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segunda-feira, 13 de julho de 2020

A hora dos ‘emprecários’

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 11/07/2020)

José Soeiro

A greve dos entregadores no Brasil é um sinal novo e importante. Os trabalhadores de plataformas como a UberEats, a Glovo, a iFood ou a Rappi têm sido essenciais durante a pandemia. O volume de pedidos não deixou de aumentar neste período – mas subiu também, para o triplo, o número de trabalhadores que procuraram nas plataformas digitais algum rendimento, num contexto em que outras atividades estavam paralisadas e em que a maioria dos brasileiros, por não ter “carteira assinada”, não tem qualquer forma de proteção social.

Uma investigação divulgada recentemente dava um retrato do setor naquele país: 75% trabalha exclusivamente para estas plataformas e está conectado a duas aplicações distintas ao mesmo tempo. 77% dizem que trabalham mais de 10 horas diárias, quase metade 12 horas. Não têm contrato ou vínculo à plataforma, os rendimentos são altamente variáveis em função dos pedidos e dos rankings, com uma percentagem significativa a ir para a multinacional que é proprietária da aplicação, não têm infraestruturas básicas de descanso ou para irem ao quarto de banho, não têm proteção social, os acidentes correm por sua conta e ficam entregues a si mesmos em caso de doença, incluindo a covid. A larga maioria usa moto, mas mais de um quarto move-se de bicicleta. Metade declara ter sofrido já um acidente durante o trabalho. Se reivindicam qualquer coisa, a retaliação é simples: são bloqueados na aplicação, ficam “em branco”, sem que lhes sejam encaminhados pedidos para o seu telemóvel. No Brasil, os entregadores são maioritariamente homens, abaixo dos 34 anos e negros.

Foi contra esta desproteção radical que milhares deles encheram as ruas de algumas das principais cidades brasileiras no início deste mês. Paulo Galo, 31 anos, porta-voz do Movimento dos Entregadores Antifascistas, já presente em 11 estados, faz o balanço da maior manifestação de sempre de estafetas: “Tinha muito companheiro ainda iludido na ideia de ser empreendedor e tal, e sem entender que a luta é pelos nossos direitos”. E acrescenta: “Nunca vi a rua de São Paulo tão linda, olhar nos olhos dos meus companheiros e reconhecer que ali não estavam empreendedores e sim trabalhadores”.

Também em Portugal, o universo das plataformas não tem parado de crescer. Segundo um estudo da Comissão Europeia, envolve já cerca de 10% da população empregada. Não admira, por isso, que se esbocem tentativas de organização sindical, propostas para criar uma aplicação pública de entregas com padrões laborais decentes e sem multinacionais (como foi aprovado na Câmara de Lisboa) ou que haja quem tente lançar a semente de uma possível cooperativa de estafetas.

Qualquer uma destas iniciativas procura reconstruir direitos e formas de representação junto da que é, provavelmente, a modalidade mais radical de precarização que hoje existe: a que passa por converter patrões em clientes, por converter empresas em meros intermediários e por converter trabalhadores em empresas. Este movimento de fundo, há muito identificado pelo jurista Jorge Leite quando falava na “deslaboralização das relações de trabalho”, é uma distopia selvagem – mas está aí. Sem precisar de acabar formalmente com os contratos de trabalho, com a proteção no desemprego ou na doença, sem precisar de proibir os sindicatos ou de acabar com o direito à greve, o que este processo faz é tentar esvaziar qualquer uma dessas categorias, retirando delas, cada vez mais, uma parte significativa da classe que vive do trabalho.

São centenas de milhares os “emprecários” em Portugal. Há mais de meio milhão de trabalhadores independentes, e mais algumas centenas de milhares de empresários em nome individual. Estamos a falar praticamente de um quarto da força de trabalho. Serão verdadeiramente “empresários” e “independentes” todas estas pessoas?

No setor da cultura ou nas entregas de comida, na prestação de cuidados ou em profissões técnicas, muitas pessoas foram, de facto, empurradas para a condição de empresários de si próprios para que as suas relações laborais fossem enquadradas pelo direito dos negócios, subtraindo-lhes assim todos os direitos associados a um contrato. São precários-empresa.

