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sexta-feira, 31 de julho de 2020

De que se alimenta um monstro?

Posted: 30 Jul 2020 03:54 AM PDT

«É um exercício vazio escrever homenagens a alguém de quem nunca tinha ouvido falar. Não o farei. Sei apenas que um homem de 39 anos, precisamente a idade que tenho agora, morreu em circunstâncias trágicas. A alguém que tenha um princípio de alma, a notícia, tal como surgiu nos jornais, não poderá ter deixado de causar o mais profundo dos horrores. Sei que a empatia não é um dom universal – a própria ficção treina-nos, desde meninos, a tolerar a dor do outro, e este é, afinal, o mesmo mecanismo que nos permite sobreviver à nossa terrível condição mortal. Mas é difícil não nos imaginar a nós próprios naquele café de Lisboa, com três tiros no peito, olhando incrédulos para os olhos de um louco, sentindo a vida escapar-se por três estúpidos buracos. Pode até ter sido uma morte imediata, mas o último minuto de Bruno Candé deve ter tido toda a violência da eternidade. E como se a notícia não fosse suficientemente horrenda, algo me alarmou ainda mais, se possível fosse. É triste que me veja forçado a reconhecê-lo, e isto diz bem dos tempos em que vivemos. Mal vi a fotografia da vítima, intuí a polémica que inevitavelmente daqui viria, e que me impressiona tanto. Saber se houve racismo ou não. Se o assassinato foi feito por motivos raciais ou por qualquer outra razão. Se vivemos numa sociedade racista, de racismo assim-assim ou de nenhum racismo. Não me enganei.

Dei por mim, nos últimos tempos, a pensar num episódio que se passou comigo, numa daquelas situações de trânsito em que a humanidade se revela, para o bem e para o mal. Era ainda muito jovem e tinha poucos meses de carta. Alguém me impediu de fazer uma mudança de faixa, acelerando de propósito para não me deixar entrar na sua via. Barafustei com um gesto de que hoje me arrependo. No semáforo seguinte, o homem saiu disparado do seu carro na minha direcção. Fechei imediatamente a janela e tranquei a porta. Ele guinchava e raivava, batia com toda a força no vidro quase o partindo com a sua aliança, gritando os impropérios mais nojentos. Estava nitidamente descompensado. Protegido, pude observá-lo em silêncio, sem esboçar nenhuma reacção: restava-me apenas esperar que o semáforo ficasse verde, e escapulir-me dali o mais depressa que pudesse. Senti-me como um cientista que, na segurança do laboratório, examina impunemente um vírus ao microscópio. Compreendi, então, de forma definitiva, que o ódio procura de forma ávida as suas próprias causas, alimenta-se a si próprio, e quando explode tem um único escape: a violência. Se aquele homem tivesse uma arma, talvez me tivesse dado um tiro. Naquele dia, eu seria o seu gatilho.

Se houve racismo na morte de Bruno Candé? Parece-me óbvio que se possa tirar essa conclusão, se se vier a provar que o homicídio foi precedido por continuados insultos racistas e ameaças de morte, como tudo parece indicar que sim. Mas não julgo, neste momento, que responder a esta questão seja o principal. É mais importante perguntarmo-nos por que raio precisamos de fazer uma pergunta como esta, em pleno século XXI, no nosso país. Uma das razões principais é precisamente porque há quem cada vez mais esteja disposto, nestes momentos, a dizer que Portugal não é um país racista, menorizando a linguagem do ódio, reduzindo-o a um mero e inconsequente jogo de palavras.

Coloquemo-nos uma simples questão: aqueles – e são muitos – que puseram na agenda mediática, inadvertidamente ou não, a tese de que não há racismo em Portugal, ou de que este não é um país racista (nem vejo bem porque há-de ser produtiva uma tal distinção), são responsáveis pela morte deste homem? Não. Mas estes mesmos cidadãos, que votam e até formam partidos políticos com representação parlamentar, esses mesmos cidadãos que mandam calar negros e sugerem que vão para a sua terra, que propõem leis específicas para os ciganos, que fazem e não fazem, ao mesmo tempo, saudações nazis, contribuem para o discurso do ódio? A resposta, para mim, é evidente: sim, é claro que sim. E esse ódio pode vir a manifestar-se em formas de violência extrema como aquela que vimos? Sim, é óbvio que sim. Estes cidadãos tentam combater o racismo, a xenofobia, e todas as mil variações do ódio nos seus discursos, nas suas acções, nos seus silêncios? Não, não tentam. E porque não o fazem? Não será porque se alimentam desta linguagem odienta, porque precisamente a sua visibilidade cresce com ela? Pois eu receio que um dia estes meus compatriotas fiquem reféns do monstro que alimentaram, e se vejam um dia, tal como eu, protegidos apenas por um vidro.

