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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Marisa Matias – Declaração de candidatura

Posted: 03 Oct 2020 12:19 PM PDT

Declaração apresentada a 3 de outubro de 2020 em Lisboa.

Em 2016, fui candidata à Presidência e Portugal vivia um momento singular. Tínhamos sofrido a troika e a política de empobrecimento. O país estava enfraquecido pela pobreza e pela emigração. Mas, logo depois da derrota da direita nas legislativas de outubro de 2015, Portugal já tentava abrir caminhos, entre ameaças europeias e vaticínios céticos contra a solução política que iniciou uma recuperação dos rendimentos das pessoas.

Esse fatalismo foi vencido e a política mudou. Na proteção das reformas e pensões, na recuperação dos rendimentos, no desenvolvimento de serviços públicos, impedindo novas privatizações, o país ganhou com o reforço da esquerda e com a mobilização popular. Foram dados passos importantes e festejei-os convosco.

A minha candidatura fez parte dessa mudança que quebrou o ciclo da austeridade e que permitiu ao país respirar e recuperar. Esta é uma candidatura das pessoas que à esquerda não baixam os braços e constroem soluções para o país. Uma candidatura de quem, como Maria de Lurdes Pintassilgo, acredita na força do diálogo. De quem acredita que podemos ter uma política diferente. Mesmo diferente.

Foi essa esperança que me propus representar nessas eleições de 2016. Fui ouvir as pessoas e fazer a campanha como gosto, junto delas, encontrando vontades e abraçando essa imensa energia de quem trabalha e não vive para truques, vantagens e podridão. Os votos que me deram foram de confiança nessa energia, de afirmação de uma esquerda que sabe o que quer.

Sabemos que hoje vivemos tempos diferentes, num contexto novo e ameaçador. Perante uma nova crise, a maior das nossas vidas, temos a responsabilidade de usar o que aprendemos nas crises anteriores, para proteger Portugal, a nossa casa comum, e para enfrentarmos os perigos que assombram todo o mundo, desde a destruição climática até à espiral de violência racista e discriminatória.

A pandemia acelerou a crise económica e social. Mas também é certo que não a inventou. Não foi a Covid que empurrou dezenas de milhares de jovens para cima de bicicletas e motas para serviços de entrega porta a porta, sem contrato e sem direitos. Não foi a Covid que criou os lares clandestinos, onde são maltratados tantos idosos. Não foi a Covid que inventou a soberba dos patrões que fecham a porta, despedem as trabalhadoras e abrem nova empresa ao lado. Não foi a Covid que inventou a violência sobre as mulheres ou as crianças. Não foi a Covid que inventou a corrupção ou juízes ao serviço de traficantes do futebol. Tudo isso já existia antes da doença e é outra ameaça sobre o nosso país.

Mas sei que a pandemia nos atingiu como uma tempestade e, apesar do heroísmo das e dos profissionais de saúde e de tantos outros trabalhadores (e nunca me esquecerei do que fizeram e do que estão a fazer), houve já quase duas mil mortes e dezenas de milhares de pessoas infetadas. Sei e sabemos que ainda temos tempos muito duros pela frente.

Vivemos uma crise sanitária e ela mostra-nos onde está a força do nosso país: na solidariedade e no cuidado, no profissionalismo e na humanidade. A força do país não está na riqueza, não está nas fortunas, não está no facilitismo, que só fizeram nascer corrupção e desigualdade. A força é o que é comum, a começar pelo Serviço Nacional de Saúde. A democracia é o que é de toda a gente, é a liberdade que cuida de toda a gente. Essa força é o meu programa: a democracia é o é que de todos, para todos e por todos.

E, por cima da crise sanitária, temos a crise social. Os seus efeitos recaem de forma desigual sobre a população, os mais pobres e os esquecidos são sempre as primeiras vítimas, o desemprego é uma praga, a vulnerabilidade cresceu. Em poucas palavras, Portugal está aflito.