Esta realidade dos 'emprecários' (aparentes empresários na realidade precários), ficou escancarada com a pandemia. Entre abril e junho de 2020, houve 198.999 trabalhadores independentes que pediram o apoio extraordinário da segurança social por terem ficado sem atividade. Houve 25.108 membros de órgãos estatutários (às vezes de associações criadas para se empregarem a si próprios, como acontece na cultura) que o fizeram também. À luz das leis que temos, estes cerca de 200 mil desempregados não tinham acesso a subsídio de desemprego (porque supostamente não têm sequer empregador) e não cabiam sequer no mais que residual “subsídio por cessação de atividade”.

A falácia do “transforma-te numa empresa que és tu” parece ter sido posta a nu nos últimos meses. Na maior parte das vezes, é mesmo só um engodo que nos desprotege. De facto, é como trabalhadores que muitas destas pessoas se reconhecem – vejam o que se passa na Casa da Música e em Serralves, mas também nas plataformas - e não há medidas extraordinárias de proteção social que resolvam a raiz do problema, que é a falsificação de milhares de relações laborais em relações de prestação de serviço.

Também por cá, esta realidade dos 'emprecários', dos falsos independentes e das plataformas mexe. A pandemia veio expô-la como nunca. Mais tarde ou mais cedo, também por cá acabará por explodir.

domingo, 12 de julho de 2020

Para onde fugiram as pessoas desempregadas?

Posted: 11 Jul 2020 03:39 AM PDT

«A publicação pelo INE da estatística de desemprego referente a maio suscitou alguma perturbação. Não percebo porquê. A metodologia estatística que é seguida pelo INE, que corresponde à norma europeia do Eurostat a que é obrigado, permite estas conclusões espantosas, como registar uma diminuição do desemprego quando há mais pessoas sem trabalho, naturalizando o apagamento de pessoas que passam a ser ignoradas no cálculo. Não costuma ser um desvio tão exuberante, soa mal, mas ao longo de vários anos esta maquilhagem tem sido a prática comum. Agora, isto deu uma monumental bronca.

Menos desempregados e mais gente sem trabalho

A informação do INE anuncia que em maio o desemprego desceu dos 6,3% do mês anterior para 5,5%. São menos 51 mil desempregados do que em abril, menos 80 mil do que em janeiro. Se a conta fosse esta, a pandemia estaria a ser uma boa oportunidade para o emprego. Ora, ao mesmo tempo, o INE tem o cuidado de explicar que, havendo menos desemprego estatístico, há também menos 105 mil pessoas empregadas de abril para maio. É uma impressionante queda do emprego num mês.

É bem conhecida a razão para esta discrepância. O desemprego estatístico ignora o desemprego real. O que assinala é quem, estando desempregado, cumpre também condições restritivas que fabricam a cosmética institucional: a pessoa tem de estar disponível para qualquer salário e tem de ter feito diligências formais nas últimas três semanas (tinha de ir ao centro de emprego, que estava fechado em tempo de confinamento). Se não for o caso, então, mesmo sendo desempregada, será classificada como “inativa” e retirada da taxa de desemprego. E é aí que se mede a tragédia social: de janeiro a maio temos menos 249 mil pessoas na população ativa, e não é porque tenham emigrado ou se tenham reformado — são mesmo os novos desempregados da covid.

Conhecendo esta armadilha, os técnicos do INE tiveram o cuidado de assinalar uma outra estatística, mais reveladora, a da “subutilização” do trabalho, que inclui tanto desempregados como “inativados” e que subiu em maio para 14,2% da população em idade de trabalhar. São já cerca de 750 mil pessoas. Entre os jovens, um ou dois em cada cinco estará sem trabalho, e, para muitos, essa crise prolonga-se desde há dez anos, nunca conheceram outra situação senão o biscate ocasional e a margem de uma sociedade que os ignora.

Esta metodologia é penosa. Transforma a estatística, que devia ser um instrumento para medir a realidade, num biombo. E não tem limite. No caso brasileiro, só 49,5%, menos de metade das pessoas em idade de trabalhar, tem agora emprego ou ocupação informal, e em três meses 7,8 milhões perderam o trabalho. Afirma a CNN Brasil que são 75 milhões os que se limitam a sobreviver como podem. Alcançou-se um marco histórico, mas a estatística oficial afirma que o desemprego anda pelos 12,6%.