Podem-me dizer que homens como o deputado que agora anda nas bocas do nosso pequeníssimo mundo (talvez a sua única preocupação sincera) não criou a besta, apenas lhe dá voz e visibilidade. Mas isso não o iliba; pelo contrário, responsabiliza-o. É até um fraco consolo que esta indistinta vozearia esteja agora representada no Parlamento, pois neste momento posso dirigir-me ao seu único deputado eleito, e não a uma abstracção idealizada. Falo, pois, ao seu coração, reconhecendo nele toda a humanidade que igualmente se revelava naquele homem que me ia matando, ou que talvez eu próprio tivesse matado, caso tivesse, naquele dia, aberto a porta do carro, e cedido ao voluptuoso chamamento da ira. Ouça-me dizer isto, da forma mais simples que sei: o ódio mata. Não desvalorize a força do sentimento, seja qual for o nome que dê ao monstro. Chame-lhe o que quiser: ele continuará à espera de uma pequena centelha para fazer em cinzas o mundo que queremos legar aos nossos filhos, que infelizmente já é o mundo em que os três filhos de Bruno Candé serão forçados a viver.»

Pedro Braga Falcão

A visão distante de um mundo sem pobreza

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 30/07/2020)

Alexandre Abreu

As Nações Unidas criaram a figura de Relator Especial (Special Rapporteur) na década de 1980. Trata-se de um cargo temporário, atribuído a personalidades de reconhecida competência normalmente exteriores à organização, que confere o mandato de investigar, aconselhar e relatar acerca de um determinado aspeto ou dimensão dos direitos humanos. Existem Relatores Especiais dedicados a países especificos, como o Haiti ou a Palestina, e a temas diversos, como a Violência Contra as Mulheres ou as Execuções Extrajudiciais. A portuguesa Catarina de Albuquerque, por exemplo, foi Relatora Especial para o Direito à Água e Saneamento entre 2008 e 2014.

O mais recente Relator Especial para a Pobreza Extrema e Direitos Humanos, o jurista australiano Philip Alston, terminou recentemente o seu mandato de seis anos. Neste contexto, entregou no início deste mês o seu relatório final à Comissão dos Direitos Humanos, ao qual deu um título que podemos traduzir por algo como “O estado alarmante da erradicação da pobreza”. É um documento breve (19 páginas), mas notável pela frontalidade dos alertas que lança e das críticas a que procede. Em particular, o relatório de Alston inclui duas críticas especialmente iconoclastas: que a pobreza extrema não está realmente a ser erradicada; e que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não são adequados para a erradicação da pobreza extrema global.

A ideia que a pobreza extrema não está realmente a ser erradicada assenta numa crítica à medição desta com base no limiar internacional de 1,90 dólares definido pelo Banco Mundial, que serve de referência para a maior parte dos estudos e análises. À luz deste critério, o número de pessoas em situação de pobreza extrema reduziu-se de 1,9 mil milhões em 1990 para menos de 750 milhões em 2015, o que constitui uma evolução notável e tem servido de justificação para muitas declarações congratulatórias acerca do progresso do desenvolvimento global. Porém, como assinala Alston, dois terços desta redução ocorreram num único pais, a China, sendo os progressos no resto do mundo muito menos relevantes. Para além disso, o rendimento diário de 1,90 dólares que serve como referência absoluta internacional não foi definido com referência a um qualquer cabaz de necessidades básicas e não permite um nivel de vida minimamente digno. Se procurarmos controlar estes dois efeitos, retirando por momentos a China da análise e utilizando por exemplo um limiar de rendimento um pouco maior (2,50 dólares), verificamos que o número de pessoas em situação de pobreza extrema praticamente não se alterou entre 1990 e 2015.