É dessa aflição que vos quero falar. Ela tem razões imediatas e que serão superadas, mesmo que demore muitos meses, mas há outra doença que nos ataca e que nunca nos quer largar: é o nosso atraso, é o que nos falta nos centros de saúde e hospitais, é o abandono escolar, são as atividades poluentes, é o desemprego, é a falta de investimento que constrói qualidade de vida, é a fraude e a mentira.

Por isso vos digo que uma economia mais justa tem de assentar em transparência e respeito. Transparência no combate à impunidade dos financeiros, à corrupção das portas giratórias do poder, à fuga fiscal de quem mais tem. A resposta aos nossos problemas estruturais impõe medidas corajosas de controlo público, de reforço de incompatibilidades, de investigação e repressão do crime económico, financeiro e fiscal, de escolhas estratégicas pelo ambiente e pelo emprego.

Os que nada querem fazer e que estão satisfeitos com os seus privilégios vão ter-me pela frente. E, como sei que me perguntam o que quer a minha campanha, digo já com todas as palavras: se há os que querem Portugal parado, eu quero o meu país vibrante de jovens, de cultura, de respeito pelo trabalho, de solidariedade.

Eu não sou candidata para fazer vénias ao sistema ou a poderes que são os responsáveis pelo atraso de Portugal. Não aceito discriminações, não tolero a intolerância, não me calo perante o ressentimento e a ignomínia. A mentira e a grosseria, ou o aproveitamento da vulnerabilidade dos que sofrem, estão a tornar-se sistema. Há, de Trump à Europa, uma mistura de políticos em segunda mão com advogados de negócios, com especuladores, com saudades da impunidade, que procura embrulhar um programa de atraso com a violência contra os trabalhadores, os pobres, as mulheres, os imigrantes.

A todos eu digo que contem comigo: repito, a democracia é o que é de todos, para todos e por todos. As pessoas que têm orgulho de todas as cores da democracia são muitas, somos a maioria e não nos vergamos. Com a minha campanha, quero dar a voz a essa enorme maioria.

É por isso que vos digo que esta crise será vencida por quem venceu a última crise, há cinco anos. E quero dirigir-me a essa imensa maioria que, com o seu trabalho e a sua luta, todos os dias constrói este país.

Não encontrarão nesta candidatura o conformismo de quem quer que tudo fique na mesma. Encontrarão, isso sim, a força determinada de quem, convosco, vai à luta pelas soluções que protegem Portugal: a segurança do emprego e do salário, a garantia de uma democracia que queremos forte e de um país que queremos livre.

Em 1994, Maria de Lourdes Pintasilgo elaborou o relatório da Comissão Independente sobre População e Qualidade de Vida constituída pelas Nações Unidas. Deu ao documento um título original, “Cuidar o Futuro”, e nele explorou as várias dimensões da justiça económica, social e ambiental - sempre sob o prisma do compromisso entre gerações.

Pintasilgo não foi “apenas” a primeira mulher candidata à Presidência da República. Ela marcou Portugal com a sua mensagem de solidariedade - no modo como vivemos está já o modo como viverão os nossos filhos. Julgo que desse sentido de responsabilidade podemos retirar a melhor definição de país: uma comunidade capaz de se questionar hoje sobre o que quer ser amanhã.

Como Pintasilgo, sei que as eleições presidenciais não estão acima da política. Quem ocupar a Presidência não será um adorno nas escolhas decisivas que temos pela frente. Como Pintasilgo, sei que os princípios da nossa Constituição são guias essenciais que devem apontar caminhos a quem responde pela República. Cuidar o futuro é não temer as escolhas decisivas de hoje.

É por isto que aqui estou, neste momento difícil em que devemos afirmar a democracia, sem jogos de sombras.

Eu sou o que digo e o que faço e por isso me comprometo convosco.

Sei que não há liberdade sem pão.

Não há liberdade sem habitação.

Não há liberdade sem cultura.

Não há segurança sem saúde.

Não há segurança sem salário e sem contrato.

Não há segurança sem igualdade.

Não há segurança sem liberdade.

Liberdade e segurança, é a minha luta. Aqui estou para isso. Já me conhecem, chamo-me Marisa Matias e vou à luta convosco.