O emprego é o problema do século XXI

Numa comunicação feita esta semana numa conferência da OIT, o primeiro-ministro afirmou que “esta crise pôs em evidência as fraturas profundas da nossa sociedade e o preço que pagamos pela excessiva desregulação de tudo aquilo a que nos habituámos a chamar de mercado de trabalho”. Tem razão. Os mais de 200 mil novos desempregados em Portugal, ainda antes do choque do outono, demonstram como a combinação tóxica de turistificação, falta de investimento e facilitação dos despedimentos ajudou a agravar a primeira vaga da recessão.

Apesar deste reconhecimento, o facto é que Costa se opôs a modificações da “excessiva desregulação”. No mandato anterior, não só recusou alterar as normas do tempo da troika que reduziam as indemnizações por despedimento como aumentou mesmo o tempo dos contratos verbais ou o período experimental, promovendo assim a precarização, a tal “fratura profunda da nossa sociedade”. A radicalidade desta barragem em defesa da lei laboral desreguladora levou-o mesmo a enterrar a ‘geringonça’ e a recusar um novo acordo depois das eleições em que não obteve maioria absoluta. Se agora o Governo se inclina para uma nova lei, isso seria uma novidade. Talvez não seja de confundir o fumo com o fogo.

Voltar atrás a todo o vapor

Disto não se ocupa a OCDE, que esta semana, assinalando um desemprego médio de 8,4% nas economias mais desenvolvidas, veio recomendar aos governos que retirem as medidas de apoio a salá¬rios. Stefano Scarpetta, o diretor da OCDE para o emprego, lamenta que, “em três meses, a covid tenha apagado dez anos de ganhos no emprego”. Mas acrescenta logo, na sua novilíngua tecnocrática, que “temos de permitir a mobilidade da força de trabalho. Algumas empresas não são viáveis a curto e médio prazo. Temos de permitir aos trabalhadores que se desloquem para novos empregos”.

O desemprego é uma excursão dos trabalhadores para “novos empregos”. Não temos de nos admirar se a norma estatística favorece este conto de fadas.»