A segunda crítica – à adequação dos ODS e da Agenda 2030 – é igualmente iconoclasta, na medida em que estes constituem a meta-narrativa fundamental de valores e objetivos não só para as Nações Unidas como para muitos governos nacionais e para a generalidade dos atores bilaterais, multilaterais e não-governamentais do desenvolvimento global. Alston reconhece que os ODS têm tido um impacto positivo e importante ao nível da consciencialização e mobilização da opinião pública global. No que toca ao combate à pobreza, no entanto, a Agenda 2030 caracteriza-se por uma disjunção fundamental entre a ambição dos objetivos declarados (a erradicação) e a insuficiência dos recursos, estratégias e processos. O financiamento público é insuficiente, a estratégia de mobilização de financiamento privado é inadequada e há uma gritante falta de atenção às dimensões políticas da pobreza. Se quisermos realmente erradicar a pobreza extrema global, conclui o relatório – e trata-se realmente de uma escolha coletiva alcançável –, é necessário tomar opções políticas e de políticas consequentes com esse objetivo: reforçar a redistribuição, combater a desigualdade, promover maior justiça fiscal, generalizar os sistemas de proteção social, recentrar o combate à pobreza na ação dos governos em detrimento da filantropia privada e da mobilização de financiamento privado, e dar mais voz e poder às pessoas em situação de pobreza e exclusão.

Os alertas constantes deste relatório são especialmente prementes à luz do impacto previsível do Covid-19 e da crise climática sobre a deterioração da pobreza global, mas são também especialmente adequados na medida em que recolocam a discussão sobre a pobreza no plano dos direitos humanos.

Isso recupera o princípio importante e plenamente justificado de que os direitos económicos e sociais são direitos humanos com tanta dignidade e importância como os direitos civis e políticos – uma tradição que remonta às primeiras décadas de existência das Nações Unidas mas que foi em grande medida eclipsada pelas últimas décadas de predomínio do liberalismo, o qual privilegia injustificadamente os segundos e relega os primeiros para um segundo plano meramente complementar e aspiracional – não como um direito a ser exercido, mas como um resultado que desejavelmente será alcançado.

Na realidade, como afirma um outro especialista no tema, Michael Cichon, a persistência de uma proporção elevada da humanidade abaixo de um limiar de existência minimamente digno, num mundo em que bastaria reafectar uma pequena percentagem da riqueza global para que isso fosse evitado, é uma das mais graves violações de direitos humanos com que nos confrontamos.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Feliz ano novo, dr. Costa

Posted: 29 Jul 2020 03:23 AM PDT

«A palavra do ano é “pandemia” e a frase mais usada é “a situação que estamos a viver”. Bom, a situação que estamos a viver está a correr mal e vai piorar antes de melhorar, pelo que o primeiro-ministro vai cavando trincheiras lá à frente para a sua sobrevivência política.

Pedir apoio à esquerda, como o António Costa pediu ontem [na passada 6ªf.] no Parlamento que PS e PSD querem ver encher-se de teias de aranha, é uma forma de abrir espaço político para o ano terrível que se segue. Se a esquerda não aceitar, o PS acusará a deserção e atribuir-lhe-á o ónus para se virar para o PSD.

Nem a Madame Min seria capaz de engendrar tamanha poção maléfica. Portugal está em recessão profunda e possivelmente longa, o desemprego está preso por arames do Estado, as contas públicas abriram uma cratera e será preciso desenhar um Orçamento do Estado que não poderá evitar choques com a função pública e deixar de encomendar uma gestão perfurante da dívida.

É fácil antever uma crise económica e portanto social e portanto política em 2021. E em 2021 há duas eleições e uma presidência portuguesa da UE.

As sondagens que dão agora liderança destacada ao PS são o canto do cisne negro que desabou invisível no nosso mundo. Depois da valorização da segurança do Estado lançada pelo Governo, que tinha prazo de validade para três meses, virá o tempo do deserto.