Obrigada pela vossa força.

(DAQUI)

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Uma pandemia política

Uma pandemia política

por estatuadesal

(Pedro Adão e Silva, in Expresso, 03/10/2020)

Pedro Adão e Silva

De acordo com a sondagem ICS/ISCTE que o Expresso hoje publica, um ano depois das legislativas pouco ou nada mudou: PS e PSD têm os mesmos resultados que tiveram nas urnas; os partidos de esquerda continuam a formar uma maioria sólida e os políticos mais bem avaliados são o Presidente e o primeiro-ministro. A única novidade é mesmo o crescimento do Chega e a intensificação da tendência de queda do CDS.

À primeira vista nada mudou, pelo que uma crise política tenderia a resultar num cenário em tudo idêntico ao atual. Ou seja, não se resolveria nenhum problema e, pelo caminho, acrescentar-se-iam alguns. Os partidos sabem-no e é também isso que condiciona o seu comportamento.

Mas é ilusório pensar que não está a acontecer nada na política portuguesa. Alguma coisa teria de mudar com a pandemia. A deterioração da situação económica e social tem inevitavelmente tradução política.

É sabido que o efeito do comportamento da economia na avaliação dos governos é, por definição, assimétrico: quando a economia melhora, os ganhos para quem governa não são lineares, pois são marcados pelas predisposições políticas. Quem é favor do partido do Governo valoriza o que está a acontecer, enquanto quem está mais próximo da oposição não tem a mesma opinião. Ao mesmo tempo, quando a situação piora, os executivos são responsabilizados, independentemente das orientações políticas dos eleitores. O corolário é simples: os problemas económicos tornam-se politicamente mais salientes à medida que a situação se deteriora e, acima de tudo, com um impacto transversal ao espectro ideológico.

Como mostram os resultados da sondagem, os portugueses reconhecem que a situação está a piorar (79% dos inquiridos em comparação com apenas 18% em fevereiro), mas esta opinião ainda não se traduz nem na intenção de voto nem na avaliação do primeiro-ministro. No entanto, existem indícios de mudança. Há mesmo uma linha que converge a um ritmo acelerado: o número de inquiridos que afirma que o Governo está a fazer um trabalho positivo aproxima-se muito do daqueles que fazem uma avaliação negativa. Em fevereiro, 57% avaliavam entre o bom e o muito bom o trabalho do executivo; agora, esse número é de 49%, enquanto a variação do número de avaliações negativas cresceu nove pontos, de 34% para 43%.

Com o tempo, é provável que a queda na avaliação política, agora circunscrita ao Governo, acabe por contaminar a intenção de voto no PS e a opinião sobre o primeiro-ministro. Como não se vislumbra que esteja para emergir uma alternativa maioritária à direita, a probabilidade de estarmos confrontados com uma verdadeira pandemia política, marcada por maior fragmentação partidária, crescimento da representação antissistémica e incapacidade de compromisso, é real.

Nessa altura, a tensão em torno do orçamento do Estado para 2021 vai parecer uma memória distante de um tempo tranquilo. Era bom que os partidos pensassem já nisso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Direito à indignação

Posted: 02 Oct 2020 03:26 AM PDT

«Foi Mário Soares quem cunhou esta expressão provocatória: o direito à indignação!

Um "direito" que exprime o escândalo perante a indignidade, a falta de respeito, contra a violação inaceitável das regras elementares da convivência humana, a reação sentida e legítima contra uma ofensa insuportável. Mário Soares sempre foi assim ao longo de toda a vida, até para desautorizar o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, em Março de 1995, no pleno exercício das funções de presidente da República! Vem isto a propósito da polissemia da expressão, "dignidade humana", e da sua importância e atualidade.

Esta pandemia que não sabemos ainda por quanto mais tempo nos vai atormentar expôs com flagrante nitidez velhos problemas que tardamos em reconhecer e enfrentar, como as desigualdades crescentes que romperam a coesão das sociedades e a crescente vulnerabilidade dos velhos estados soberanos no contexto da desregulação internacional que enfraqueceu a autoridade democrática num mundo desregulado, ameaçado pelas alterações climáticas e pela proliferação anárquica de conflitos armados.

