o Orçamento do Estado para 2021. Esse, para ser viabilizado à Esquerda, tem de responder à crise pela Esquerda. É esse o nosso mandato, e também a nossa responsabilidade.»

Mariana Mortágua

terça-feira, 7 de julho de 2020

TAP: matar o ator do ato inevitável

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/07/2020)

Na falsa indignação com o inevitável desfecho na TAP não conta apenas o ato. Também conta o ator. Pedro Nuno Santos contará sempre com menos tolerância mediática do que dirigentes do PCP ou do BE. Uma coisa é ter alguém mais à esquerda nos partidos da chamada esquerda radical. Outra é ter um socialista claramente situado à esquerda com ambições de liderança no PS.


escrevi sobre o controlo público da TAP e a minha posição não mudou. Ela podia ser, com esforço e se fizessem muita questão, ideológica. Num tempo em que os Estados perderam soberania monetária, têm pouco controlo das suas fronteiras comerciais e sobre o mercado de capitais e que o seu espaço de manobra nas políticas fiscais se reduz a pouco mais do que a possibilidade de baixar impostos às empresas, sobra a detenção de algumas empresas fundamentais. Isto não é ser contra a economia de mercado, é defender que o Estado deve ter instrumentos para ser um estratega e não apenas um regulador. Eu diria que a minha posição é mais moderada do que a dos que defendem que ao Estado cabe apenas ser árbitro, mas a moderação e o radicalismo depende sempre do lugar de onde se olha.

Esta seria a razão pela qual defenderia uma TAP pública. Não porque preste um serviço público, como os transportes urbanos ou ferroviários. Mas porque tem uma função económica que nos permite garantir alguns restos de soberania, não dependendo completamente da vontade de terceiros. É a mesma razão pela qual defendo, numa economia de mercado, que a nossa dimensão aconselha a pôr em mãos públicas não só monopólios naturais, como a REN, não só a exploração e a distribuição de bens, como a água e a energia, mas também alguns instrumentos estruturantes, como um banco público – a CGD, por exemplo. E recuso que a minha posição esteja mais toldada por qualquer preconceito ideológico do que aquela que acredita na tendência natural do mercado e da concorrência para o equilíbrio, desmentida diariamente pela realidade.

Mas, infelizmente, não foi por nada disto que levou à nacionalização da TAP e da Efacec – não distingo, no essencial, controlo maioritariamente público e nacionalização. Na TAP, foi porque a crise determinou que ou o Estado metia dinheiro na empresa sem qualquer controlo, ou a deixava falir ou a nacionalizava. E todos os que pensaram nas consequências dessa falência têm muitíssimo cuidado e não a defendem. Na Efacec foi porque o problema de um acionista poderia levar à falência de uma empresa produtiva, lucrativa e importante para o país.

Muitos dos que se juntaram ao clamor contra o dinheiro que vai ser injetado na TAP defenderam a inevitabilidade de o fazer no Novo Banco. Com a diferença que no primeiro caso isso ainda permite que o Estado controle o que é feito com esse dinheiro, no segundo, como sabem, não. Mas a coisa que mais me perturba é a quantidade de pessoas que, para não ter uma posição impopular, diz que a falência seria péssima e que a nacionalização é um escândalo. Assim é fácil. Ninguém minimamente responsável se atreve, depois de criticar a nacionalização, a defender a falência sabe quanto isso custaria à economia nacional. Para não dispersar, deixo para outro texto o que significaria a falência de uma empresa da dimensão e importância da TAP.

Na falsa indignação não conta apenas o ato. Também conta o ator. Com a cada vez mais habitual ausência de António Costa sempre que as coisas são mais difíceis, foi o ministro das Infraestruturas que teve de lidar publicamente com um dossier quer herdou. E Pedro Nuno Santos é da ala esquerda do PS. E contará sempre com menos tolerância dos poderes mediáticos do que dirigentes do PCP ou do BE. Uma coisa é ter alguém de esquerda nos partidos da chamada esquerda radical. Outra é ter um socialista claramente situado à esquerda com ambições de liderança no PS. Todo o consenso tem de se fazer fora do socialismo democrático e quem se atreva a tentar ressuscitá-lo será cilindrado no espaço mediático.