O oásis está nos financiamentos comunitários, que somos péssimos a executar. O Governo vai cair na tentação de desimpedir a burocracia e os filtros de controlo, para que o dinheiro chegue depressa à economia real. O problema não será a pressa, mas a estratégia, se a houver. Essa é a única jangada visível a que nos podemos agarrar, pelo que a máquina do Estado terá de estar apta a pôr em marcha os projetos para fazer arrancar um país com capital a menos e dívida a mais. É perante esta tormenta que António Costa e Rui Rio vão jogando o seu caminho de alianças precárias, mesmo se já começámos a ouvir falar de necessidades de acordos de regime ou “soluções políticas alargadas”, como lhe chama o Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa até anda recolhido e diz agora que não comenta o fim dos debates quinzenais porque seria meter-se na vida de outros órgãos de soberania — logo ele, que se mete em tudo.

Depois das eleições, o Presidente da República pode até ser o mesmo, mas será outro. E a esquerda?

É difícil imaginar uma nova ‘geringonça’, mas é possível antever um PS a pendular entre orçamentos e acordos para fundos comunitários com o PSD, e salvações de empresas com PCP e BE. Como dizia com graça o jornalista António Costa, o primeiro-ministro pede namoro ao PCP e ao BE enquanto mantém um caso extraconjugal com o PSD.

Todos os anos, o primeiro-ministro dá uma longa entrevista ao Expresso em agosto, em que desenha o mapa político do ano que se segue. Este verão, provavelmente assim o leremos, renovando votos à esquerda e mantendo pontes com a direita que diz que não é direita. É ele que está no meio da ponte, entre “a situação que estamos a viver” e a maior crise económica das nossas vidas. Ninguém quereria estar na pele do primeiro-ministro. Exceto ele.»

Pedro Santos Guerreiro

Bruno Candé: Já não há adultos na sala?

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/07/2020)

Daniel Oliveira

Como é evidente, não chega um branco matar um negro para estarmos perante um crime de ódio. Pelos testemunhos da família de Bruno Candé, que não teria qualquer razão para mentir num momento de dor como este, e de muitas outras pessoas temos razões para acreditar que o seu homicida era profundamente racista. E que o mostrou à sua vítima nos dias anteriores ao crime no meio de ameaças recorrentes. Isto não chega para sabermos se as suas motivações foram racistas.

Não tardou para que a vítima de um assassinato brutal, com quatro tiros à queima-roupa, fosse transformada em suspeito. Tenha ou não havido motivações racistas para o homicídio, não há agressão ou assassinato de um negro que não acabe em relatos que nos tentem mostrar que a vítima lá teve as suas responsabilidades no desfecho trágico. Isso só não acontece quando o homicida ou agressor é cigano, claro. O racismo tem as suas hierarquias.

Espero pelo fim das investigações da Polícia Judiciária (PJ) para formar uma opinião – a conclusão, essa só virá com o julgamento que, tendo em conta a idade do homicida, espera-se rápido. Aquilo de que quero tratar é do comportamento de quem tem responsabilidades institucionais.

Nem falo de André Ventura, que que achou excelente partilhar um screenshot de um post escrito por uma senhora que não faz ideia quem seja a denegrir a vítima do homicídio. Chega-se ao fim daquele “post” e a conclusão é uma: ele estava a pedi-las. Ventura partilhou-o depois de endereçar os sentimentos à família, claro está. Não é virgem na brincadeira – já tinha partilhado a mentira de que os homicidas do jovem cabo-verdiano em Bragança eram ciganos. Ao partilhar um “post”, autêntico ou apócrifo, denegrindo a vítima e em que praticamente se justifica o homicídio, elogiando a autora desconhecida pelo seu “corajoso testemunho”, André Ventura entra um pouco mais no território da marginalidade política. Tanto faz, o segredo do seu sucesso é ser falado. E a nós, que falamos dele, resta um dilema: ignoramos até que ponto? Até ele apelar ao homicídio para dar nas vistas?

Mas Ventura é só a exibição grotesca e política da bandalheira institucional que se instalou. Nestes dias, o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP fez saber que, ao contrário dos jornalistas, não recolheu qualquer depoimento em que fosse relatado motivo racista. Pelo contrário, ele é afastado. É possível que assim seja, mas espero pela investigação para conhecer o móbil do crime. O que me deixou atarantado é ver o Comando de Lisboa a fazer declarações públicas sobre um caso que não está nem podia estar a investigar. Pode ter querido recolher depoimentos para terceiros e é a esses terceiros e não à imprensa que os deve entregar. Sem tirar conclusões precipitadas sobre uma investigação que não é sua. Até porque, em princípio, esses terceiros repetirão as inquirições.