Francisco Louçã

Não, não vai correr bem

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 11/07/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Chego a ter pena do nosso MNE, Augusto Santos Silva: o esforço a que ele se vota, por dever de ofício, para argumentar que as decisões de outros países de nos colocarem na lista negra turística são injustas e infundamentadas e não obedecem a um “critério uniforme” é tempo perdido e fracasso garantido. Sim, há um critério uniforme, que é o definido pelo organismo europeu que se ocupa das doenças infectocontagiosas, baseado no número de casos actuais por 100 mil habitantes — onde ocupamos o segundo lugar entre todos os países europeus com mais casos, só atrás da Suécia, e sem dar mostras de conseguir baixar, antes pelo contrário, esse número que derrota todas as nossas invocadas razões. E não, não adianta argumentar com o nosso “exemplar desempenho” quando, numa fase inicial, os portugueses se fecharam todos em casa e a DGS nada mais teve de fazer do que verificar que a curva estava achatada. Continuar a insistir nisso torna-se tão ridículo quanto a argumentação de que somos um grande povo, porque há 500 anos navegámos mundo fora e fizemos o que fizemos. Aliás, toda a retórica que se ouve dos nossos governantes, secundados por muitos outros parceiros políticos, agentes económicos e “especialistas” que têm medo de parecer pouco patriotas, faz-me lembrar tristemente os tempos em que éramos dizimados nos Festivais da Eurovisão, não porque só para lá enviássemos músicas indigentes mas porque, segundo juravam os “patriotas”, os outros votavam contra nós por razões políticas. O mesmo tipo de argumentos que também levava o Estado Novo a garantir, contra o mundo inteiro, que não tínhamos colónias mas sim “províncias ultramarinas”, que não tínhamos colonialismo mas sim “regimes autónomos” e que o massacre de Wiriyamu nunca ocorrera porque Wiriyamu não existia. É triste assistirmos agora a um Governo democrático lançar mão do mesmo tipo de argumentos para, em desespero de causa, tentar salvar uma época turística destruída pelo desastre das políticas públicas de saú­de. Tiradas patéticas e antigas de séculos, como a “traição do velho aliado inglês”, a “deslealdade do vizinho espanhol” ou a “hipocrisia dos belgas”, são, aliás, contraproducentes, na medida em que fazem passar a mensagem de que tentamos desesperadamente esconder um problema que não conseguimos ultrapassar. Porque não é aceitável que, no sexto mês de pandemia, com tudo o que já se sabe, uma só pessoa visite um lar em Reguengos, contamine outras 150 e mate 15. Fora tudo o resto que, desde que soou a ordem para desconfinar e descontrair, mostrou à saciedade que nada estava pensado, planeado, organizado e que quem de direito continuou durante dois meses tranquilamente sentado em cima de uma curva que se mantinha eternamente achatada em número de casos e de mortes, sem estranhar que todas as dos outros países fossem caindo até próximo do zero.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 Se bem percebi (já nada é certo...), David Neeleman comprou a TAP por 10 milhões e injectou lá mais 200 milhões através da Azul. Conta-se à boca cheia, porém, que ele terá recuperado esses 200 milhões vendendo a posição da TAP como compradora de aviões, de que desistiu em favor de outros mais baratos. Mas o ministro Pedro Nuno Santos contradiz o rumor, dizendo que Neeleman “foi interrogado sobre o assunto e negou” — garantia aparentemente suficiente para o ministro. Como quer que seja, esses 200 milhões, que se supunha que o Governo quereria que fossem transformados em capital, como seria normal, parece que se mantiveram como suprimento de um sócio, isto é, como dívida da TAP, que vence juros e que terá de ser paga, no prazo de vencimento — e, estranhamente, isto foi apresentado como uma vitória negocial do Governo. Já quanto aos 10 milhões que efectivamente Neeleman meteu para comprar a TAP, hoje valiam zero, como capital de uma empresa tão desvalorizada que vai precisar de 1200 milhões dos contribuintes só para começo de conversa. Mas para ele se ir embora, porque o ministro assim queria, o Estado comprou-lhe a posição de 10 milhões por 50 — e a Azul desapareceu do horizonte socie­tário. Porém, assegura o ministro, vai manter-se como parceira da TAP, pois tal é o “legado” que David Neeleman deixa à empresa. “A TAP precisa da Azul”, reconhece Pedro Nuno Santos, rendendo-se à evidência de que essa ligação está hoje entre as mais rentáveis da companhia portuguesa. Mas “a Azul também precisa da TAP”, garante, certo de que o americano não desfará essa colaboração transatlântica. Oxalá! Oxalá o homem que vendeu por 50 uma posição de 10 numa empresa levada à ruína e que terá conseguido sair com um crédito de 200 milhões em vez de uma posição accionista equivalente numa empresa cujo futuro mais provável continua a ser a ruína esqueça que foi publicamente destratado e ameaçado pelo ministro e esteja a fim de honrar o tal “legado” de que aquele fala. Porque, contratualmente, como é de tradição nas negociações em que é preciso defender os contribuintes, nada ficou escrito. Estava eu a meditar nisto, bem como no simbolismo das fotografias do ministro posando em frente à miniatura de um avião da TAP (a fotografia clássica dos donos da empresa ou dos presidentes executivos que se imaginam donos dela e que bem caracterizou toda a actuação de Pedro Nuno Santos neste dossiê), quando, logo no dia seguinte, sou surpreendido por nova afirmação grandiloquente do ministro. Deslumbrado por ter comprado por 1,5 milhões (!) 58 carruagens de comboios à espanhola Renfe — a que há a acrescentar um custo previsto de 8,5 milhões em restauro (aceito apostas para um mínimo do dobro) —, Pedro Nuno Santos exclamou, e pareceu-me que falava a sério: “Estamos prontos para ensinar outros governos como se fazem bons negócios.” Logo depois, ficou a saber-se que a CP pediu mais 60 milhões ao Governo, para “dinheiro de bolso”. E a SATA 163 milhões — quase tanto como os prejuízos acumulados, com grande escândalo, pela TAP nos dois anos antes da covid. Vá somando e acredite que tudo isto vai acabar bem. Aviões com a nossa bandeira no ar, novos comboios em terra e bons negócios em carteira. Como poderá acabar mal?