A ideia de que pode nascer um discurso político e económico alternativo ao que domina o centro-esquerda desde o inicio dos anos 90 deixa quem tem as chaves dos portões do que é razoável fora de si. A ponto de a nacionalização da TAP, que infelizmente nada tem de programático, ser intolerável. A ponto de preferirem ver a TAP falir, coisa que nem os empresários mais liberais deste país desejam, a dar razão a quem a nacionaliza A ponto de os mesmos que defenderam que se despejassem quantias exorbitantes na banca privada rasgarem as vestes contra a injeção de dinheiro público numa TAP pública.

Não há campus grátis

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 06/07/2020)

Daniel Oliveira

No imaginário da direita conservadora, as universidades estão, como nos anos 60, dominadas pela esquerda, prontas para formar exércitos de “antifas” e relativistas culturais que querem reescrever a História e nacionalizar a economia. Mas depois da peregrina tese do “marxismo cultural”, que só prova que já ninguém ensina Marx nas faculdades, há a realidade.

Há, como é evidente, cursos onde o pensamento de esquerda será dominante. Hoje, ao contrário do que acontecia no passado, talvez isso seja verdade em antropologia e em algumas áreas da História. Em geral, em cursos que ainda interessam pouco ao mercado. Mas no que lhe interessa, que é o que interessa hoje à política, a insinuação de tal domínio é até contraintuitiva. E isso é evidente nas faculdades de economia e gestão, as que mais determinam as grandes escolhas políticas.

O pensamento único e ortodoxo e a quase ausência do ensino de História do pensamento económico permitem que um aluno de economia chegue ao fim da licenciatura sem quase nunca ter ouvido falar noutras correntes que não a dominante. Os que conhecem Keynes, ficam pela interpretação que é feita pelo mainstream. De Marx, nem ouvem falar. A generalidade dos economistas é ignorante em relação ao pensamento económico e, por isso, ignorante em relação à História e, por isso, ignorante em relação à Economia.

E não apenas em relação ao passado, mas em relação ao que hoje mesmo desafia a ortodoxia económica. Uma ortodoxia que é lhes é vendida como a única abordagem científica à Economia. O resto é ideologia. Isto tem uma razão profunda: a liberdade académica foi capturada. E tem consequências: o Estado, a sociedade e as empresas foram limitadas na sua capacidade de fazer escolhas. O monolitismo e falta de pluralismo do pensamento económico é transposto para as instituições e para os media, afunilando o debate e limitando a democracia. E isto tanto acontece nas universidades privadas como nas públicas.

Não há qualquer diferença entre a esquerda e a direita na vontade de dominar a academia. Assistimos, em alguns sectores de algumas ciências sociais, a uma quase asfixia da dissensão académica. A aversão à divergência em estruturas fortemente hierarquizadas é transversal. A diferença, neste caso, é onde está o dinheiro. E a mercantilização da academia tornou esse no elemento mais determinante nos limites à liberdade e pluralismo académicos.

Nas poucas universidades públicas que não cederam a esta mercantilização – melhor seria dizer nos poucos cursos ou faculdades que, por não terem um produto apelativo para o mercado não o puderam fazer –, o poder do Estado para limitar a liberdade académica é praticamente nulo. Mesmo a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) segue, apesar de tudo, critérios mais transparentes, por via dos júris. Nas universidades onde o mercado dita as prioridades científicas o dinheiro determina grande parte das escolhas. E o dinheiro tem cor. Nenhum empresário está interessado em quem se dedica a estudar o sindicalismo ou alternativas que, de alguma forma, limitem o seu próprio poder. E é natural que não esteja.

NÃO SE MORDE A MÃO DE QUEM PAGA

Mesmo as universidades públicas transformaram-se num negócio, graças à “bondosa” ideia de integrar a “sociedade civil” (as empresas) nos seus conselhos e a uma filosofia de gestão totalmente privada – foi para isso mesmo que as fundações serviram.