Os homicídios, em Portugal são investigados pela PJ. Diz o artigo 7º da Lei de Organização da Investigação Criminal que é da competência reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de polícia criminal”, a investigação de “crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a more de uma pessoa”. Não é apenas uma questão formal. A PSP é uma polícia de prevenção criminal e proteção das pessoas (competências muitíssimo relevantes para o conjunto da sociedade), com funções de investigação limitadas. Os seus agentes não têm formação, treino, instrumentos ou competência para este tipo de investigação mais complexa. As suas funções de investigação não incluem a identificação do móbil de um crime de homicídio. É por isso que o Comando Metropolitano Lisboa da PSP foi imediatamente desautorizado pela PJ, que disse que o que tinha de dizer nesta fase: que não afasta nenhum dos cenários.

É verdade que a importante mas pouco mediática função preventiva não dá à PSP aberturas dos telejornais na CMTV, mas seria bom que começasse a haver alguma contenção nas suas cúpulas. Que o cidadão forme a sua convicção sobre a natureza deste crime com base em notícias, é natural. Eu próprio o fiz. Que políticos eleitos o façam é arriscado mas aceitável dentro de alguma cautela. Que um deputado decida denegrir a vitima é abjeto. Que a PSP decida mandar postas de pescada sobre um caso cuja investigação não lhe compete (mesmo que recolha alguns testemunhos, que serão de novo ouvidos por quem vai investigar) é preocupante.

Investigará este crime a PJ, polícia que tem mostrado profissionalismo e, ao contrário de outros, grande resistência a instrumentalizações políticas. E será o julgamento a confirmar as suas conclusões. Por agora, sabemos duas coisas: que quando temos uma PSP a falar publicamente sobre uma investigação que não lhe pertence e um deputado a denegrir a vítima de um homicídio com base em testemunhos de desconhecidos que nem sabe se são verdadeiros alguma coisa muito perigosa está a acontecer às nossas instituições. Que haja adultos na sala.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Quanto vale a vida de um homem negro?

Posted: 28 Jul 2020 03:44 AM PDT

«Um homem morreu, abatido à queima- -roupa com três tiros disparados por outro homem. O crime aconteceu num início de tarde de verão, num sábado, numa rua deste país de brandos costumes. Dizem testemunhas, ouvidas pelos órgãos de Comunicação Social, que o agressor antes de disparar, com a sua arma ilegal, terá dito à vítima para ir para a terra dele. As autoridades, no entanto, afirmam que as testemunhas quando inquiridas não referiram motivações racistas.

A vítima, de 39 anos, negra, não poderia ir para a terra dele. Bruno Candé vivia na sua terra, embora muita gente neste país dos brandos costumes ainda não tenha absorvido que um negro também pode ter Portugal como pátria. Não sabemos se Bruno Candé foi morto por ser negro, sabemos, sim, disso não resta qualquer dúvida, que perdeu a vida por um motivo fútil. Dos relatos conhecidos, sabe-se ter havido um desentendimento entre vítima e agressor por causa da cadela de Bruno. Por causa de uma cadela, um homem atira à queima-roupa, com uma arma ilegal, repito, sobre outro homem.

Três crianças, com idades entre os três e os seis anos, perderam o pai - abatido a tiro quando estava pacificamente sentado com a sua cadela numa esplanada de Moscavide, no início de uma tarde de verão. Era sábado. Um homem morreu por um motivo fútil, vítima de outro homem que trazia consigo uma arma de fogo ilegal. Isso devia fazer pensar e dar motivos para nos indignarmos. Mas nada acontece. Não ouvimos a ira popular a pedir inquéritos, a exigir a ida do ministro ao Parlamento, ninguém parece questionar a venda de armas a civis. Coisa estranha, no dos brandos costumes. E mais estranho se torna quando ainda não país esquecemos a indignação pela morte, há poucos dias, de dezenas de animais. Quanto vale afinal a vida de um homem?»

Paula Ferreira