Vivemos um tempo de ansiedade e de incerteza. Aquilo que ainda há poucos anos se acreditava serem valores essenciais e irrenunciáveis tornou-se objeto do tráfico venal entre interesses instalados que já nem tentam ocultar o mais despudorado oportunismo. Significativamente, o debate entre os dois candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos da América que ocorreu na madrugada desta quarta-feira ofereceu-nos o mais deplorável espetáculo do estado lamentável em que se encontra o planeta e a mais poderosa potência que sobreviveu à Guerra Fria. Nem o moderadíssimo candidato democrata, Joe Biden, conseguiu manter uma postura de estado, séria e impassível, face à diarreia verbal do seu opositor e atual presidente, Donald Trump.

A pandemia que paralisou por longos meses a economia mundial revelou também o lado mais trágico da miséria que alimenta o opulência dos mais ricos. Desde os camponeses da Índia aos americanos do Norte e do Sul, aos lares de idosos da Suécia ou aos bairros mais pobres de Madrid, o vírus atuou de forma metódica, coerente, letal. Dos que sobreviverem, muitos vão enfrentar o desemprego ou a insolvência mas muitos outros sobrarão para alimentar a fome insaciável da máquina de fazer dinheiro. O que farão os governos, os partidos, os representantes eleitos? O conceito de dignidade humana atingiu hoje um patamar incompatível com a indiferença perante o absurdo de tamanhas desigualdades. Não há liberdade sem igualdade e é o escândalo perante tal indiferença que alimenta a extrema-direita populista e autocrática. Só na relação entre seres de igual dignidade é que a liberdade se torna um bem estimável, valioso e carente de proteção.»

Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos

Ilíada, Canto IX, 438-43

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 01/10/2012)

Não custa a entender. Quem defende o ostracismo de Ventura, recusando dar-lhe atenção e palco, está cheio de boas intenções: limitar a sua influência, manifestar a repugnância que a sórdida figura suscita, evitar lutar com o porco para não ficar emporcalhado. Acontece que quem assim pensa está também a pensar mal.

A Odisseia é muito mais popular do que a Ilíada mas é nesta que se encontra uma lição política fundante e fundamental: aquele que é bravo na assembleia é valente na batalha – aquele que for bravo na batalha será valente na assembleia. A capacidade de tomar a palavra e enfrentar a ameaça de injustiça, como faz Aquiles na abertura do poema na cara de um rei, não é menos heróica do que a capacidade de enfrentar Heitor junto às muralhas de Tróia. As gerações que vieram a criar a primeira forma de democracia beberam desde o berço esta e outras lições – onde o falar livremente numa comunidade, de deuses ou humanos, era toda a civilização.

Se João Miguel Tavares merece ser uma das personalidades mais importantes do regime, tendo-lhe sido oferecida a raríssima e supina honra de presidir ao mais densamente simbólico dos feriados patriotas, por que razão se foge do Ventura alegando ser má companhia? Um e outro devem o seu sucesso exactamente à mesma fórmula, tentam ocupar os mesmos segmentos de mercado. Ambos viram uma oportunidade na decadência da direita, afundada na impotência e no ódio, e criaram marcas fortes e independentes. Um tornou-se caluniador profissional especializado nos alvos de quem lhe paga. O outro alinhou com Passos e serviu de cobaia para se ensaiar em Portugal o radicalismo da direita inimiga dos direitos humanos.

Loures só foi uma derrota nas urnas, no plano da inovação política corresponde a um triunfo da fórmula pois vimos um presidente do PSD, ex-primeiro-ministro, a promover e consagrar uma cópia à portuguesa de Trump. O caminho que trouxe o Chega para os boletins de voto ficou então aberto.