O exemplo máximo e mais vanguardista deste espírito é Nova School of Business and Economics (Nova SBE) – sim, é uma universidade pública portuguesa de onde o português foi quase banido, porque assim dita a competição no mercado académico global. O seu campus, construído à beira da praia para atrair o turismo académico, foi quase integralmente pago por mecenas. E isso é apresentado como um exemplo engenhoso para que outras instituições académicas deviam olhar. Os mecenas viram salas com os seus nomes. Mas, lamentavelmente, o preço não é só alimentar o ego da família Soares dos Santos. Como diriam os neoliberais, não há campus grátis.

No ano passado surgiu até um escândalo por dois professores da Nova SBE terem feito, como tal, um estudo onde se queria demonstrar que a EDP não recebia rendas excessivas. Estudo que agora até foi usado na defesa judicial de António Mexia e colegas. Problema? A EDP, que foi quem encomendou o estudo, é, ela própria, mecenas da SBE. Estava posta em dúvida, de forma absolutamente legítima, a credibilidade e independência do estudo. Pode mesmo dizer-se que o seu valor é nulo e foi assim que foi visto por todos.

A COLUNISTA INCÓMODA

Na semana passada soubemos, através da “Sábado”, de outro episódio que, apesar de menos grave nas suas consequências, é mais revelador do que se passa naquela que é vista, por muitos, como o modelo a seguir pelas restantes instituições académicas. O Conselho de Catedráticos, primeiro, e o Conselho Restrito de Catedráticos e Associados, depois, mostraram incómodo por uma professora associada que escreve no “Público” assinar os seus artigos identificando-se como professora da Nova SBE. Mesmo que aleguem que o seu nome nunca foi referido, Susana Peralta é a única professora associada que escreve uma coluna regular e que assina, como muitos outros académicos de outras instituições, desta forma.

Apesar da hipocrisia geral, a conversa era evidentemente sobre ela. E o incómodo é especialmente estranho quando a pessoa que primeiro levantou a questão foi o vice-reitor Ferreira Machado, tendo ele próprio assinado um artigo no Observador, este mês, já depois da polémica reunião, com vice-reitor (“vice rector”, que ali ninguém tem cargos em português) da instituição. E ainda mais estranho quando a direção da faculdade enviou um mail aos docentes, em abril, pedindo para usarem, nos seus artigos de opinião, “identificação onde apareça Nova SBE” para que seja possível o “clipping fazer o tracking”.

UMA MARCA QUE SE VENDE

O receio, ao que parece, é que a “marca Nova SBE” seja colada às opiniões de Susana Peralta. Uma posição absurda, já que as instituições académicas devem pautar-se pelo pluralismo e todas as posições de todos os académicos são sempre suas e apenas suas (ou das equipas que as assinam). E, para quem escreve sobre Economia, a fronteira com a opinião é impossível de determinar. Sobretudo para quem, como Peralta, cita bastantes trabalhos científicos nos seus artigos.

Sempre que aparece um economista de uma instituição académica nos media está a transmitir a sua opinião sobre o tema que é inquirido coma base científica que o seu trabalho e formação garantem (espera-se). E isso não passou a ser menos verdade com Susana Peralta só porque ela tem um pensamento desalinhado do mainstream da instituição. E desalinhado, neste caso, é isto: não sendo uma economista heterodoxa (é uma economista perfeitamente inserida no paradigma neoclássico), Peralta é de esquerda. Mas muito mais grave e o que me parece ser realmente relevante neste caso: critica opções públicas que favorecem alguns dos mecenas da SBE. Como a EDP, a GALP ou o Novo Banco.

Foi o próprio diretor da instituição, que não alinhou nas críticas a Susana Peralta na tal reunião, que reconheceu a existência de telefonemas de “stakeholders” (termo de uma honestidade desconcertante, quando falamos de uma instituição pública) mostrando incómodo.