Sobre o pano de fundo de uma economia privada em ruínas e mais dependente do que nunca dos dinheiros públicos, vemos um Estado disposto a gastar sem contenção o dinheiro que não tem e que há-de vir da Europa. Mas só quem acredita que o dinheiro nasce debaixo das pedras é que pode pensar que isto vai acabar bem.

3 Efacec: “Empresa estratégica” para o país, centenária, verdadeira escola de engenharia de ponta, inovadora, altamente rentável, exportando 90% da produção. Cobiçada por meio mundo, acabou nas mãos da “engenheira” Isabel dos Santos e do seu dinheiro feito “por mérito próprio”. Recebida na empresa com pompa, circunstância e curvatura de espinhas, não arriscou, porém, um euro seu, que melhor investido foi no Dubai. Tornou-se dona da Efacec exclusivamente com dinheiros arregimentados junto da banca portuguesa. Mas, mal caiu em desgraça e viu os seus bens arrestados às ordens de Luanda, a mesma banca fechou as portas à Efacec e dispôs-se a estrangulá-la, se necessário até à morte, com os seus 2500 trabalhadores. Os bancos viraram costas, os seus outros accionistas de referência, nomes grandes da indústria nacional — a Têxtil Manuel Gonçalves e o Grupo Melo —, deixaram correr e, dos “cinco ou seis” compradores que nos dizem já estar na calha, nem um se mostrou. Restou o Estado. Agora, somos assim também donos de uma metalomecânica. Com o aplauso unânime e jamais visto dos trabalhadores, dos sindicatos e dos outros accionistas privados. Cuja única preocupação é que o Governo sucumba à tentação da venda aos tais compradores que nos dizem fazer fila à porta e deixe a empresa e os trabalhadores fora da única protecção garantida: a do dinheiro dos contribuintes. Vai acabar bem.

4 Novo Banco: Sertório foi um general romano dissidente, que se virou contra os seus, à frente de um exército de camponeses e pastores da Lusitânia. Ficou na nossa história tal como Wellington, um general estrangeiro que nos ajudou a combater o invasor. O Fundo Sertorius, organizado pelo Novo Banco, teve o objectivo inverso: vender património imobiliário nosso, constituído por créditos herdados do BES, a quem desse mais, preferencialmente estrangeiros, que era quem tinha dinheiro para tal. O pacote Sertorius do NB foi vendido 70% abaixo do seu valor, com perdas assumidas de 300 milhões de euros. Não foi caso único desde que o NB foi vendido aos texanos da Lone Star: são justamente os créditos declarados incobráveis e vendidos a preços de saldo que têm permitido ao NB todos os anos reclamar ao Estado o pagamento das prestações de capital contingente assumidas pelo Fundo de Resolução até um montante de 3,9 mil milhões (no mínimo e não ocorrendo situações excepcionais, que vão ocorrer, claro). O que há de novo agora, segundo noticiou o “Público”, é que o Sertorius foi vendido a um grupo a que esteve ligado um administrador actual do NB. Tamanha é a reiterada incapacidade ou incompetência da gestão do NB em valorizar os créditos herdados e tão generosos são os preços a que se desfaz deles que a possibilidade de interesses ocultos em todo o processo é sempre uma hipótese a considerar. Verdade ou não, certo é que o NB tem sido um maná para uns quantos felizardos e uma ruína para os contribuintes. A continuar, sem vergonha alguma, enquanto os deixarem.

5 Entusiasmada com a experiência de teletrabalho dos funcionários públicos durante os três meses de confinamento — cuja falta ninguém notou —, a ministra da pasta resolveu que, de futuro, até um terço deles poderia continuar assim, sem prejuízo algum para o serviço. Porém, após a primeira reunião com os sindicatos, o porta-voz de um destes apressou-se a declarar que teletrabalho sim, mas só com aumentos salariais e progressões na carreira garantidas, pois a poupança nas despesas com transportes e alimentações eram engolidas por outras como electricidade e água, além de “outros consumíveis”, resultantes de ficarem em casa. Pressurosa, a ministra já declarou que as progressões na carreira, além das progressões automáticas, são sagradas, pois que “austeridade”, como lhe chamou, nunca mais. Entretanto, abolida a regra de uma entrada por duas saídas, o Estado — declarado agora pelos teóricos como mais indispensável do que nunca — prepara-se para contratar sem contar, para a Educação, para a Saúde, para os bombeiros, para a apanha do abacate, para onde pedirem. A pagar com o dinheiro que há-de vir da Europa. E tudo isto há-de acabar bem. Só pode.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sábado, 11 de julho de 2020

O SNS e as parcerias

Posted: 10 Jul 2020 03:41 AM PDT

«Desde há longos anos que as entidades privadas da saúde no nosso país, apesar de estarem sempre a apregoar as “virtudes” do mercado, têm vivido em grande medida dos dinheiros públicos.