O equivalente da sonsaria torpe do bracinho do Ventura a simular a saudação nazi numa manifestação encontra-se nos artigos e intervenções deste Tavares entretanto rico quando ensaia a defesa do Estado Novo e a diabolização do 25 de Abril debaixo de camadas de torpe sonsaria inspirada em Rui Ramos e quejandos. Ambos, André e João Miguel, comungam da visão intencionalmente mentirosa e alucinada em que a corrupção é a mãe de todos os males, em que quase todos (ou todos, depende do espectáculo) os políticos são corruptos e fazem leis para blindarem a corrupção na impunidade, em que o Estado não presta e deve ser reduzido à expressão mínima para não andarmos a sustentar madraços e estroinas, e em que só Passos Coelho e Joana Marques Vidal nos poderão proteger dos monstros socialistas que nos querem devorar. Os públicos a quem se dirigem são uma mistela de fanáticos, broncos e descompensados.

O Daniel Oliveira, por exemplo, entrevistou com gosto e compadrio o caluniador profissional. E ouviu dele, sem ripostar, a celebração da actividade criminosa no seio do Ministério Público ao serviço de uma agenda de perseguição política. Que razões terá para continuar sem convidar Ventura para o Perguntar não ofende quando estamos, como diria o Jerónimo, perante farinha do mesmo saco? Acaso Ventura não é interessante e importante por desvairadas razões ou sob variegados pontos de vista? Acaso os seus ouvintes não adorariam assistir à conversa sobre a podridão de Pedroso, Vara e Sócrates? Ou será que o Daniel teme ficar outra vez em silêncio face às barbaridades que saíssem do boca do seu entrevistado e, nesse caso, tal já daria que falar, e depois era chato?

Deixar o Ventura, um hipócrita que se desfaz com um sopro de decência e duas ou três noções básicas de História, sem contraditório, olhos nos olhos e de peito cheio, acaba por ser um monumento ao estado degenerado da sociedade. Uma sociedade que tem alinhado cobardemente com a violação do Estado de direito democrático ao serviço de vinganças oligárquicas e corporativas. Uma sociedade que aceitou ser cúmplice da pulsão do linchamento moral. Ventura nasceu nesse esgoto e foi subindo pela sua montanha de merda até conseguir empestar a Assembleia da República. O Portugal da indústria da calúnia sente que Ventura é um dos seus, e cala-se consolado. O Portugal que se respeita a si próprio mas que opta por fugir de um palhaço que nos quer fazer mal pagará o preço de não combater pela liberdade.

As presidenciais, o PS e o dever de reserva seletivo

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/10/2020)

Daniel Oliveira

Santos Silva, que não dá um passo sem se coordenar com o primeiro-ministro, tornou explícito o apoio a Marcelo. E insinuou que Ana Gomes, que foi candidata do PS a inúmeros cargos, é uma “extremista”. Na exigência de reserva aos ministros, o objetivo de Costa nunca foi amarrar o Governo a qualquer neutralidade, foi impedir que quem não tem a opinião do primeiro-ministro a contrariasse.


Há uns tempos, António Costa fez uma declaração extraordinária: “Os membros do Governo devem ter em relação às presidenciais um particular dever de reserva, tendo em conta a relação com o próximo Presidente da República, com quem teremos de conviver muito tempo”. A frase foi dita depois de Pedro Nuno Santos, que Costa não desejaria ter como sucessor mas que é o que mais apoios soma neste momento, ter afirmado que se não houvesse um candidato da área do PS votaria noutro de esquerda. Pois bem, há uma candidata da área do PS.

Este recado de Costa foi triplamente extraordinário.

Extraordinário porque reescreve a História. Nela, podemos ver como o PS apoiou Manuel Alegre contra a reeleição de Cavaco Silva, quando estava no governo, em 2011. E isso não tem mal nenhum. Cooperação institucional não é o mesmo que cooperação eleitoral. Mal seria que o partido que está no governo não pudesse apoiar um candidato diferente do que está na Presidência. O raciocínio até é contrário ao espírito constitucional do nosso sistema semipresidencial bastante mitigado.