O temor em ver o nome de uma académica com a coragem de ser incómoda para os “stakeholders” associado ao da Nova SBE contrasta com a bonomia com que o professor catedrático da instituição e atual presidente do Conselho Científico, Miguel Ferreira, usou a mesmíssima assinatura para aparecer num anúncio do BPI (também ele mecenas da instituição), que garante não ser pago mas que na forma e no conteúdo se confunde com publicidade, promovendo empréstimos à habitação com taxa fixa. Ao professor não ocorreu que houvesse um problema ético em fazê-lo e explicou: “A Nova SBE considera que este tipo de colaboração está incluída na relação de parceria com as empresas. Porque elas contratam alunos, fazem estágios com alunos, fazem cursos vá, patrocinam conferências académicas...”

O diretor da instituição, Daniel Traça (que conheço e por quem tenho bastante estima pessoal, mas a vida de articulista é o que é), é administrador não-executivo do Santander (igualmente mecenas) e é escolhido pelo Conselho de Faculdade onde têm assento várias instituições empresariais, incluindo o seu presidente, Luís Amado, chairman da EDP.

Sobre esta promiscuidade, onde uma instituição académica do Estado confunde a cooperação com empresas com deveres contratuais pouco claros para a promoção de produtos dessas empresas, e todos os pormenores sobre este episódio e o seu historial, aconselho vivamente a leitura de dois excelentes textos de Luís Aguiar-Conraria e de Fernanda Câncio. Neles, assim como no trabalho de Bruno Faria Lopes (para assinantes), e nos tweets em que o jornalista deixou tudo ainda mais claro, encontrarão o essencial do factual deste caso.

O DINHEIRO CALA

O incómodo de alguns daqueles catedráticos foi ver o nome da instituição associado a alguma liberdade de pensamento face aos interesses económicos que pagaram o campus e garante rendimentos extra aos seus catedráticos (e não só). Podem queixar-se do Estado, mas ele nunca teria a capacidade de fazer chegar este incómodo de forma tão eficaz ou telefonar a diretores para tentar condicionar uma académica.

A verdade é que uma faculdade que aceita que aqueles que de alguma forma investiga lhe paguem as contas está condenada na sua liberdade científica. Dificilmente a SBE poderá fazer um estudo que ponha em causa as vantagens de continuar a dar tanto poder concorrencial a grandes distribuidores como a Jerónimo Martins ou a dizer o oposto do que disse no estudo encomendado sobre as rendas para a EDP. Um dos principais objetos de estudo da Economia, como é tratada na Nova SBE, é a forma como funcionam os mercados. Permitir que as maiores empresas paguem as contas implica um conflito de interesses.

Os constrangimentos impostos pela busca de financiamento não têm consequências apenas para a academia. Como se percebe, aliás, pela forma como os próprios responsáveis pela SBE olham para o seu poder e influência política (voltarei a este artigo de Owen Jones mais tarde). E é por isso que esta limitação à liberdade académica condena o saber que devia alimentar o poder público nas suas decisões. Condena o rigor da informação que é veiculada pela imprensa por especialistas destas instituições académicas. Condena a formação dos quadros que tomarão decisões no Estado e nas empresas. Condena toda a comunidade a um saber amputado por quem tem dinheiro para financiar um campus à beira mar. A não ser quando aparece uma carta fora do baralho.

Numa academia livre isso não seria problema, seria uma vantagem. O incómodo com os artigos de Susana Peralta é só a parte mais patética, menos relevante mas mais reveladora do ponto a que os limites impostos pela mercantilização das universidades públicas chegou. Porque o dinheiro é, neste tempo, o mais forte instrumento de censura e condicionamento.

A pandemia e a questão social

Posted: 06 Jul 2020 03:35 AM PDT

«Trabalho há mais de vinte anos no contexto territorial onde se verificam os maiores níveis de pobreza e exclusão social da cidade do Porto. Conheço bem o assistencialismo e a caridade religiosa. São estratégias e instrumentos importantes, sobretudo em contextos de crise e emergência social. Valorizo a solidariedade e o voluntariado, mas como refere o professor José Reis, da Universidade de Coimbra, é na ação coletiva e na esfera pública que se travam as lutas decisivas.