Desde 2008, se não fossem os acordos de algumas dessas entidades com a ADSE e outros subsistemas de saúde de origem pública, diversos hospitais privados já teriam cessado a sua actividade.

Por outro lado, o aparecimento de clínicas como “cogumelos” está directamente relacionado com a forte diminuição da capacidade de resposta dos serviços públicos de saúde nessas zonas.

Desde 1990 até há cerca de um ano atrás esteve em vigor uma lei (n.º 48/90) publicada por um governo presidido pelo dr. Aníbal Cavaco Silva que estabelecia que o Estado apoiava o desenvolvimento do sector privado da saúde em concorrência com o sector público, a atribuição de incentivos à criação de unidades privadas e a fixação de incentivos ao estabelecimento de seguros de saúde.

Este enorme descaramento parasitário dos dinheiros públicos e de favorecimento dos negócios privados foi inaceitavelmente tolerado ou incentivado por alguns quadrantes político-partidários. Com o brutal embate provocado pela pandemia em curso, as unidades privadas eclipsaram-se, deixando o SNS (Serviço Nacional de Saúde) quase sozinho nesta luta violenta em defesa da vida dos cidadãos do nosso país.

Importa desde já sublinhar que ao contrário de outros países europeus, no nosso país houve, desde o início deste processo, uma acção de rigor no registo dos números de casos de infecção e das mortes que foram ocorrendo. Nesses países, durante grande parte do tempo só foram contabilizadas as mortes verificadas em meio hospitalar. Na generalidade dos países esta pandemia veio colocar à prova a capacidade de resposta dos respectivos sistemas de saúde e dos suportes sociais.

O facto de dispormos de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) como pilar central de toda a actividade assistencial e da prestação de cuidados de saúde, possibilitou atenuar as debilidades decorrentes da falta crónica de investimento adequado nos serviços públicos de saúde.

O nosso país, nos aspectos essenciais, tem aguentado bem o confronto com a pandemia e tem suscitado reacções de surpresa e de elogio por parte de órgãos de comunicação social de diversos países. Se após a superação desta pandemia os nossos órgãos de Poder não conseguirem retirar as correctas ilações do que se tem passado, o próximo embate pode ser devastador. Basta olhar para a Grã-Bretanha, Espanha e Itália para podermos idealizar um cenário aproximado do que nos pode esperar.

Nesses países, as últimas três décadas têm constituído um deplorável processo de ampla ofensiva privatizadora e de asfixia financeira dos seus serviços públicos de saúde. O número de mortes aí verificado é uma tragédia revoltante de desprezo pela vida humana e de glorificação criminosa dos negócios.

Deste modo, urge desencadear no nosso país um enérgico programa de reorganização do SNS, preparando-o para cenários futuros que não são difíceis de adivinhar.

Ainda recentemente, o Presidente da República, a propósito da morte de um médico por covid, afirmou que “os profissionais de saúde merecem os adequados meios e carreiras no Serviço Nacional de Saúde”.

É curioso que tenha sido durante um mandato do seu pai (dr. Baltazar Rebelo de Sousa) como ministro da saúde e assistência que, em 1971, o seu secretário de estado da saúde, prof. dr. Gonçalves Ferreira, tenha desencadeado uma reforma da saúde que definiu os cuidados primários e a criação de centros de saúde como prioridades, além de estabelecer o regime legal para a estruturação progressiva e o funcionamento regular das carreiras dos profissionais de saúde (DL 414/71).

Neste contexto, tem de haver a decência republicana de promover uma política de delimitação de sectores na saúde. O sector privado na saúde no nosso país nunca foi hostilizado na sua livre acção empresarial tendo sempre usufruído, pelo contrário, de um constante e generoso fluxo de dinheiros públicos. A questão de fundo que se coloca, e que não pode continuar a ser escandalosamente escamoteada, é que o nosso dinheiro de contribuintes não pode servir para assegurar os lucros de accionistas privados à revelia dos próprios contribuintes.