Extraordinário porque transforma os membros do governo em meros prolongamentos do primeiro-ministro, mesmo na atividade política e partidária que ao governo não diz respeito. Dá a António Costa o poder de silenciar todos os militantes do PS que estejam no Executivo. Mas os ministros só têm dever de reserva em questões que fazem parte da atividade do governo. Não ficaram, enquanto militantes e dirigentes de um partido, limitados nos seus direitos. E muito menos estão impedidos de discordar da opinião pessoal (não foi decidida em nenhum órgão partidário) do seu líder. O Governo não é uma ala do partido.

Extraordinário porque é uma posição sonsa. Este apelo veio depois do próprio António Costa ter feito o número que se conhece em frente à Autoeuropa e que correspondeu a um apoio quase explícito à candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Já escrevi sobre o erro histórico a que corresponde este gesto, que atira parte da direita democrática que se opõe a Costa para os braços de André Ventura, deslocaria o centro do debate para a direita e deixaria parte do eleitorado socialista órfão. Mas o que está em causa é, depois de impor o apoio informal a um candidato fazer de forma desastrada, à margem do partido e não correspondendo a nenhuma estratégia coletiva, tentar silenciar qualquer outra posição.

As declarações de Augusto Santos Silva, que não dá um passo sem se coordenar com o primeiro-ministro, ajudam a aclarar as coisas: “Se Ana Gomes é uma boa candidata? Na minha opinião, sim. Se Ana Gomes é uma boa candidata para ter o apoio do PS? Na minha opinião, não”. Isto, por si só, não seria um problema. As pessoas podem ser boas candidatas para uma coisa e não para outras. O que é grave é o critério que o ministro dos Negócios Estrangeiros insinuou para excluir Ana Gomes: “Na minha opinião não devemos combater extremismos com outros extremismos, polarizações com outras polarizações. Gostaria que o combate contra os extremismos fosse feito pelo grande arco daqueles que são moderados”. A isto, Pedro Nuno Santos respondeu com duas críticas de natureza diferente. Uma política, outra processual.

A política: “As pessoas não servem para o PS para fazerem umas coisas de vez em quando, para serem candidatas, para serem eurodeputadas, para serem candidatas à câmara municipal, para serem membros do secretariado nacional e depois de um momento para o outro passarem a ser vilipendiadas porque não lhes dá jeito.” E tem razão. Santos Silva insinua (que é ainda pior do que o dizer claramente) que aquela que o seu partido apresentou como candidata a inúmeros cargos é uma “extremista”. Apesar de o ter representado, sem qualquer oposição do próprio Santos Silva, até agora. Além de incoerente, é uma declaração insultuosa para uma camarada de partido.

A questão processual é ainda mais relevante. Diz Pedro Nuno Santos: “Quem decide quem o PS apoia são os órgãos do partido. Ponto. Não é o Governo, não é nenhum membro do Governo, é mesmo o Partido Socialista que decide quem apoia e quem deixa de apoiar.” Na sua entrevista à TVI, Santos Silva expressa de forma inequívoca o apoio a Marcelo Rebelo de Sousa. E isto quer dizer que decidiu, a poucos dias do Conselho Nacional do PS, e sendo membro do Governo, antecipar-se à decisão dos órgãos do PS no apoio a um candidato específico. Sabendo-se a sua enorme proximidade a Costa, fica claro que, na exigência de reserva aos ministros, o objetivo nunca foi amarrar o Governo a qualquer neutralidade, foi impedir que quem não tem a estratégia do primeiro-ministro a contrariasse. O que, não estando em causa um assunto do Governo, é revelador de uma cultura, digamos, cavaquista.

Haverá militantes do PS na candidatura de Ana Gomes, que também ela é militante do PS e concorre contra o candidato da direita democrática e conservadora. A sua candidatura é o lugar natural de muitos socialistas, sejam quais forem os cálculos táticos do primeiro-ministro. E a não ser que o PS decida apoiar formalmente Marcelo, só pode ser pacífico que lá estejam. O que inclui ministros, que respondem ao primeiro-ministro no exercício de funções executivas, não no exercício da sua militância. E é importante para a democracia manter as coisas separadas.