No Porto há centenas de crianças que não têm computador nem acesso à internet, famílias que ficaram com o frigorífico vazio porque os filhos deixaram de almoçar na escola, utentes que esperam mais de dois meses para realizarem atendimento presencial nos serviços da Segurança Social. A Rede Local de Intervenção Social que apoia os carenciados residentes na zona oriental da cidade acolheu mais alguns milhares de processos de apoio por estes meses, mas não viu transferidos para a IPSS os meios correspondentes por parte da Segurança Social para reforçar a sua equipa técnica.

Convém explicar que muito antes da tragédia do vírus da covid-19 invadir as nossas vidas já os pobres sofriam na pele a incerteza, a humilhação, a vergonha, o risco, a privação, a dependência, a necessidade de se fazerem à vida através da economia informal ou com estratégias de sobrevivência desviantes para garantirem um prato de comida na mesa. As políticas socias da direita (e o PS nunca foi de esquerda) sempre foram de mínimos: salário mínimo, rendimento mínimo, prestações sociais de mínimos. Dizem os construtores de opinião de serviço que o país não cria riqueza suficiente para distribuir mais. Os recursos são escassos. Queria só recordar que para o Novo Banco a última tranche de dinheiro público foi de 580 milhões de euros. Para suportar as rendas com as Parcerias Público-Privadas rodoviárias o Estado vai gastar este ano 1500 milhões de euros.

Estes recursos financeiros permitiriam financiar um conjunto de medidas de apoio extraordinário para quem perdeu rendimentos e não tem acesso a proteção social, como os trabalhadores independentes e informais, um subsídio de desemprego temporário de subsistência, facilitar as regras de acesso ao subsídio social de desemprego, aumentar e alargar o abono de família, pagar integralmente do salário a quem está em layoff, entre outras medidas tão urgentes e necessárias como a criação de emprego, a valorização dos salários e o investimento nos serviços públicos.

As políticas sociais do capitalismo destruíram a integração económica dos cidadãos através da falta de emprego, flexibilizaram as leis laborais, privatizaram bens e serviços essenciais (água, eletricidade, transportes, telecomunicações, habitação) desindustrializaram o país, venderam as principais empresas a grupos económicos estrangeiros, amarraram Portugal aos tratados orçamentais e às metas cegas do défice de Bruxelas, faliram o estado social. E agora, com a maior das hipocrisias, alguém acorda do pesadelo e, por causa da crise pandémica, grita bem alto.

Precisamos de outro modelo de crescimento económico, que respeite a natureza, os direitos e a dignidade do ser humano. Precisamos de adotar outros modos de vida, mais ecológicos e menos consumistas. Precisamos de voltar à normalidade, mas como diz Frei Bento Domingues, a vida normal já demonstrou as velhas e novas desigualdades vergonhosas. Não acredito, sinceramente, que esta crise seja uma verdadeira oportunidade para operacionalizar políticas que favoreçam mais coesão, justiça e igualdade social.

Nas crises cíclicas do capitalismo já sabemos que quem paga a conta e sofre com as consequências são sempre os mais vulneráveis, os mais desfavorecidos, aqueles que dispõem de menos recursos económicos, culturais, escolares e simbólicos. Mas também é verdade, como afirma D. José Ornelas, líder da Conferência Episcopal Portuguesa, que uma sociedade que não é justa e não garante dignidade aos seus cidadãos, ou gera escravos ou bandidos. A globalização económica vai ter capacidade de se adaptar, vai aproveitar todas as vulnerabilidades causadas pela pandemia para explorar mais, oprimir mais, lucrar mais. Não sei se vai ser com vigilância eletrónica, com teletrabalho ou sugando os recursos do Estado, mas sei que o esclarecimento, a informação, a consciencialização e a politização dos pobres é o único caminho de resistência indestrutível.»

José António Pinto