Nesta perspectiva de transparência da gestão dos dinheiros públicos, as PPP (parcerias público-privadas) na saúde não devem ter os contratos prorrogados. Esse modelo chegou ao nosso país, tendo como um dos seus grandes entusiastas o então ministro da saúde, Luís Filipe Pereira, num governo presidido por Durão Barroso, quando em vários países, nomeadamente Grã-Bretanha e Canadá, diversos estudos mostravam já os seus resultados desastrosos. Nestes anos de existência das PPP na saúde do nosso país, não se vislumbra nenhuma vantagem em relação à gestão pública.

Por outro lado, é urgente pôr fim à situação escandalosa de grande parte das administrações dos serviços públicos de saúde que recorrem indiscriminadamente a empresas privadas para contratar profissionais pagos à hora, numa afronta intolerável e ilegal à contratação colectiva, e para realizar um grande volume de exames complementares de diagnóstico sem fazerem qualquer prova efectiva de que a capacidade instalada nessas unidades esteja esgotada.

O SNS deve estabelecer parcerias com entidades sem fins lucrativos e com uma clara componente social como são, por exemplo, as Misericórdias. Ao longo desta pandemia, as Misericórdias, que gerem cerca de metade dos lares sociais, estiveram sempre activas, tendo conseguido minimizar o número de óbitos de idosos sob a sua responsabilidade, com uma percentagem muito reduzida.

Se esta situação for comparada com o cenário dantesco dos lares na Espanha, França e Itália, onde o número de óbitos foi muito elevado, podemos ter uma ideia mais real da importância do papel na sociedade portuguesa das entidades sem fins lucrativos e do seu contributo insubstituível para o reforço da coesão social, sem a qual a própria democracia e a liberdade correrão riscos que não podem, nunca, ser subestimados.

A estruturação de uma plataforma de articulação e complementaridade na prestação de cuidados de saúde que facilite, em tempo útil, a acessibilidade dos cidadãos e promova uma gestão mais transparente dos dinheiros públicos destinados à Saúde, torna-se uma medida crucial nos tempos actuais.»

Mário Jorge Neves

O alerta à DGS. O alerta a Costa. E o mistério resolvido de um grande poeta

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David Dinis

David Dinis

Director-adjunto

11 JULHO 2020

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Bom dia, e seja bem-vindo ao seu Expresso de sábado. Hoje, as primeiras notícias são alertas sobre a crise em que estamos - com um mês marcado no calendário: outubro.
Primeira crise, a pandémica, com um alerta para o perigo de um novo aumento exponencial de casos, três semanas depois do regresso às aulas. O alerta é contado por um dos principais especialistas com quem se aconselha a DGS e que está explicado aqui. Como também está explicado o plano do Ministério da Saúde para o outono, porque esse será o momento em que a covid-19 vai conviver com a gripe. E o alerta das escolas, dizendo que não vão conseguir cumprir as regras que lhes foram dadas.
Segunda crise, a económica, que leva António Costa Silva a fazer um alerta ao Governo - e outra a empresários, parceiros sociais e partidos: "O que vem aí vai ser ainda pior".
Sobre a pandemia, ainda aconselho a leitura do texto que conta como Portugal dispensou um software da OMS para contar os números da pandemia; assim como o nosso estudo que mostra como Portugal foi dos países que aplicaram medidas mais restritivas; e a entrevista com uma diretora de um hospital de Lisboa ("Sinto-me quase agredida quando vejo ajuntamentos").
Quanto à outra crise, vale a pena ler o texto que explica como outubro pode ser um teste decisivo a António Costa, tal é a acumulação de perigos que se juntam nesse mês.
Noutras paragens, vale muito a pena saber como se financiam os neonazis portugueses (não é bonito de saber). Mas também conhecer a operação secreta de Nicolás Maduro que passou por Cuba e Bissau. E, de caminho, leia a entrevista do ex-ministro da Saúde de Bolsonaro, que explica como a "polarização e polinização" do combate à pandemia estão a deixar o Brasil numa situação desesperada.